terça-feira, 29 de dezembro de 2009

[Crítica Social] Sobre o poder

SOBRE O PODER

Quem dispõe de algum poder nas mãos, mesmo que mínimo, não raro se deixa enfeitiçar e corromper. Mesmo um homem digno, com uma vida pregressa sem manchas, pode, deslumbrado e obcecado pelo poder, tornar-se um crápula – muito pior, é claro, o caso daquele nunca foi tão digno assim. Aquele que passou anos e anos servindo a outrem, cabisbaixo e em silêncio, pode, uma vez no poder, tornar-se um tirano e desejar ver-se servido e idolatrado mais do que qualquer outro.

Por outro lado, aqueles que não dispõem de poder não raro aceitam assumir uma postura subserviente como forma de obter favores dos poderosos. São aqueles que, mesmo traindo seus semelhantes e seus ideais, rapidamente se colocam ao lado do mais forte, como seguidores dóceis e bajuladores. Demonstrar adulação parece-lhes a melhor forma de usufruir do poder que não têm – o que não sabem é que assim não escapam à submissão, mas, ao contrário, submetem-se duas vezes.

Mas o que é, afinal, o poder? Se o poder é força, de onde esta força provém?

Ora, a força para angariar obediência, para conformar a vontade alheia, pode parecer originar-se das instituições, das normas, das tradições, dos costumes ou mesmo das armas. Esta força pode provir da ameaça ou do emprego real das sanções legais ou de violência psicológica ou física aberta. Mas é esta realmente a fonte do poder?

Na verdade, o poder só tem uma fonte: a própria coletividade sobre a qual, em geral, ele se aplica. Se a força das instituições ou a força armada confundem-se com poder, é apenas porque a coletividade consente, implícita ou explicitamente, em submeter-se a elas. Força por força, nenhuma instituição, nenhuma ordem jurídica, nem mesmo o mais bem equipado exército do mundo é mais forte do que o conjunto de todos os homens, a coletividade, as massas.

Por isso mesmo, todo poder que, por qualquer motivo, separa-se dos seus destinatários, já não é poder, mas opressão. O poder reside apenas na coletividade, de modo que tudo aquilo que pretende impor-se “de fora”, pela força, à coletividade, não é poder, mas usurpação de poder. Não pode haver, portanto, um governo que se distingue e aparta da população que supostamente é governada. Não pode haver autoridade separada daqueles a que se destina e a eles sobreposta.

Enganam-se, portanto, o político (do presidente ao vereador), a autoridade administrativa, o agente da força armada (polícia, exército etc.), o beneficiário das pequenas autoridades instituídas (o pequeno líder, o pequeno diretor, o minúsculo coordenador etc.) que se imaginam detentores ou mesmo proprietários autênticos do poder. Sem o consentimento da coletividade, nenhuma dessas figuras tem o mínimo de significado. Todo poder pertence única e exclusivamente às massas – e as massas podem reclamá-lo de volta a qualquer momento.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 23/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 31/12/2009.]

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

[Crítica Social] Ainda para pensar o ensino jurídico

AINDA PARA PENSAR O ENSINO JURÍDICO

O direito crítico há de desconfiar do próprio direito como instrumento de pacificação. O jurista crítico há de ser inquieto, inconformado com as injustiças e comprometido com a luta pela transformação social e pela justiça no mundo. Assim, um ensino jurídico que não aguce no aluno a sensibilidade para perceber a exploração social, a subumanidade latente na maioria dos povos do mundo, não estará cumprindo seu papel verdadeiramente humanista. E o jurista crítico é um humanista, no sentido estrutural da palavra – ele deseja uma humanidade justa, feliz, liberta e igual.
Desenvolver a sensibilidade para estar ao lado dos injustiçados e não dos injustiçadores, ainda hoje é um papel crucial das faculdades de direito. Desenvolver no estudante de direito o compromisso eterno com a luta por um mundo justo é nosso ideal mais nobre e profundo.


Um curso de Direito crítico e progressista, entre os mais bem qualificados do país, no interior de São Paulo. Este foi o sonho de Alysson Leandro Mascaro, fundador de um saudoso curso de Direito que, no seu manifesto de fundação, foi marcado pelas palavras acima (“Que ensino jurídico para qual direito?” In: Revista Direito e Sociedade, vol. 1, n. 1, 2006, pp. 11-12).

Ora, o que significa formar juristas inquietos e críticos? O que significa aguçar no estudante a sensibilidade para perceber a exploração? O que significa formar para o inconformismo perante a injustiça? O que significa estar ao lado do injustiçado? Tudo isto se resume, em certo sentido, na derradeira diretiva: formar juristas comprometidos com a luta.

O que se tem aqui é uma contundente negação do modelo tradicional, replicador e mercantil de ensino superior. O jurista formado como mero repetidor da ordem estabelecida, como mero repetidor da lei, é um jurista insensível: sua função é a de guardião cego do status quo, da situação presente. Como vigia diplomado da injustiça estabelecida, o jurista se reduz então a técnico da máquina burocrática de coerção que só contribui para manter tudo exatamente como está.

A lei e ordem, meramente repetidas, meramente reafirmadas sobre uma realidade social cheia de miséria e exploração, só fazem perpetuar o domínio do “mais forte”. A lei e a ordem, esvaziadas de um olhar crítico sobre a sociedade presente, são, portanto, as palavras-chaves da injustiça social mais atroz. Que ordem é esta? Para que e a quem serve esta lei? – Se a formação do jurista não o leva a questionar-se a esse respeito, então ela não cumpre a sua missão.

Por isso tudo, a formação do jurista deve ser uma formação para a luta. O inconformismo diante da ordem da desigualdade e da lei do mais forte só pode resultar na luta pela transformação social. Luta por uma outra realidade, na qual não existam nem o mais forte nem o mais fraco.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 16/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 20/12/2009.]

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

[Crítica Social] Para pensar o ensino jurídico

PARA PENSAR O ENSINO JURÍDICO

O conhecimento instrutivo e técnico, preparatório para exames simplistas e operatórios (OAB, concursos públicos, provas semestrais monodisciplinares...), é alienante, se desacompanhado de uma ampliação crescente da capacidade de leitura da realidade histórico-social.
Nenhum desses raciocínios técnico-operativos consente a formação de habilidades libertadoras, mas, muito pelo contrário, fornecem instrumentos para operar dentro do contexto de uma sociedade exacerbadamente competitiva, consumista, individualista e capitalista selvagem.
Nada impede que um operador do direito hoje, formado em uma boa e bem conceituada IES brasileira, seja autor de atitudes serenamente guiadas pelos mesmos princípios que levaram Hermann Goering, Rudolf Hoess, Joseph Goebbles, Wilhelm Keitel, Himmler e Eichmann a cometerem as mesmas atrocidades que cometeram à frente da máquina nazista. A visão de gabinete, a compreensão de mundo autocentrada, a idéia de responsabilidade restrita à dinâmica da responsabilidade do código de ética da categoria, a noção de mundo fixada pela orientação da ordem legal, a ação no cumprimento ‘estrito’ do dever legal... são rumos e nortes do agir do profissional bacharelado pelas Escolas de Direito que conhecemos.
Mas, a autonomia, conhecida e importante autonomia, esta é uma estranha desconhecida das Faculdades de Direito do Brasil. Não só não é cultivada, como quando dá mostras de sua aparição, é rápida e severamente repreendida.

A longa citação de Eduardo C. B. Bittar (O direito na pós-modernidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, pp. 390-391.) vale por cada uma de suas precisas e desmistificadoras palavras.

Que caminhos o nosso ensino jurídico tem seguido no sentido de impedir que Auschwitz se repita? Ora, no geral, nenhum... O ensino técnico e reificante, devassador da subjetividade, deformador do intelecto e da experiência, apenas submete o educando à completa heteronomia do mercado, portanto à completa mercadorização da vida humana. A redução alienante da realidade do direito à realidade do código, a limitação de uma educação meramente repetitiva da letra da lei, o formalismo que aniquila qualquer criatividade – tudo isto contribui sobremaneira para o desconhecimento do direito e do mundo, mas nunca para o conhecimento autenticamente formativo.

As deformações da consciência que marcaram os nazistas não estão, portanto, sendo superadas por este ensino jurídico, mas repetidas por ele. Pois o nazista, como se sabe, não se sentia sequer minimamente culpado pelas atrocidades que cometia: julgava estar apenas cumprindo a letra da lei, obedecendo estritamente às ordens da autoridade constituída, portanto rigorosamente atrelado ao seu dever, enquanto 6 milhões de judeus eram exterminados pelos atos de maior desumanidade já presenciados sob a face da Terra. Uma tal postura cega e incapaz de questionamento diante do suposto “dever” é exatamente o que se tem reproduzido em massa no ensino jurídico: o direito, assim, ao invés de discurso da liberdade, parece preferir funcionar como fábrica de autoritarismo.

Não é por acaso, então, que vemos por aí, nos corredores das faculdades de direito, o exato oposto do que ali se deveria encontrar: Himmlers, Goerings, Eichmanns e até, para o nosso máximo azar, Hitlers em miniatura.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 13/12/2009.]

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

[Crítica Social] O beija-flor e o incêndio

O BEIJA-FLOR E O INCÊNDIO

Qualquer um que se proponha a tentar – esta que parece ser uma tentativa sem fim – compreender o mundo por uma perspectiva crítica, autenticamente crítica, é obrigado a enfrentar, de tempos em tempos, propostas de “melhorar aos poucos”, especialmente aquelas que começam por “se cada um fizer a sua parte...” etc. Obviedades e clichês que só poderiam bastar a quem nunca se propôs a pensar seriamente as grandes mazelas do tempo presente – como, por exemplo, a velha fábula do beija-flor que, diante do incêndio na floresta, persiste sozinho na tentativa de apagá-lo – retornam invariavelmente e mesmo daqueles mais “bem intencionados”.

O que podem ser essas pequenas “melhoras”, essas reformas marginais, numa sociedade que estruturalmente, até a mais profunda de suas raízes, está condenada? O que pode ser a “melhora” da parte numa sociedade que, na sua totalidade, não pode gerar senão exploração, exclusão, miséria? Qual é a pequena parte que cada um poderia fazer para mudar este quadro? Que boa vontade, solidariedade ou boas ações poderiam ter algum efeito significativo?

Toda caridade não faz senão aliviar as necessidades mais urgentes de uns enquanto, perversamente, a estrutura social continua a produzir a miséria de tantos outros. Toda boa vontade, toda solidariedade, todo “amor ao próximo” se perde numa totalidade que se impõe e se perpetua independentemente da vontade ou das intenções daqueles que a ela se submetem. Tudo se dilui como menos do que uma gota no oceano: e este oceano infelizmente não será preenchido nem esvaziado “de gota em gota”.

Que ninguém me interprete mal. Não estou recomendando aqui o completo conformismo, a resignação irrestrita à realidade social tal como dada. Esta é a última postura que, em pleno uso de suas faculdades mentais, um crítico social recomendaria. Qualquer ação que siga na contramão da realidade dada, que contribua para mudanças, mesmo que superficiais, ou que simplesmente recuse contribuir para a perpetuação do mesmo é plenamente preferível à inação. Mas o que estou tentando dizer é que o inconformismo moderado e pouco exigente pode não ser o contrário do conformismo.

O contrário do conformismo só pode ser um inconformismo profundo, exigente, que não se dê por satisfeito com menos do que a transformação radical do mundo. Uma transformação que não se limita à parte, mas que atinge e transborda a totalidade da sociedade presente, que instaura uma sociedade autenticamente nova.

Afinal, quando a fábula do beija-flor é contada e recontada, ninguém se pergunta quais foram as causas do incêndio. Ninguém se pergunta o que leva os animais a pensar apenas em si próprios. Ninguém cogita por que tudo está desabando, mas todos se apressam em culpar aqueles que preferem fugir para salvar as próprias vidas. E ninguém conta, o que é muito suspeito, o verdadeiro final da história: o beija-flor, a despeito do seu esforço, morreu queimado...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 02/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 05/12/2009.]

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

[Crítica Social] Vida e consumo

VIDA E CONSUMO

Uma proposta ousada de diagnóstico do tempo presente. Isto é o mínimo que se poderia dizer sobre “Vidas à venda”, livro original e interessante recentemente lançado pela editora Terceira Margem. Organizado pelo professor da Faculdade de Direito da USP Eduardo C. B. Bittar e pelo poeta e professor universitário Tarso de Melo, o livro é resultado do esforço coletivo de membros do grupo de pesquisa “Democracia, Justiça e Direitos Humanos: estudos de teoria crítica” do Núcleo de Estudos da Violência da USP que buscaram, pela arte (isto é, crônicas, poesias, imagens etc.), dar vazão à necessária crítica da degradação da vida na realidade contemporânea.

Num momento em que, notadamente, o consumismo exacerbado suplanta tudo mais e torna-se o único sentido da existência humana, o livro parece mais do que oportuno. A ninguém é dado, é certo, viver sem consumir, portanto é necessário consumir para viver. Mas quando passamos a viver para consumir, como tem ocorrido hoje, algo profundamente diferente se instalou: esta inversão do meio pelo fim atesta o domínio completo da mercadoria sobre a vida.

Ora, é bem verdade que vivemos num mundo em que se coloca à nossa disposição uma enorme variedade de coisas fantásticas e admiráveis. Coisas que cada vez mais facilitam, embelezam, complementam nossas vidas. E, por isso, é, sem dúvida, muito mais confortável viver hoje do que há 50 anos. Temos comunicação instantânea, transportes velozes, tecnologia de ponta e uma variedade de cores, tipos e formas de produtos à venda numa dimensão antes sequer imaginável.

Mas este mundo de coisas tão fantásticas não é um mundo de liberdade. É um mundo de opressão na medida em que cada um de nós é constrangido a orientar a própria vida à aquisição, posse ou mesmo ostentação dessas coisas. Tudo se rende progressivamente ao consumismo: a educação que cada vez mais se reduz ao consumo da “mercadoria” ensino, a religião que cada vez mais se reduz ao comércio da “salvação” ou mesmo as relações de amizade que cada vez mais se constroem em conformidade com interesses utilitários e profissionais. E o acesso ao consumo se torna, então, o critério derradeiro de “inclusão” social: quem não tem acesso a esta ou aquela mercadoria simplesmente fica de fora, não faz parte, não é contado neste ou naquele grupo social.

Enquanto isso, enquanto as quinquilharias obstruem a nossa percepção da realidade, grassa a desmobilização política, a destruição do meio ambiente e uma absoluta resignação diante da massa crescente daqueles que, na miséria, não têm acesso ao consumo de nada. O consumismo se torna fator promotor das mais diversas modalidades de violência e, ainda assim, nós continuamos rendidos ao fanatismo pelas coisas. Isto porque, no fim, as nossas vidas se reduziram a estas coisas. E, sem que tenhamos clara consciência disso, nossas vidas estão mesmo à venda.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 25/11/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 01/12/2009.]

terça-feira, 24 de novembro de 2009

[Crítica Social] Reflexões às escuras

REFLEXÕES ÀS ESCURAS

O blecaute que atingiu grande parte do país no dia 10 último é, neste momento, a mais veiculada e discutida notícia da mídia brasileira. Debate-se, em especial, qual teria sido o motivo para a interrupção da transmissão elétrica – já que, de fato, parece não ser aquele divulgado oficialmente pelo governo federal. Este, no entanto, não é o problema que pretendo discutir aqui.

Independentemente do seu motivo, o blecaute dá ensejo a reflexões que, em geral, sob a luz constante da lâmpada elétrica, não se colocam. Pois, às escuras, diante da falha, ainda que por apenas algumas horas, revela-se a fragilidade do mundo contemporâneo que aparece, dia após dia, para cada um de nós, como sólido e infalível.

Dia após dia, cada um de nós circula num mundo repleto de coisas – coisas cada vez mais maravilhosamente tecnológicas e facilitadoras de nossas vidas. E cada um de nós se habitua a estas coisas, ao seu funcionamento regular, até que a realidade social e humana, toda ela, acaba por se confundir, aos nossos olhos, com as coisas ao redor.

Um aparelho eletrônico qualquer, por exemplo, aparece cotidianamente em nossas vidas até o ponto em que a sua própria existência aparece como “natural”. Apertar um botão, ligá-lo, servir-se de seu funcionamento etc., tudo isso se torna igualmente “natural”. E assim tudo que resta para além desta naturalidade da coisa desaparece: como aquilo foi construído? como foi projetado? como chegou até onde está? como funciona? o que é preciso para que funcione?

A interrupção do funcionamento, porém, põe a descoberto, de um só golpe, toda a artificialidade daquilo que parecia tão “natural”. A interrupção denuncia que o aparelho está ligado à tomada, que está conectada à instalação elétrica do edifício, que recebe energia da rede de transmissão, que recebe energia das usinas elétricas etc. Cada um desses elementos tem a sua própria história, cada um foi construído por homens determinados – e a falha em qualquer um deles causará o não-funcionamento do aparelho. Aquilo que até então parecia simples e óbvio, o ato de apertar o botão, passa a figurar transparentemente em sua alta complexidade.

A lâmpada, a TV, o rádio, o computador ou mesmo a geladeira que não funcionam diante da falta de eletricidade aparecem, então, como o que de fato são: produtos do trabalho humano. Coisas feitas pelos homens e, portanto, falíveis. Coisas feitas pelos homens e, portanto, imersas num contexto social e histórico determinado. O aparelho como coisa materializa apenas no extremo final um longo processo constituído não por coisas, mas essencialmente por relações sociais. São essas relações sociais que importam e determinam mesmo quando a questão do funcionamento ou não-funcionamento parece dizer respeito apenas às coisas.

Hacker ou raio? – não é esta, portanto, a questão fundamental acerca do blecaute. A questão fundamental é ainda: que sociedade é esta em que vivemos?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 18/11/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 22/11/2009.]

terça-feira, 17 de novembro de 2009

[Crítica Social] História do direito e teatro

HISTÓRIA DO DIREITO E TEATRO

A concepção dominante acerca do que é a teoria e de quais são os seus limites tende a reduzir a arte um mero resultado do acaso e do irracional, portanto algo de que nenhum conhecimento verdadeiro poderia ser extraído. A arte seria, assim, uma espécie de “lata de lixo” do espírito, uma vez que todo conhecimento que não o estritamente racional, esquadrinhado e sistematizado poderia adentrar o hermético e exclusivo campo da teoria.

Isto, no entanto, não passa de imposição de uma racionalidade formal e instrumental que pretende autoproclamar-se a única fonte de todo o saber. Há, sim, muito conhecimento a encontrar nas fronteiras para além da teoria, notadamente na arte. E isto por, pelo menos, dois grandes motivos.

Primeiro, a arte não é um simples produto do devaneio desconectado da realidade. Toda música, pintura, escultura, literatura etc. é sempre produzida por homens muito concretos e reais, sempre num dado contexto social muito concreto e real. Toda arte expressa, portanto, a seu modo, a realidade dos homens por quem foi produzida e da sociedade em que foi produzida.

Segundo, a realidade não é, por si mesma, racional. Assim, a racionalidade instrumental da teoria não é a única abordagem possível da realidade. O que, na própria realidade, transborda os limites da racionalidade escapa à teoria – mas não necessariamente escapa à arte. Ou seja, a arte pode exatamente depor a respeito daquilo que a teoria, limitada que é, não dá conta.

O preconceito teórico contra a arte, no entanto, desconsidera essas questões. E isto se agrava ainda mais numa área teórica tradicionalmente fechada e conservadora como o Direito, na qual quaisquer propostas minimamente críticas ou inovadoras tendem a ser vistas com severa desconfiança. Mas esta desconfiança pode – e deve – ser quebrada.

Aliar o ensino de História do Direito com teatro é algo que, como uma pequena contribuição ao meu alcance, tenho tentado – e com bons resultados. Trata-se de uma proposta interdisciplinar que abre aos estudantes a possibilidade de encarar questões históricas por uma perspectiva completamente diversa da tradicional. Uma perspectiva diversa que, no geral, leva a uma assimilação visivelmente melhor por parte dos estudantes.

Quem duvida, por exemplo, que as peças do teatro grego clássico expressam, de algum modo, algo da juridicidade daquele tempo? A “Antígona” de Sófocles ou “As nuvens” de Aristófanes, por exemplo, trazem claras mostras para a história do direito. Assim também “O mercador de Veneza” de Shakespeare, no qual o direito na Idade Moderna européia aparece claramente retratado. E, daí por diante, muitas e interessantíssimas peças mais.

Por que, então, não colocar a teoria para dialogar com a arte? A história e o direito para dialogar com o teatro?

[Publicação: DIÁRIO (Dracena-SP), 15/11/2009.]

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Na última sexta-feira, dia 6 de novembro, no III Congresso de Iniciação Científica das Faculdades Integradas Padre Albino, obtiveram o primeiro lugar, na área de Direito, as pesquisas “Um grito de esperança” (da Faculdade Barretos) e “História do direito e teatro”. Esta última é desenvolvida por um grupo de iniciação científica, por mim orientado, que reúne estudantes do 1º e 2º anos do curso de Direito das FIPA. A apresentação ficou a cargo de Henrique Brino, estudante do 2º ano e atual presidente do Centro Acadêmico do curso, que muito bem representou o grupo na ocasião.

Iniciada em maio último, a pesquisa sobre “História do direito e teatro”, ainda em suas primeiras fases de desenvolvimento, antecipa assim que pode render bons frutos. O tema original, que associa, de modo interdisciplinar, história, direito e arte, busca romper com uma série de preconceitos longamente arraigados numa área tradicional e conservadora como o Direito. É, afinal, ao contrário do que usualmente imagina o jurista, perfeitamente possível conhecer o Direito por meios outros que não exclusivamente os códigos, os manuais técnicos, as coletâneas de jurisprudência – a arte pode, nesse caso, desempenhar um papel de grande importância, abrindo horizontes amplos e fecundos para os estudantes.

A premiação vem demonstrar esse potencial e, igualmente, coroar a inciativa daqueles que tiveram interesse em levar adiante um projeto tão ousado. De um lado, o coordenador de pesquisa do curso de Direito das FIPA, Camilo Onoda Caldas, e o então coordenador geral do curso, Alysson Leandro Mascaro, que, desde o primeiro instante, acolheram e incentivaram o projeto por mim idealizado. Do outro lado, e com especial destaque, os estudantes do curso de Direito das FIPA, membros do grupo de iniciação científica, que com dedicação e empenho ímpares têm tornado as leituras, discussões e demais atividades de pesquisa sempre profícuas e interessantes.

O grupo “História do direito e teatro” deverá prosseguir, nos próximos meses, essas atividades e aprofundá-las sempre mais. A pesquisa deverá ser ainda apresentada em outros congressos e, ao longo de 2010, deverá se concretizar em publicações científicas que divulguem os seus resultados. A esperança geral é que, ao fim, esta pesquisa possa, nesses tempos sombrios de mercantilização e tecnificação cegas do ensino jurídico, em que tudo que parece importar são as porcentagens de aprovação no exame da OAB, contribuir, na contramão, para manter acesa a chama do pensamento multidisciplinar, aberto e crítico.

[Publicação: O REGIONAL (Catanduva-SP), 11/11/2009.]

terça-feira, 10 de novembro de 2009

[Crítica Social] World Trade Center e USS New York

WORLD TRADE CENTER E USS NEW YORK

Têm sido notícia, na grande mídia, nos últimos dias, o novo navio de guerra da marinha dos EUA, o USS New York. Não que um navio (ou qualquer instrumento de morte e destruição) a mais à disposição da maior potência militar do mundo seja, por si só, algo a se noticiar tão insistentemente, mas o USS New York tem chamado a atenção porque parte de sua estrutura foi construída com 7,5 toneladas de aço provenientes dos escombros do World Trade Center.

Significativo constatar que, depois da tragédia de setembro de 2001, o governo norte-americano tenha utilizado o que sobrou das “torres gêmeas” de Manhattan para construir uma arma – arma que recebeu, como uma espécie de “homenagem”, precisamente o nome da cidade onde se abateu a tragédia. Significativo porque ninguém pôde pensar em nada melhor para fazer com os escombros do terror e da violência do que um instrumento de terror e violência – e assim um ciclo vicioso de agressão, militarismo e belicismo é retro-alimentado de modo a garantir a continuidade de seus repugnantes efeitos.

O ataque à Nova Iorque não foi, não sejamos ingênuos, motivado por nada. É evidente que o terrorismo não é justificável, mas é igualmente evidente que sua causa última é a violência de longa data do ocidente em geral e dos EUA em particular aos povos do oriente médio. E as “respostas” do governo norte-americano aos atentados terroristas são bem conhecidas, até porque foram transmitidas ao vivo pelas emissoras de TV. O “combate ao terror” serviu de argumento para discutíveis incursões militares no Afeganistão (em 2001) e no Iraque (em 2003) que se arrastam até o presente instante.

Em todos os casos, as derradeiras vítimas são civis, inocentes, pessoas que nada têm a ver com os conflitos em questão. Isto vale tanto para os milhares de americanos mortos em função dos ataques terroristas quanto para os milhares ou milhões de pessoas do oriente médio que já perderam a vida em função dos tiros e bombardeamentos da guerra ou da miséria, fome e perseguição decorrentes. Mas aparentemente tudo isso se esquece perante a imagem portentosa de um novo navio de guerra flutuando na costa de Nova Iorque.

Ao invés de se buscar um fim para isso, um ponto final para tamanha barbárie, o que se parece buscar é exatamente o contrário. Um navio para “homenagear” Nova Iorque e as vítimas do 11 de setembro... mas um navio de guerra, porque a única “homenagem” que se pode cogitar parece ser a da vingança. E os vingados, por sua vez, buscarão, amanhã, mais vingança. Depois de amanhã, novamente. Até quando?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 04/11/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 08/11/2009.]

terça-feira, 3 de novembro de 2009

[Crítica Social] Tecnologia e saber - semi-informação

TECNOLOGIA E SABER - SEMI-INFORMAÇÃO

Na edição anterior desta coluna, tentei mostrar que o controle do acesso ao saber integra o processo social de dominação e que, na sociedade capitalista, tal controle é dado através da redução da informação e do conhecimento à forma de mercadoria. Só tem acesso à mercadoria quem pode pagar por ela e, portanto, mesmo os progressos técnicos dos meios de comunicação, a despeito de encarados com muito otimismo, não servirão efetivamente à democratização do saber enquanto não for superado o caráter mercantil deste.

Há, no entanto, algo mais a considerar. Democraticamente ou não, o desenvolvimento dos meios de comunicação de fato propicia uma maior difusão das informações. Notícias do outro lado do planeta que, décadas atrás, levariam semanas para chegar, agora chegam instantaneamente. A guerra e o desastre em qualquer lugar são transmitidos ao vivo. A grande mídia tornou-se quase onipresente e, assim, já não existe a opção de manter o dominado em estado de total desinformação.

Paradoxalmente, no entanto, esta maior difusão não contribui para que o dominado tome consciência de sua própria condição. Ao contrário do que seria natural supor, este processo parece gerar mesmo mais conformismo. Isto se deve, sem dúvida, ao modo pelo qual esta ampla difusão tornou-se (e se torna cada vez mais) possível.

Convertida em indústria cultural, a grande mídia reproduz a lógica de dominação e exclusão social do capital ao produzir, como toda indústria, simultaneamente o seu produto e o seu consumidor. O seu produto é a informação fabricada em série, para o “grande público”, tal como sabão em pó ou fast food, o que implica em despolitização, homogeneização e, portanto, descaracterização da própria informação. E o seu consumidor é aquele que se informa (assim como se entretém, se educa etc.) exclusivamente por este caminho, ou seja, a indústria cultural.

Informando ostensivamente sobre tudo que não nos importa saber, a indústria cultural, nesse mesmo movimento, bloqueia a compreensão do que é mais relevante e urgente. Não há meio mais eficaz de fazer desconhecer algo do que obrigar a conhecê-lo só pela metade. Descobriu-se, afinal, que mais eficaz do que a desinformação é a semi-informação, a informação pela metade.

Assim, se a falta total de informação ao dominado contribui para a perpetuação do dominante, o excesso de informação industrializada não atua de modo diferente. O bombardeamento massivo de informação instantânea pela grande mídia conduz o seu consumidor a um estado de indiferença quanto ao que é informado. No flash do telejornal, a fome na África e o resumo do próximo capítulo da novela, a violência urbana e as fofocas de celebridades – tudo se torna indistinto. A informação perde o seu sentido quando a própria velocidade frenética do seu noticiamento impede a reflexão a seu respeito – ela passa a ser consumida mecanicamente como tudo mais na sociedade ultraconsumista contemporânea.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 28/10/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 01/11/2009.]

terça-feira, 27 de outubro de 2009

[Crítica Social] Tecnologia e saber - mercadoria

TECNOLOGIA E SABER - MERCADORIA

Parece ter se difundido, nos últimos tempos, um certo deslumbramento acerca das possibilidades de “democratização” do acesso ao saber através do progresso dos meios de comunicação. A difusão universal da transmissão de TV e a (suposta) popularização da internet estariam introduzindo maneiras de “quebrar” uma antiga desigualdade entre ricos e pobres no acesso à informação e ao conhecimento. Em cima disso, a grande mídia propagandeia sem parar a sua própria popularização e os governos insistem em buscar aumentar seus índices de aprovação com programas de inclusão digital. Mas será mesmo que tanto otimismo se justifica? Vejamos.

A exclusão da informação e do conhecimento é mecanismo longamente aliado da perpetuação das relações sociais de dominação. Quanto mais desinformado o dominado, afinal, mais fácil a vida do dominador. Quanto menos consciente – em especial, acerca de sua própria condição – o dominado, menor tende a ser a resistência oferecida ao processo social de domínio.

Isto foi assim mesmo em sociedades muito antigas. O escravo era, em geral, um bruto, reduzido à desumana condição de coisa, de modo que o seu desenvolvimento intelectual era absolutamente desnecessário. O servo era um alienado, tudo que importava era o “reino de deus” e não a sua própria miséria em vida. O acesso à cultura era um privilégio – e o dominado jamais o teria.

Na sociedade capitalista, no entanto, algo diferente se passa. A posição social não define de antemão e sem escapatória a possibilidade de acesso ao saber. O mais miserável dos trabalhadores pode assistir ao mesmo noticiário que o patrão. E o filho do trabalhador, caso seja, a despeito da disparidade na concorrência, aprovado no vestibular, poderá cursar a mesma universidade pública em que estuda o filho do patrão.

Isto ocorre na medida em que a informação e o conhecimento assumem, como tudo na sociedade capitalista, a forma de mercadoria. E a mercadoria é “democrática”: está sempre acessível a todos... que puderem pagar o seu preço...

Uma “democracia” assim magnífica mostra-se, então, paradoxalmente, a mais eficiente forma de perpetuar a exclusão. A não ser por raríssimas exceções, o mecanismo social que define quem obtém e quem não obtém o saber garante, na suposta universalidade do acesso, a manutenção da disparidade em favor daqueles situados nas camadas sociais privilegiadas.

Nenhum progresso técnico será apto a romper esta disparidade, isto é, a desigualdade de acesso ao saber que contribui para a perpetuação do processo de dominação, enquanto a própria forma mercantil do saber não for rompida. Antes disso, todo o progresso técnico servirá, acima de tudo, para levar este processo ainda mais longe.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 21/10/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 25/10/2009.]

terça-feira, 20 de outubro de 2009

[Crítica Social] Greve e direito

GREVE E DIREITO

O direito de greve está garantido no Brasil. Uma leitura rápida do art. 9º da Constituição Federal de 1988 não deixa dúvida: lá está, límpido e claro, entre os direitos sociais assegurados aos brasileiros. Mas a greve deve ser considerada como muito mais do que simplesmente um direito.

Não fosse a greve, como meio organizado de protesto e de luta dos trabalhadores, as condições mais miseráveis e desumanas de trabalho jamais seriam mudadas. Não que as condições de trabalho sejam, no capitalismo contemporâneo, um “paraíso na terra”, mas se são algo melhores do que as condições do séc. XIX nas fábricas européias, nas quais crianças de 10 anos trabalhavam 16 horas por dia em ambientes insalubres e em troca de centavos por dia, num contexto em que expectativa de vida do trabalhador não passava de 40 anos, isto se deve, sem dúvida, à greve.

O capital não é “bonzinho”, não faz caridade e não tem boas intenções – seu único fim é multiplicar a si mesmo. A conta é, na verdade, bastante simples: quanto menos for entregue ao trabalhador, mais se converte em lucro. Por isso o capital não aumenta salários e não melhora as condições de trabalho “gratuitamente”.

Claro que não faltam aqueles que tentam complicar a equação. Chegam a dizer que o progresso econômico automaticamente cuida de oferecer, pouco a pouco, condições mais dignas aos trabalhadores. Não pode haver ilusão maior. Sem luta, sem greve, não há conquista: as condições de trabalho estariam ainda piores do que há 100 anos e os lucros estariam elevados à última potência.

Mas mesmo com algumas conquistas já asseguradas, com direitos trabalhistas etc., a luta dos trabalhadores não pode cessar. Ainda há muito o que conquistar. E é preciso ter em conta que a luta é cada vez mais difícil. Num contexto em que a precarização do trabalho (isto é, trabalho sem “carteira assinada”) é cada vez mais acentuada, em que o desemprego estrutural é cada vez mais assustador, em que pequenas satisfações pelo consumo tendem a desmobilizar os trabalhadores quanto ao essencial, as possibilidades da greve estão cada vez mais reduzidas.

Na era do e-mail e do caixa eletrônico, a greve dos trabalhadores dos correios ou dos bancários tem cada vez menos impacto. Na era da mecanização, em que algumas máquinas substituem uma multidão de trabalhadores, a greve dos operários pode até ser contornada. É exatamente nesse momento que, não por acaso, a greve é reconhecida como direito.

Para piorar, num momento assim desfavorável ao trabalhador, em que a luta talvez seja necessária como nunca, há ainda quem pense de maneira retrógrada que greve é “coisa de quem não quer trabalhar”. Mas os trabalhadores não devem dar ouvidos a isso. Para que o futuro seja melhor que o presente, é necessário prosseguir com as greves e, mais ainda, encontrar meios de luta que conduzam ainda além

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 14/10/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 18/10/2009.]

terça-feira, 13 de outubro de 2009

[Crítica Social] "Software livre" e capitalismo

“SOFTWARE LIVRE” E CAPITALISMO

Tornou-se discurso freqüente, nos blogs e demais canais de discussão da internet, a associação entre “software livre” e alguma modalidade de crítica ao capitalismo. Ou mesmo entre “software livre” e socialismo. Há nisso algum exagero – sou plenamente favorável ao “software livre”, mas não apostaria tão alto em suas potencialidades.

Em primeiro lugar: o que é, afinal, “software livre”? Resumidamente, é todo software disponibilizado para uso em computadores pessoais de modo gratuito e sem limitações. São criados por programadores ou instituições sob licença livre e distribuídos de maneira não-comercial. Em alguns casos, chega-se mesmo a disponibilizar o código do software (“open source” ou “código aberto”) para que quem assim desejar possa alterá-lo e redistribuí-lo livremente.

De um modo geral, o “software livre” se apresenta hoje como alternativa ao software comercial mais largamente difundido e conhecido. Assim, por exemplo, ao Internet Explorer, ao Office e ao Windows da Microsoft há alternativas como o Firefox, o OpenOffice, as várias distribuições do Linux. Diversamente das opções tradicionais, que são vendidas, as alternativas podem ser baixadas, instaladas e utilizadas gratuitamente – e funcionam perfeitamente.

Tendo em vista que a distribuição gratuita é efetivamente mais democrática, penso que é interessante incentivá-la. Embora limitada em seu alcance, esta é, sim, uma atitude de crítica e, em certo sentido, até mesmo de resistência ao mundo capitalista. Só isso basta para fazer valer a pena migrar, quando possível, do software comercial para as opções abertas.

Um argumento comumente levantado em contrário apela à dificuldade de utilização oferecida pelo “software livre” ao usuário comum. Isto, no entanto, é uma falácia. Para o usuário habituado, por exemplo, com o Windows da Microsoft, o Linux parecerá, de fato, complicado – mas isto exatamente porque o usuário já está habituado a um sistema operacional e, portanto, sentirá dificuldades para lidar com qualquer outro. Tudo se resume a uma questão de adaptação. Um pouco de tempo e um pouco de boa vontade bastarão para que o usuário realize as mesmas tarefas, com a mesma (ou até maior) praticidade, com “software livre”. (Esta coluna, por exemplo, foi escrita com o processador de texto do OpenOffice rodando sobre a distribuição Sabayon do Linux).

A simples distribuição não-comercial faz, de fato, pelo menos um pouco, o mercado de software balançar. Isto já é alguma coisa. A ilusão reside em crer que isto pode, de algum modo, ameaçar a própria forma de mercadoria da tecnologia informática. Não se trata do advento do socialismo. Daí não advirá nenhuma transformação social. Mas se o “software livre” não ajudará a transformar o mundo, é certo que ao menos não irá atrapalhar.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 07/10/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 11/10/2009.]
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Mais informações em:

terça-feira, 6 de outubro de 2009

[Crítica Social] Pobreza e discriminação - esnobismo

POBREZA E DISCRIMINAÇÃO – ESNOBISMO

Na última edição desta coluna, tratei da discriminação contra a pobreza determinada por uma visão moralista da vida social, visão que projeta sobre o pobre, vítima de uma estrutura social fundada na exploração, a responsabilidade por sua própria situação – o que contribui perversamente para o agravamento da já penosa situação de quem vive na pobreza.

É preciso, contudo, considerar que este moralismo tradicional que reproduz o núcleo iníquo da sociedade mercantil capitalista não está só. Há algo mais por detrás da discriminação social hodierna. Algo que parece tornar ainda mais presente e ainda pior esta discriminação.

Na sociedade contemporânea, as desigualdades sociais simultaneamente se aprofundam e se esfumaçam. Trata-se de uma sociedade cada vez mais desigual, mas na qual a desigualdade já não se apresenta apenas na oposição entre rico e pobre. Há ricos e pobres, mas há também diversas classes médias que os permeiam, há inúmeras camadas de excluídos e miseráveis que, a rigor, estão ainda abaixo da pobreza mesma.

Mais ainda, esta é uma sociedade que se rende cada vez mais irrestritamente ao consumismo. Um consumismo cada vez mais voraz, verdadeiramente absurdo. E o próprio consumo se torna então fator de distinção social: quem pode comprar o carro “X”, o tênis “Y”, a parafernália eletrônica “Z” etc. está acima de quem não pode consumir as mesmas coisas.

Ao moralismo tradicional vem somar-se, então, um desejo de diferenciação pelo consumo, desejo de estar acima dos demais pela ostentação da mercadoria glorificada e cultuada. É o desejo de “ter” algo mais para “ser” algo mais do que o outro – sob a ilusão própria dos tempos contemporâneos de que o consumo é capaz de tal transmutação de “ter” em “ser”.

Numa sociedade como a brasileira, em que o passado estamental e oligárquico jamais foi inteiramente superado, esta combinação de moralismo e consumismo cai como uma luva e se manifesta com máxima sordidez. Nesta sociedade em que as camadas dominantes parecem sentir verdadeira repulsa perante a simples possibilidade de se confundirem com as camadas dominadas, a discriminação social assume contornos de escárnio. Algo como a ridicularização permanente do pobre – que não se veste, não se transporta, não mora, não trabalha, não fala etc. como os membros das classes altas. Algo como o orgulho descarado de estar “acima” do outro. A discriminação contra a pobreza atinge seu ápice, no Brasil, como verdadeiro esnobismo social.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 30/09/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 03/10/2009.]

terça-feira, 29 de setembro de 2009

[Crítica Social Pobreza e discriminação - moralismo

POBREZA E DISCRIMINAÇÃO – MORALISMO

Uma tradicional visão moralista concebe a pobreza como resultado de uma falha individual de caráter. Seria o desapego do pobre ao trabalho, o seu desleixo, a sua indisciplina etc. que o levariam a ser pobre. A pobreza seria, portanto, deste ponto de vista, “culpa” do próprio pobre que, pouco disposto ao esforço e ao sacrifício pessoal, restaria nesta condição por falta de dedicação ou de empenho suficientes para ascender socialmente.

Mas será mesmo que alguém, por pura preguiça, toleraria permanecer numa situação de falta recursos sequer para o essencial para a sua família? Será mesmo que alguém, por pura falta de empenho, toleraria passar fome, não ter um teto, não ter nada? Nada poderia ser mais absurdo. Vê-se, de pronto, que se trata de um entendimento absolutamente vazio, infundado, baseado tão-somente em preconceito. Reducionista e, por isso, equivocada desde o princípio, esta visão moralista apenas contribui para a perpetuação da discriminação que atinge os mais pobres – discriminação que, de maneira perversa, agrava ainda mais a condição de quem vive na pobreza.

Ora, basta analisar um pouco mais a fundo. A sociedade mercantil capitalista é, na sua essência, erigida sobre uma desigualdade econômica estrutural entre uma massa de despossuídos e uma ínfima parcela de possuidores. A existência dos despossuídos e, mais do que isso, a sua existência em número muito superior ao número de possuidores, não é acidental. Só assim pode funcionar o ciclo do próprio capital, porque este ciclo só pode funcionar a partir da exploração daqueles que nada possuem exceto a sua própria força de trabalho.

Fica claro, então, que a transposição da questão da pobreza para um nível individual é, no fim das contas, uma maneira veemente de recusar observar a própria dinâmica da sociedade. É uma forma de atribuir ao indivíduo algo que em muito o ultrapassa: não basta “querer” acender socialmente se a própria raiz desta sociedade simplesmente bloqueia esta opção. A pobreza está calcada no núcleo estrutural da sociedade presente. A sociedade capitalista, na verdade, não pode eliminar a pobreza – a eliminação completa da pobreza exigiria a eliminação do próprio capitalismo.

O moralismo que discrimina a pobreza é o exato ponto de vista da classe dominante que, exatamente por ser dominante, não pode conceber – isto é, admitir – a responsabilidade do próprio domínio na gênese da pobreza. Algo parecido com aquilo que recebe, na psicologia, o nome de projeção. Manobra típica daqueles que, no fundo, estão em situação de sentir alguma “culpa” e, por isso mesmo, atribuem-na, para não ser preciso enfrentá-la, para o outro – para a própria “vítima”.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 23/09/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 27/09/2009.]

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

[Crítica Social] H1N1 e terror

H1N1 E TERROR

A pandemia da gripe A (H1N1), outrora “gripe suína”, tornou-se uma epidemia do terror. Desde que instalado o surto de contaminação pelo novo vírus, a grande mídia parece não querer mudar de assunto, números de vítimas são divulgados a cada segundo, “dicas” de prevenção são veiculadas incessantemente etc. O resultado disso é uma atmosfera de obsessão coletiva que tomou conta da ordem do dia. Dos jornais que fizeram dos “informes” sobre a gripe A um espaço permanente de suas grades à onipresença do álcool-gel para a desinfecção das mãos, estão dadas as demonstrações de um estado de pânico social.

Não pretendo com isso dar a entender que a gripe A não deve ser levada a sério. Deve, não há dúvida. Como toda gripe, esta se espalha rapidamente e pode – como de fato tem ocorrido – levar a óbito. Assim, todos os cuidados possíveis com a prevenção e, nos casos de contaminação, toda a atenção possível ao tratamento são o mínimo – isto não pode faltar, quer por parte dos indivíduos, quer por parte das autoridades públicas.

Minha censura se dirige especificamente ao clima de pânico construído em torno da gripe A. O noticiamento exaustivo, a superexposição midiática, a preocupação governamental em demonstrar providências tomadas – nada disso é, no fim das contas, acidental. Quais os reais motivos para tanto barulho por conta da nova gripe? O que resta por detrás de tanto alarde?

Observemos com cuidado. Segundo dados oficiais divulgados pelo Ministério da Saúde no dia 2 último, foram, ao todo, até o final de agosto, 6592 casos confirmados e 657 mortes. Os números não são, é certo, insignificantes. Mas também os dados do Ministério da Saúde apontam, por exemplo, 4823 mortes por tuberculose em 2006. No mesmo ano, 2236 mortes, entre crianças de até 5 anos, por diarréia. 2798 mortes por acidentes de trabalho em 2006 e 2804 em 2007.

Ora, essas mortes, contabilizadas aos milhares, estranhamente não são noticiadas. Doenças perfeitamente curáveis matam, no Brasil, ano após ano, em volume avassalador e nem a grande mídia nem o poder público demonstram extraordinária preocupação a respeito. O trabalho continua a matar tantos e tantos trabalhadores, em geral pelo puro desleixo quanto às condições mínimas de segurança, sem que nenhuma mobilização social a respeito seja levantada.

O ostensivamente visível recobre o invisível – o que deve permanecer invisível – da sociedade. Nisto também se enquadra a situação atual da gripe A. O que se impõe, neste momento, é questionar: por quê?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 16/09/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 23/09/2009.]

terça-feira, 15 de setembro de 2009

[Crítica Social] Filosofia? Direitos humanos?

FILOSOFIA? DIREITOS HUMANOS?

Segundo dados divulgados na semana passada pela Ordem dos Advogados do Brasil, o índice de aprovação no último exame nacional de ordem, requisito para que bacharéis em direito exerçam a advocacia, foi particularmente ruim para o estado de São Paulo. Pela primeira vez os egressos dos cursos de direito paulistas participaram de um exame nacional, e não local e específico, de modo a permitir a comparação com outros estados – e São Paulo obteve a segunda pior colocação, com apenas 15,6% de aprovação.

São Paulo é, não por acaso, o estado brasileiro em que a proliferação desordenada e mercantilizada de cursos superiores se apresenta mais claramente. É também o estado em que os cursos de direito são marcados por um caráter acentuadamente técnico, não raro orientados de modo explícito para preparar os estudantes exatamente para o exame de ordem. Estes fatores devem ter alguma influência sobre o desempenho pífio apresentado.

Talvez baste, para entender melhor a questão, olhar para o extremo oposto da tabela. Dentre todos os cursos do Brasil, o que obteve melhor desempenho foi o da Universidade de Brasília, com 97,2% de aprovação. E a própria UnB declara que seu sucesso é devido “a um processo seletivo eficiente, à ênfase nas disciplinas humanistas e ao incentivo ao protagonismo do estudante” (Estado de S. Paulo, 03.09.2009). Ora, algo disso não está seriamente em falta nos cursos de direito paulistas?

Há quem pense que “essas coisas de filosofia e direitos humanos” são, nos cursos de direito, perda de tempo. Pensam que tudo que importa é formar juristas “práticos” – “técnicos” do direito, não “filósofos”, não “críticos”, não “teóricos”. Nos cursos de direito tecnocráticos e voltados exclusivamente ao mercado, este é exatamente o pensamento dominante. Ignoram, porém, algo essencial: a teoria sem prática pode ser ruim, mas a prática sem teoria pode ser ainda pior.

A prática do direito sem teoria, alheia à teoria, é, afinal, nada mais do que repetição cega e confirmação irrefletida desta realidade social cheia de mazelas que o direito só faz confirmar – ainda mais quando aplicado automaticamente, acriticamente, à maneira do tecnicismo reinante. A orientação imediata à prática tende a produzir este deletério efeito: faz com que os estudantes saiam dos cursos de direito sem saber o que exatamente é o direito e para que serve.

Paradoxal é que para quem pensa que tudo se resume à prática e à técnica, enfim, à completa insensibilidade crítica, o que costuma importar mais é exatamente o resultado da OAB. “Filosofia? Direitos humanos? Isto não enche barriga e não cai na OAB!” – é algo freqüente de se ouvir de estudantes de direito e mesmo de professores. Pois bem. Os resultados mostram que estão errados.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/09/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 13/09/2009.]

terça-feira, 8 de setembro de 2009

[Crítica Social] A força dos estudantes

A FORÇA DOS ESTUDANTES

Muitas das grandes forças sociais transformadoras, talvez a quase totalidade delas, simplesmente desconhecem os reais limites de suas potencialidades. Exemplo bastante claro disso é dado nos dias de hoje, sem dúvida, pelos estudantes. O outrora ativo e combativo movimento estudantil parece agora desorganizado e dormente, silente mesmo diante de situações críticas.

Isto pode ser explicado, penso, por dois principais fatores. Em primeiro lugar, porque a geração contemporânea de estudantes é dos anos 90, uma geração pós-queda do Muro de Berlim, para a qual a democracia formal parece “natural” e para a qual a política está “morta”. Em segundo lugar, porque o desemprego estrutural e a concorrência cada vez mais acirrada por “postos de trabalho” conduzem o estudante a ver no sistema de educação apenas uma qualificação adicional que o favorecerá no mercado, um “trampolim” para um emprego melhor.

Como se nada mais importasse, a realidade contemporânea constrange o estudante a pensar: Para que política, se tudo que importa é salvar a minha própria pele? Para que engajamento, se nada vai mudar no mundo? Para que luta conjunta, se os outros estudantes são meus “concorrentes”? E assim o estudante não apenas não vê motivo para lutar, mas também não se sente capaz de fazê-lo – a sociedade o constrange a pensar que movimento estudantil é sinônimo de “baderna” e que estudante só tem mesmo é que estudar (i.e. decorar informações).

Hoje, contudo, parece necessário que os movimentos estudantis despertem novamente. O agravamento das desigualdades sociais, os desvios cada vez mais sérios da política partidária, o empobrecimento cultural que avança na mesma espantosa velocidade do desenvolvimento dos meios de comunicação – tudo isso clama por posicionamento dos estudantes.

Em especial, a situação cada vez mais alarmante da mercadorização do ensino exige cada dia mais vigorosamente a resistência daqueles que são os maiores interessados. Notadamente no ensino superior, em que faculdades caminham para se tornar cada vez mais escancaradamente fábricas de diplomas, uma tal resistência se mostra urgente.

Lutar contra um ensino cada vez mais vazio, cada vez mais tecnocrático, cada vez mais voltado para a satisfação dos interesses do mercado e cada vez menos para a compreensão da realidade – por um ensino crítico, autenticamente formador e emancipador.

Lutar, mais ainda, por uma sociedade diferente. Recusar resignar-se ao presente, pois o presente não é imutável – nada é imutável. O poder para tanto reside nas mãos dos estudantes – é por estas mãos, afinal, que será construído o futuro.

Enfim: estudantes, eis o seu momento.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 02/09/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 06/09/2009.]

terça-feira, 1 de setembro de 2009

[Crítica Social] Realidade social e pensamento crítico

REALIDADE SOCIAL E PENSAMENTO CRÍTICO
(...) toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente.
– Karl Marx
As questões sociais são, de um modo geral, encaradas de uma maneira acrítica, superficial ou mesmo preconceituosa. Não é raro ouvir ou ler, por exemplo, que existe pobreza porque “pobre não gosta de trabalhar”, que os sem-terra ou os sem-teto são “baderneiros que querem tomar a propriedade alheia” ou que a pouco significativa expressão “o brasileiro não tem cultura” explica grande parte das mazelas de nossa realidade social. Tudo isto é insuficiente e equivocado: é muito mais uma maneira de desconhecer ou de negligenciar as questões sociais e, portanto, não é compatível sequer com uma proposta séria de pensar a realidade.

É claro que as questões sociais não são questões aritméticas e, por não serem exatas, comportam análises, interpretações e visões as mais diversas. E nenhuma dessas visões pode ingenuamente clamar exclusividade ou supremacia sobre todas as demais, já que é a complexidade do próprio todo social que enseja essa multiplicidade de entendimentos. Mas é exatamente esta complexidade que põe de imediato todo entendimento abusivamente simplificador do social em irremediável descompasso com a realidade.

As visões baseadas tão-somente em moralismo, estereótipos e lugares comuns exemplificam perfeitamente um tal descompasso. São visões que nada revelam, nada explicam, apenas fazem perpetuar a alienação e, portanto, não contribuem nem para a precisão dos conhecimentos sociais nem para alteração da sociedade presente. Uma perspectiva de pensamento que se pretenda séria precisa ir além. Uma perspectiva que, mais ainda, não se resigna perante a opressão, a exploração e a indignidade da miséria e da indigência precisa ir mais longe ainda. Uma perspectiva crítica da sociedade, quero dizer, uma perspectiva que busca não apenas o conhecimento teórico e distante, mas também a transformação efetiva da realidade, precisa enfrentar as questões sociais pelas raízes, precisa buscar nas profundezas da estrutura última da sociedade as explicações para os acontecimentos sociais do dia-a-dia.

A crítica social a que pretendo dedicar esta coluna terá por fundamento esta última perspectiva. O objetivo é singelo, nada além de parar para pensar. Pensar radicalmente. Ousar questionar. Questionar eventualmente o inquestionável. Questionar e conhecer sem resignar. Conhecer para transformar. Eis as chaves para o que virá daqui por diante.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 27/08/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 30/08/2009.]

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

[NJ] Desenvolvimento... sustentável?

DESENVOLVIMENTO... SUSTENTÁVEL?

“O lobo não vira vegetariano e o capitalismo não vira uma associação para a proteção da natureza e da filantropia.”
– Robert Kurz

A despeito da civilização, a despeito da cultura, a despeito de tudo que a humanidade pode pensar sobre si mesma, o homem é um ser natural e não pode viver sem o meio natural. A questão ambiental é, portanto, para a humanidade, uma questão de sobrevivência. Mas se é certo que não podemos viver sem consumir recursos naturais, é também certo que um tal consumo atingiu, nas últimas décadas, um nível de tal modo desenfreado, de tal modo absurdo que faz surgir a ameaça do esgotamento total do meio ambiente. E quanto mais próximo o esgotamento natural se mostra, mais se fala em meios de refrear a destruição da natureza. Aqui surge e ganha destaque o discurso do “desenvolvimento sustentável”.

Desenvolver de um modo sustentável significa, em teoria, manter o crescimento econômico de um modo compatível com o não-esgotamento do meio ambiente. Noutras palavras, uma tentativa de conciliar as relações econômicas da sociedade capitalista com a preservação da natureza: produzir, consumir, sim, mas num nível que a natureza poderia “suportar”.

Ora, certamente é interessante substituir milhares de sacolas plásticas de supermercado por algumas sacolas reutilizáveis, é melhor reciclar garrafas de refrigerante do que tê-las entulhando os esgotos das cidades, é melhor utilizar combustíveis renováveis e menos poluentes do que empestear a atmosfera terrestre com os resíduos de combustíveis derivados de petróleo. É melhor alguma atitude, afinal, do que atitude nenhuma. Mas até que medida é possível pensar em tais atitudes como solução ou como resposta adequada ao avanço da destruição ambiental? Até que medida é possível depositar esperanças nelas?

É preciso compreender, antes de tudo mais, o que efetivamente causa o avanço na destruição do meio ambiente. Em última instância, a causa reside exatamente naquelas relações econômicas que o discurso do “desenvolvimento sustentável” pretende continuar a ver em desenvolvimento. É a sociedade capitalista que, desde o seu advento, tem acelerado constantemente o consumo do meio natural. É esta sociedade da produção de mercadorias que exige uma exploração sempre mais voraz dos recursos naturais, orientada unicamente ao processo cego de multiplicação do capital. Quanto mais lucro, melhor – e quanto maior a exploração da natureza, em geral, maior o lucro.

Como, então, conciliar uma formação econômica inexoravelmente devastadora da natureza com a preservação da natureza? Como conciliar o processo de multiplicação do capital, que não tem nenhum outro fim senão a própria multiplicação do capital, com a preservação do meio ambiente, que exige precisamente uma restrição a tal multiplicação? Enfim, como conciliar o lobo com as ovelhas?

A resposta não pode ser outra: para além do superficial e incipiente nível do discurso, não há conciliação alguma. Não se trata de interromper a devastação da natureza, tampouco de inverter a ordem de prioridades – economia primeiro e natureza depois –, mas apenas de manter o crescimento econômico num nível menos devastador. Trata-se, na verdade, de destruir num ritmo menos voraz, exatamente para que a destruição mesma possa continuar. A natureza não importa por si mesma, importa tão-somente como “depósito” de recursos para a expansão contínua da economia mercantil. A sobrevivência que importa não é a dos homens, não é a do planeta, é a do capital.

As propostas de preservação simultânea do meio ambiente e das relações capitalistas estão, por isso, condenadas de antemão: serão, no fundo, propostas de preservação do capitalismo, não da natureza. Uma efetiva salvaguarda do meio ambiente exige uma atitude mais radical, exige uma reorganização produtiva, uma ruptura. O desenvolvimento sustentável é, por isso mesmo, na realidade, insustentável.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 09/08/2009.]

quinta-feira, 16 de julho de 2009

[NJ] Movimento estudantil e política hoje

MOVIMENTO ESTUDANTIL E POLÍTICA HOJE

Dias atrás fui à Cidade Universitária, o campus principal da Universidade de São Paulo na cidade São Paulo, onde deveria assistir a uma aula na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Era segunda-feira, 8 de junho, logo após o horário do almoço. O que lá encontrei, para a minha completa surpresa, foram vários carros da política militar, policiais armados por todo lado, o campus tomado pela polícia.

Soube, logo depois, que a Cidade Universitária havia amanhecido praticamente “sitiada”. Os funcionários estavam em greve e tinham apoio de parte considerável dos estudantes. A reitoria, então, tomou as providências para evitar “depredação do espaço público” – isto é, para evitar que algo como o episódio da invasão do prédio da reitoria ocorrido em 2007 se repetisse. E lamentavelmente recorreu, para isso, à polícia.

Digo “lamentavelmente” porque o espaço da universidade é, via de regra, um espaço livre da ingerência policial. Há uma “guarda universitária” exatamente para que a polícia lá não intervenha. Esta regra foi quebrada poucas vezes e, em especial, nos mais obscuros períodos da ditadura militar brasileira – e com resistência da própria USP. Agora, a própria direção da USP recorre à polícia. Agora, a própria direção da USP parece preferir a força das armas à discussão e à negociação com funcionários e alunos.

Ver escopetas e metralhadoras “passeando” nas dependências da USP foi, para mim, chocante – a cena parecia digna de pesadelo. E, de tão chocado que fiquei, resolvi, no dia seguinte, em minha aula de História do Direito, falar aos meus alunos sobre a situação do movimento estudantil hoje no Brasil.

O movimento estudantil é, afinal, uma força a não ser negligenciada. Os estudantes carregam, não raro, os anseios por transformação mais elevados de toda uma sociedade, carregam esperanças que, muitas, o avançar da idade deixa sepultar irrealizadas – e se dispõem a lutar por seus ideais. Durante o período da ditadura militar, o movimento estudantil brasileiro claramente teve este papel. Estudantes se uniram, lutaram, eventualmente foram presos, torturados e mortos, mas tiveram a coragem de ousar reclamar um outro Brasil. Hoje, no entanto, se observamos atentamente, veremos um movimento estudantil muito mais fraco. Por quê?

Certamente diversas conjecturas podem ser feitas. Expus aos meus alunos a minha própria. No Brasil, a democracia formal venceu e se consolidou a partir de 1988. Mundo afora, o Muro de Berlim caiu em 1989, o mundo bipolar tornou-se unipolar com a vitória final da vertente liberal do capitalismo. Os anos 1990 foram, nesse sentido, os anos da desmobilização política, verdadeiramente do descrédito na política. Houve quem tenha declarado mesmo o “fim da história”. Nada mais que mudar havia no mundo. Para quê, então, política?

Reflexo disto se fez sentir, é evidente, também entre os estudantes. Esperanças em quê? Movimento estudantil para quê? Se a política está morta, lutar para quê? A desmobilização, aliada à crescente “mercadorização” da educação, especialmente da educação de nível superior, conduz, em geral, o estudante a pensar que de nada valem os ideais de transformação social, de nada vale o engajamento político, porque só o que lhe interessa, só o que vai encher-lhe a barriga e os bolsos, é uma formação universitária que garantirá melhores condições de inserção futura no mercado de trabalho. Que se explodam as grandes questões sociais e as grandes questões do mundo – o que vale mesmo é o “salve-se quem puder” e quem tiver um “diploma” em mãos há de salvar-se com maior facilidade.

Tendo isto em conta, fica claro que o movimento estudantil não haveria mesmo de se fortalecer nos últimos anos. E, pensando um pouco adiante, se, por um lado, foi um certo autoritarismo da reitoria da USP que propiciou a presença da polícia armada, foi, por um outro lado, a fraqueza do movimento estudantil que indiretamente permitiu que a situação chegasse a tal ponto. Um movimento estudantil forte não teria sido conivente, desde o primeiro momento, sequer com a entrada da polícia no campus. Não teria ficado em silêncio enquanto armas de fogo circulavam pelo espaço que deveria ser dos livros. Por isso, pedi aos meus alunos, que são de uma geração mais jovem, que não repitam o erro da minha geração. Que não se deixem desmobilizar, que não se deixem silenciar – porque este mundo ainda precisa, e muito, da voz e da luta dos estudantes.

Fiz este longo discurso no início da noite de terça-feira, mas ainda sem saber do desdobramento dos acontecimentos na USP. Apenas no final da aula fui informado por um aluno e só mais tarde consultei os jornais, inclusive os televisivos, para conferir o que ocorreu. Na terça-feira, final da tarde, a polícia efetivamente entrou em confronto com os estudantes. Balas de borracha foram disparadas e bombas de gás foram lançadas na mesma Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas onde estive um dia antes.

Se a cena de segunda-feira foi, para mim, quase um pesadelo, a de terça-feira não poderia ser outra coisa. Para a alta direção da USP e para o governo do estado de São Paulo, está claro, a questão estudantil é uma questão de repressão policial. No espaço do conhecimento, venceu a força. No espaço do debate, venceu a truculência. Parece, enfim, que nossos dias não são menos obscuros do que os dias passados. Parece que este vitorioso mundo da democracia formal e do neoliberalismo não é menos digno de ser transformado. Vi, no mesmo dia, meu discurso ser – estranhamente, é verdade – confirmado. A voz do movimento estudantil ainda precisa, e muito, ser ouvida.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 12/07/2009.]

terça-feira, 9 de junho de 2009

[NJ] A perspectiva crítica do direito

[Discurso proferido por ocasião do lançamento do livro “Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista”, no dia 29 de maio de 2009, na Casa do Advogado de Dracena.]

A PERSPECTIVA CRÍTICA DO DIREITO

O pensamento acerca do direito pode ter diferentes perspectivas. Pode ter – o que é mais comum – uma orientação direta à prática, à aplicação, à concretização do direito. E pode ter, por outro lado – e bem menos freqüentemente –, um caráter desvinculado da prática, de modo a constituir uma cogitação mais densa, mais profunda, sobre as questões fundamentais do direito.

A primeira perspectiva é a perspectiva da técnica – o que os juristas mesmos denominam usualmente “doutrina” ou “dogmática”. O pensamento jurídico dogmático tem uma evidente limitação relativa à própria atividade cotidiana do jurista – seu limite, para ser preciso, é a aplicabilidade do direito, a decidibilidade, tendo a “validade” do direito, isto é, a obrigatoriedade legítima do direito, como caráter inquestionável, dogma. Importa realizar o direito e não se permite pensar além. É a perspectiva que se encontra nos manuais, nos códigos comentados, na obra dos “grandes doutrinadores” de cada área etc.

A segunda perspectiva, desvinculada das necessidades práticas cotidianas do jurista, é aquela que podemos denominar de “Filosofia do Direito”. Esta, tal como determinada desde o séc. XIX, com a “vitória” do direito positivo sobre o direito natural, é o “lugar” de toda e qualquer reflexão sobre o direito que transborde os estreitos e bem definidos limites do pragmatismo ou do utilitarismo da atividade “profissional” do jurista. Na concepção reducionista do positivismo, ao Direito – ou, agora, à “Ciência do Direito” – importa cogitar sobre assuntos de interesse imediato à órbita do direito positivo, ou seja, o pensamento a partir da lei e para a aplicação da lei – todo o resto é relegado a um pensamento alheio à Ciência do Direito, a um pensamento não-científico, o pensamento filosófico. A Filosofia do Direito pensará, então, o que é impensável para a dogmática jurídica. Pensará o sentido, a origem, os fins, a realidade profunda das disposições jurídicas. Pensará o sentido e a razão do próprio direito.

A Filosofia do Direito, por sua vez, pode ter diferentes conotações. E tais conotações variam, é certo, de acordo com posturas políticas, de acordo com diferentes modos de encarar a realidade social em conjunto – e não apenas, portanto, o direito isoladamente. Deste modo, as conotações da Filosofia do Direito podem ser conservadoras ou transformadoras, resignadas ou indignadas, justificadoras ou críticas.

Justificadora é a filosofia do direito que aceita a conformação dada da sociedade e que aceita a legitimidade e/ou a necessidade do direito para uma tal sociedade. Justificadora, então, porque sua “missão”, em linhas muito gerais, não é senão justificar a existência e o papel social do direito. Justificadora porque não põe em dúvida a necessidade social do direito ou mesmo de um “modo” ou “modelo” específico de direito – o direito é tido como necessário e isto não se questiona, o que importa é “abrir”, pelo pensamento filosófico, as condições prévias ao pensamento científico ou dogmático sobre o direito ou “fechar” filosoficamente as questões complexas, causadoras de inconvenientes, que o pensamento jurídico estrito, por sua própria estreiteza, não dá conta de superar.

Crítica, pelo contrário, é a Filosofia do Direito que não se resigna ao dado, que não se presta ao serviço de meramente justificar o direito tal como está, que vislumbra, em maior ou menor medida, a possibilidade da transformação. Crítica porque nega o que é e cogita sobre o que pode ser. Crítica porque não se conforma ao presente, não o aceita irrefletidamente, mas põe-se a pensar sobre o futuro.

Uma tal crítica pode ser dada no conteúdo ou na forma. A crítica dada no conteúdo é aquela dirigida aos termos específicos de uma determinada disposição jurídica, ao tratamento jurídico de uma determinada questão, ao texto de uma determinada lei etc. Assim, por exemplo, o tratamento jurídico da questão do aborto pode ser, no nosso direito, considerado moralista e machista. A não-inclusão da homofobia entre as modalidades de discriminação tidas por criminosas pode ser considerada absurda. Um ou outro artigo da Constituição pode ser considerado ultrapassado. E daí por diante.

Já a crítica dada na forma, a crítica da forma jurídica, é aquela que se dirige não a conteúdos específicos, não aos termos específicos, não ao “proibido” ou “permitido” de cada disposição jurídica, mas ao direito como um todo. É a crítica que não se questiona se o direito pode ser melhor ou pior, se pode avançar aqui ou ali – é a crítica que se questiona sobre o próprio direito, qual o seu lugar, qual a sua raiz na estrutura social, para que serve, a quem serve. É a modalidade mais radical de crítica, a face mais radical da Filosofia do Direito. E é exatamente aqui que se enquadra o meu livro.

A “crítica da igualdade jurídica” que proponho é, em verdade, uma crítica ao direito como um todo, uma crítica à forma jurídica. A inspiração para tanto vem do marxismo, mais especificamente do jurista russo Evgeni Pachukanis, morto em 1937, autor daquela que é até hoje a melhor concepção marxista do direito. A partir deste referencial, a igualdade jurídica – quero dizer, a igualdade de todos perante o direito – transparece, uma vez pensada até o limite, como seu exato contrário. É a igualdade dos homens perante o direito que permite, entre estes mesmos homens, a mais profunda desigualdade social real. É como juridicamente iguais que dois homens, por um contrato, colocam-se na mais desigual das condições: um explorador, outro explorado. É como juridicamente iguais, no “éden” da circulação de mercadorias, da sociedade civil, isto é, o “éden” dos direitos humanos, que os homens realizam a brutal desigualdade da exploração, no subterrâneo invisível da produção.

O direito, assim, revela o seu autêntico papel. A forma jurídica é uma forma social característica do capitalismo, diz Pachukanis. Ora, o direito não serve senão para manter a ordem social capitalista em pleno funcionamento. É isto que a crítica da igualdade jurídica revela. A igualdade jurídica não é o contrário da desigualdade: não há igualdade dos homens perante o direito senão para a desigualdade social e econômica. Disto depende, em última análise, o funcionamento permanente de toda uma ordem social fundada na exploração do homem pelo homem.

Esta crítica, que é a posição mais à esquerda dentre todas as posições possíveis no interior da Filosofia do Direito, não tem, devo ressaltar, um caráter simplesmente negativo. Não se trata de simplesmente descartar do direito ou, melhor dizendo, de descartar a possibilidade de utilização do direito para a construção de uma sociedade mais equânime, mais justa, mais digna. Trata-se, isto sim, de manter o olhar firme na direção da transformação social. Trata-se de manter firmes as palavras de Marx: não basta interpretar o mundo, é necessário transformá-lo. Por isso a radicalidade da crítica – a crítica só pode ser radical, porque assim também deve ser a transformação social. Um mundo novo, sem exploração, sem classes sociais, sem a injustiça e a indignidade da miséria e da exclusão social, sem as mazelas da pobreza, só pode advir de uma transformação radical. Ouso pensar que esta transformação vai, inclusive, muito além do próprio direito. Ultrapassa a forma jurídica.

Que ninguém se engane. O profundo pessimismo com que minhas palavras podem ser tomadas à primeira vista é, na verdade, apenas a aparência falsa da mais profunda esperança. A esperança inquebrantável de outro futuro possível. A esperança inquebrantável de um mundo pleno de justiça e dignidade. É esta esperança que, através deste livro e de tudo mais que eu venha a dizer, eu gostaria de ver semeada em cada um dos senhores e em cada uma das senhoras.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 07/06/2009.]

segunda-feira, 4 de maio de 2009

[jabá] Lançamento de "Crítica da igualdade jurídica - contribuição ao pensamento jurídico marxista"

LANÇAMENTO DE CRÍTICA DA IGUALDADE JURÍDICA

Tenho a grande honra de convidar a todos os leitores e a todas as leitoras para o lançamento do meu livro:

Crítica da igualdade jurídica - contribuição ao pensamento jurídico marxista
(Quartier Latin, 2009)

Quando: 16 de maio de 2009, a partir das 9h00
Onde: Livraria Jurídica Blanco e Bocatto (Rua Senador Feijó, 155 - Centro - São Paulo-SP)


(clique na imagem para ampliar)

domingo, 3 de maio de 2009

[NJ] Sobre a discriminação social

SOBRE A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

Poucas coisas são, para mim, mais incômodas do que a discriminação de classe, a discriminação contra a pobreza e a exclusão, enfim, aquela comumente identificada como discriminação social. Não que outras modalidades de discriminação não me incomodem – pelo contrário, incomodam-me todas. Há, afinal, no Brasil, quadros graves de discriminação contra negros, contras mulheres, contra homossexuais, contra praticamente toda e qualquer “minoria”, de modo que não é possível fechar os olhos à situação. A discriminação social não é necessariamente pior que as outras – mas parece, a mim, mais digna de repulsa, pois reflete sincronicamente a estrutura exploratória e excludente de uma sociedade profundamente desigual e injusta.

Nossa sociedade não é homogênea. Não é uma sociedade de partes iguais – os indivíduos – que se agregam apenas por mera somatória. Não é uma sociedade funcional ou equilibrada. É uma sociedade “quebrada”, cindida em classes que se opõem. Não há, por isso, uma visão homogênea, quero dizer, uniforme, dos indivíduos sobre a própria sociedade. A possibilidade de compreender a organização social presente é limitada – embora não de modo inescapável – pela posição objetivamente ocupada pelo observador na estrutura desta mesma sociedade. As classes dominantes, do ângulo pelo qual observam, não “vêem” a mesma sociedade que, do ângulo oposto, as classes dominadas “vêem” – embora convivam ambas no mesmo meio.

Do ângulo pelo qual observam, marcado por seus próprios interesses – notadamente o interesse na manutenção da estrutura social desigual que as beneficia –, as classes dominantes “vêem” uma sociedade sem exploração, na qual a desigualdade é ou acidental ou culpa dos próprios inferiorizados. Ora, do ponto de vista do dominador, a própria dominação não existe. Daí advém as raízes da discriminação social. Há, a esse respeito, dois pontos, pelo menos, que penso serem dignos de nota.

Em primeiro lugar, a discriminação social tem como uma de suas principais bases um entendimento “moral” da pobreza. Um entendimento por si só equivocado e preconceituoso. Para dizer da maneira mais simples possível: as classes dominantes crêem, em geral, que o pobre é moralmente responsável pela própria pobreza. O pobre seria pobre, então, por não se “esforçar”, “empenhar” ou “dedicar” o bastante – porque seria “desleixado”, “incompetente”, “preguiçoso”. Mas a questão não é moral, é social – é estruturalmente social.

Ninguém é pobre por escolha ou conivência. A sociedade capitalista é estruturada pela exploração de uma classe sobre a outra, portanto não pode senão cindir-se entre “ricos” e “pobres”. Só há “ricos” porque há “pobres” – as classes dominantes, assim, ao encararem o pobre como culpado pela própria pobreza estão, na verdade, atribuindo ao outro uma responsabilidade própria. Só há pobres porque a sociedade se erige sobre a exploração – e aqueles que se beneficiam da exploração, precisamente por esta condição de beneficiários, têm os olhos tapados ao mecanismo profundamente injusto da desigualdade social. Vêem, por isso, só a superfície, sem conseguir penetrar as profundezas, as causas da pobreza. Convenientemente atribuem, assim, a culpa à vítima.

Em segundo lugar, pesa, sobre a questão da discriminação social, uma atitude bastante freqüente entre as classes dominantes brasileiras, a atitude que se chama comumente de “esnobismo” ou “elitismo”. Em suma, a atitude de desejar estar socialmente acima, em posição de privilégio ou de mando, em relação aos menos favorecidos. Se a moralização da questão conduz à atribuição da culpa pela pobreza ao pobre, o “elitismo” é o seu complemento perverso: é a auto-atribuição das glórias e dos méritos ao vencedor. É a ridicularização do pobre – por seu linguajar, por seus hábitos, por suas vestimentas, por tudo que for possível – com vistas ao auto-enaltecimento do explorador – que seria, então, “melhor” porque é rico, fala bonito, é refinado, veste-se bem etc.

O ponto de vista das classes dominadas, no entanto, não está limitado pelo interesse na manutenção da ordem estabelecida. O dominado, ao observar a sua sociedade, tem franqueada a possibilidade compreender a estrutura desigualadora e brutal à qual está submetido. O interesse da classe dominada é, por isso, a transformação radical desta estrutura social – para uma sociedade sem desigualdade e, portanto, sem o absurdo da discriminação contra a pobreza.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 02/05/2009.]

quarta-feira, 8 de abril de 2009

[NJ] Capitalismo e destruição ambiental

CAPITALISMO E DESTRUIÇÃO AMBIENTAL

A questão da destruição do meio ambiente – poluição, devastação das florestas, contaminação das águas e do solo, aquecimento global etc. – tornou-se notícia. Mas uma notícia que já sai atrasada, não há dúvida. Uma notícia que vem preocupar os homens quando os níveis gerais de empesteamento e esgotamento da natureza já ultrapassaram todos os limites, de um modo tal que já não se pode cogitar voltar atrás pura e simplesmente. Uma notícia que só vem à luz quando a própria possibilidade da existência do homem neste dado meio natural – o do planeta Terra – vê-se seriamente ameaçada.

Fala-se agora, e muito, em como conter a ação humana de modo a reduzir a voracidade com que se destrói a natureza. Fala-se em como conciliar a atividade econômica com a preservação do que resta de natureza no mundo. Fala-se em como pôr “rédeas” a esta atividade econômica, de modo a obrigá-la a arcar com os “custos” (ou pelo menos parte deles) da destruição ambiental. Fala-se, com especial destaque na grande mídia, em como pequenas ações voluntaristas e solidárias dos indivíduos da sociedade civil podem ajudar – coleta seletiva, reciclagem, uso do transporte público, consumo consciente etc.

O que não se fala, ou melhor, o que não se pergunta: por quê? Ora, há, sim, uma aceleração da destruição da natureza. Há, sim, uma aceleração rumo à catástrofe ecológica. Há, sim, algo que, pela primeira vez, coloca aos homens a questão da sua extinção como espécie... e por suas próprias ações... Por quê?

Homens têm vivido na Terra há milhares de anos. Homens têm consumido os recursos naturais, têm plantado e colhido, têm produzido socialmente os meios de sua sobrevivência, há milhares de anos – mas a ação humana sobre a Terra nunca antes havia se deparado com a possibilidade de destruição final da própria Terra e, conseqüentemente, do próprio homem. Se, afinal, os homens têm usufruído a natureza há milhares de anos, por que apenas nos últimos 150 ou 200 anos os níveis de degradação ambiental tornaram-se preocupantes? Por que apenas nos últimos 50 anos tal degradação tornou-se potencialmente catastrófica? Por que apenas nos últimos 30 anos a possibilidade de esgotamento cabal da Terra tornou-se plausível?

O que levou os homens, nestes últimos anos de sua história, a acelerar de tal maneira a degradação ambiental é a forma de organização da produção e da vida social que vieram a adotar. Refiro-me ao capitalismo, organização social da produção orientada não à satisfação de necessidades humanas (valor de uso), mas à trocabilidade (valor de troca) daquilo que é produzido, de maneira a ativar o ciclo pelo qual o capital se multiplica. Organização social da produção orientada não à necessidade, mas à acumulação, ao lucro, que visa produzir tudo quanto se possa vender – e não tudo quanto seja necessário – e tanto quanto se possa vender – e não tanto quanto seja necessário. Inexoravelmente tendente, portanto, ao máximo da exploração do trabalho humano e da natureza – pois quanto mais exploração, mais multiplicação do capital, isto é, mais lucro.

Assim, a única maneira de efetivamente impedir o esgotamento absoluto da natureza, a barbárie ambiental final, é o advento de uma nova organização social da produção. Uma organização voltada efetivamente ao homem, à sua realização – não a uma força cega a tudo que não seja a multiplicação, o ganho, a autovalorização do valor, quero dizer, não ao capital. As “rédeas”, os controles, as iniciativas voluntaristas etc. que não rompem com o capitalismo não devem ser desprezadas, mas é preciso ter em conta que apenas adiarão a catástrofe. Todo o discurso do “desenvolvimento sustentável” reduz-se a isso: ter o que destruir ainda amanhã – parar de destruir está fora de cogitação.

O capitalismo devora a natureza e continuará a devorá-la enquanto tal ação destrutiva do homem continuar a converter-se em lucro. Pela preservação do lucro de alguns os homens caminham todos para o fim. “Après moi le déluge!” (“Depois de mim, o dilúvio!”) – como bem diz Marx – é a divisa fundamental de todo capitalista. Que o mundo desabe sobre a cabeça do próximo. Mas “o próximo” somos, agora, todos nós.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 05/04/2009.]