domingo, 17 de junho de 2007

[NJ] Hyakunen

HYAKUNEN
“Ao longo daquela longínqua estrada
Percorrida por vocês, imigrantes,
No caminho difícil e vencido,
Oh! Quantas vezes até agora
Têm os ipês florescido?”
– Imperatriz Michiko
A imigração japonesa para o Brasil está prestes a completar seu centenário. 99 anos atrás, em 18 de junho de 1908, o navio Kasato Maru aportou em Santos trazendo a primeira leva de trabalhadores japoneses para a lavoura brasileira. Foi o início de um fluxo migratório que trouxe do Japão para o Brasil cerca de 250 mil imigrantes e resultou numa população hoje estimada em 1 milhão e 300 mil japoneses e nipo-descendentes.

É provável que jornais e emissoras de TV logo tragam matérias especiais exaltando a data e que festas regadas a tempurá e yakissoba logo tenham lugar. Para além disso, pouco ou vão será o esforço de lembrar os percalços encarados pelos japoneses ao longo da longa estrada que percorreram – percalços que não só revelam a verdade dramática de uma história romantizada, mas que também ensejam reflexões ainda hoje necessárias.

Os japoneses que deixaram o Japão no início do séc. XX foram o “preço” pago pelo “progresso”. O governo japonês se empenhava em transformar a sociedade ainda semifeudal do país numa sociedade moderna. No meio do caminho havia um excesso de população, especialmente de população rural, para o qual não havia lugar nos planos então traçados de um “novo Japão”. A saída foi incentivar a emigração de todas as maneiras possíveis, especialmente através de subsídios à viagem e de altos investimentos em propaganda governamental.

Mas esses japoneses que o Japão não quis logo descobriram que a propaganda de seu governo era, para dizer o mínimo, “exagerada”. Chegando aqui, eles se depararam com uma realidade ainda mais atrasada do que aquela que as autoridades de seu país queriam superar. Logo de cara tinham que enfrentar condições de habitação, alimentação e trabalho que lhes pareciam bizarras. Passavam mal com a comida, muitas vezes não suportavam o calor. Nos piores casos, havia condições de vida as mais insalubres, doenças desconhecidas, exploração extrema. Seus hábitos eram incompreendidos (a religião e a higiene pessoal, por exemplo). E, além de tudo, não conseguiam se comunicar: o idioma parecia uma barreira intransponível e os condenava ao isolamento.

Enumeradas, as dificuldades que enfrentaram não foram diferentes daquelas pelas quais imigrantes de outros países também passaram – a diferença foi de intensidade. Brasileiros e europeus compartilhavam um mesmo lastro cultural; os japoneses, contudo, pareciam alienígenas perto dos ocidentais. Esta também deve ter sido a opinião das autoridades brasileiras, que a partir de 1934 começaram a impor restrições à entrada de novas levas de japoneses no país e a baixar medidas abertamente racistas. Muitos temiam a miscigenação com um povo considerado “geneticamente inferior”. A “pureza racial” era parte do ideal de “progresso” de certos setores do governo brasileiro à época – novamente, agora do outro lado do mundo, os japoneses estavam no caminho.

Piorou muito com o início da 2ª Guerra Mundial. O uso do idioma japonês chegou a ser proibido e verdadeiros “campos de concentração” chegaram a ser criados para conter o “perigo amarelo”. Quando a guerra terminou, o conflito eclodiu no interior da colônia: aqueles que aceitavam a derrota do Japão foram perseguidos por grupos de nacionalistas radicais. Entre 1946 e 1947 foram 23 assassinatos, o primeiro deles em Bastos e a maior parte dos outros em cidades da região. Esquisitos, inimigos de guerra e agora terroristas: o conflito rendeu péssima imagem aos japoneses e fez crescer a antipatia dos brasileiros. Antipatia que também gerou incidentes, o mais grave em 1946 em Osvaldo Cruz, quando, em meio a uma revolta, a população tentou linchar os japoneses.

Levou anos para as feridas cicatrizarem. Enquanto isso, sonhos de retorno à pátria sendo deixados de lado, os japoneses foram fincando raízes no Brasil. Mas os imigrantes japoneses trarão consigo para sempre o estigma de provas vivas de que o “progresso” e a “modernidade” são feitos às custas de vidas humanas. E para sempre deverão ser lembrados, acima de tudo, pela perseverança e pela valentia com que sobreviveram.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 10/06/2007]
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