sexta-feira, 20 de abril de 2007

[NJ] Sem terra, sem direito

SEM TERRA, SEM DIREITO

Santos ou pecadores, vítimas ou opressores, os sem-terra têm a peculiaridade de despertarem esperança e temor na mesma medida. Para aqueles que anseiam por mudança, os sem-terra personificam a capacidade de, contra tudo e contra todos, fazer valer a indignação, a resistência, a ação. Para aqueles que, pelo contrário, temem a mudança, os sem-terra representam o potencial de desordem que ameaça a ordem estabelecida.

Que direito têm eles de tomar a propriedade alheia? – argumentam seus opositores. Ora, de um ponto de vista estritamente jurídico a resposta é simples: nenhum direito. O proprietário detém o título de propriedade privada, ainda que improdutiva sua terra. Se o poder público possui, sob o pretexto da “função social” da propriedade, a prerrogativa de expropriá-lo para promover a reforma agrária, isto é outra questão – os sem-terra permanecem, diante daquela senhora vendada, meros turbadores da lei. O duelo se dá entre o “supremo” direito de propriedade, constitucionalmente assegurado e fartamente esmiuçado pelo direito civil, e o absoluto não-direito.

Falar em algo como um “direito” dos sem-terra só é possível se tomamos a palavra “direito” num sentido diferente. Os sem-terra são o produto de uma ordem social injusta, de um esquema de distribuição de terras que simplesmente exclui tudo que não se rende ou não interessa ao domínio do capital. Negar-lhes o direito a terra implica reconhecer que são obrigados a consentir com a injustiça, isto é, implica reconhecer que, além de despossuídos, socialmente excluídos e desamparados, os sem-terra não têm outra opção senão silenciar e aceitar sem resistência sua condição miserável.

Contudo, sendo mais do que mero direito à sobrevivência, sendo “direito” de produzir apesar do capital, “direito” de contrariar o capital e toda a ordem social nele fundada, o “direito” dos sem-terra a terra não é, nem pode ser, reconhecido como direito em sentido formal. Isto porque, embora decidido politicamente, o direito é a exclusão da política: ele encarna a universalidade e a segurança, em oposição à oportunidade e à conveniência da política. E a reivindicação dos sem-terra é precisamente uma reivindicação política.

Qualquer semelhança entre o “direito dos sem-terra” e o “direito de greve” não é mera coincidência. No início do capitalismo industrial, as greves firmaram-se como principal instrumento de reivindicação dos trabalhadores. Eram uma afronta direta ao capital e por isso encontravam violenta repressão por parte do Estado. Assim como no caso dos sem-terra, negar aos trabalhadores o “direito de greve” implicava condená-los à resignação, implicava reconhecer aos capitalistas o poder de submetê-los às mais inumanas condições de trabalho, sem resistência.

Após décadas de luta, um direito formal de greve começou a ser positivado nos mais diversos países. No entanto, foram estabelecidas as seguintes restrições: para ter amparo legal, a greve deve se limitar a reivindicações de caráter profissional (salários, jornada, férias, etc.) e não pode obstruir de forma absoluta a produção. Em outras palavras, a greve só é legal se não tem caráter político – se o tiver, o capitalista pode procurar o Poder Judiciário, que declarará a greve abusiva e fará recair sobre os trabalhadores o peso da condição de violadores da lei. O reconhecimento do direito de greve foi, como se vê, mais uma conquista do capital do que dos trabalhadores. Não foi a consagração, mas a “domesticação” da greve.

Exaltá-lo como signo prognóstico de uma mudança social vindoura seria um exagero, mas cumpre reconhecer que o movimento dos sem-terra é, no interior deste misto de capitalismo avançado com coronelismo rural que é a sociedade brasileira atual, um elemento não-domesticado e profundamente incômodo. Em português claro, uma “pedra no sapato” da ordem estabelecida e da classe social por ela beneficiada. E isso mesmo não tendo os sem-terra direito algum... Ou melhor, precisamente por não terem direito algum – é no fato de não terem direito que reside toda a sua força.

[publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 11/03/2007]

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