terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

[Crítica Social] Resistência, ontem e hoje

RESISTÊNCIA, ONTEM E HOJE

Algumas semanas atrás, em companhia do colega Vinícius Magalhães Pinheiro e dos amigos catanduvenses Henrique Brino e Kleber Facchin, visitei, enfim, o Memorial da Resistência. Inaugurado em maio de 2008 e sediado no antigo prédio do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) no centro da capital paulista, o museu guarda a triste memória da perseguição política no período da Ditadura Militar.

Documentos, depoimentos de ex-presos políticos em áudio e vídeo, imagens e, sobretudo, o ambiente insalubre, apertado e tenebroso das celas e locais de tortura levantam o assustador retrato de uma era de terror político. Mesmo sendo um museu, não se trata, em definitivo, de um lugar a ser agradavelmente visitado, um passeio tranqüilo para um fim de semana qualquer. A dor e o sofrimento impregnados nas paredes do local quase sufocam quem caminha pelos corredores estreitos e fazem logo perceber que a ferida deixada por mais de 20 anos de autoritarismo político foram muito mais profundas do que muitos pretendem fazer crer.

Enquanto sentia o desconforto da visita e tentava imaginar a miserável condição daqueles que estiveram ali trancafiados, não pude evitar a comparação entre os tempos da ditadura e os dias de hoje. Mais forte do que tudo, assolava-me a impressão de ser hoje, em contraste com o passado, muito “fácil” adotar uma postura crítica e de esquerda. “Fácil” porque, a despeito de todo o conservadorismo e elitismo com que se depara o crítico na atualidade, ao menos o risco da prisão arbitrária, da perseguição e da tortura parece um pouco mais distante.

Isto, é evidente, faz pensar naqueles que, sobretudo ao longo das décadas de 1960 e 1970, lutaram contra o regime ditatorial como verdadeiros heróis. A sua luta não se limitava, afinal, a denunciar pelas palavras o absurdo da ordem presente, contrariando os interesses dos poderosos, mas implicava muito mais. Implicava colocar tudo em risco, inclusive a própria vida. Implicava abrir mão da própria segurança, colocar tudo a perder, o que certamente exige muita coragem.

Esta coragem, será que a esquerda brasileira de hoje também a teria? Serão muitos aqueles que hoje estariam dispostos a arriscar tanto pelo ideal maior da transformação social?

Faço tais perguntas, é evidente, também a mim mesmo. E faço-as porque se é verdade que os tempos atuais são democráticos e há abertura para as mais plurais correntes políticas, é também verdade que o autoritarismo não está exatamente “morto e sepultado” – as recentes controvérsias envolvendo o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos bem o mostraram – e que ainda há muito pelo que lutar. Manter afastado o risco da ditadura, manter a tortura como mera lembrança num museu, exige a continuidade da luta – avançar rumo a uma sociedade mais equânime exige mais coragem e mais luta ainda.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 10/02/2010. DIÁRIO (Dracena-SP), 14/02/2010.]

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

[jabá] O discreto charme do direito burguês

O DISCRETO CHARME DO DIREITO BURGUÊS

Publicado, pelo IFCH-Unicamp, sob organização do prof. Márcio Bilharinho Naves, "O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis".

Sumário:
Apresentação – Márcio Bilharinho Naves

Evgeni Bronislavovitch Pachukanis (1891-1937) – Márcio Bilharinho Naves
A crítica marxista do direito: um olhar sobre as posições de Evgeni Pachukanis – Silvia Alapanian
Pachukanis e Stutchka: o direito, entre o poder e o capital – Alysson Leandro Mascaro
Dialética e forma jurídica: considerações acerca do método de Pachukanis – Celso Naoto Kashiura Júnior

O discreto charme do direito burguês: uma nota sobre Pachukanis
– Steve Redhead
Observações sobre “O discreto charme do direito burguês: uma nota sobre Pachukanis” – Márcio Bilharinho Naves
Forma mercantil e forma jurídica: Pachukanis e o esboço de uma teoria materialista do direito – Roger Cotterrell
Duas formas absurdas: uma defesa da especificidade histórica da mercadoria e do sujeito de direito – Celso Naoto Kashiura Júnior

A teoria marxista do direito e a construção do socialismo
– Evgeni Pachukanis

Obras selecionadas de Pachukanis

Obras selecionadas sobre Pachukanis

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

[Crítica Social] Sobre as chuvas

SOBRE AS CHUVAS

Não houve, durante as últimas semanas, um dia sequer em que os destaques dos noticiários não tenham sido os danos causados pelas chuvas abundantes. Na cidade de São Paulo, as chuvas bateram marcas históricas para o mês de janeiro e há bairros inteiros alagados desde dezembro último. No estado de São Paulo como um todo, o número de mortos e desabrigados em função de deslizamentos de terra, inundações e outras decorrências da chuva só faz crescer. Noutros estados, sobretudo das regiões sudeste e sul, a situação não é diferente.

A explicação para tanta chuva tem vindo e virá, é evidente, dos mais diversos fatores naturais imagináveis: El Niño, La Niña, aquecimento das águas ou dos mares neste ou naquele ponto, convergência de frentes quentes ou frias neste ou naquele sentido etc. E, seja lá qual for o fenômeno natural apontado, a explicação deve ter sentido e deve ser reputada correta – os meteorologistas certamente sabem o que dizem. Mas a explicação natural (físico-química, meteorológica, o que for) não “explica”, por assim dizer, a questão como um todo.

Ainda que a desmedida das chuvas seja ocorrência inteiramente natural – o que não é de todo certo, pois é muito provável que a atuação predatória do homem sobre o meio ambiente tenha sua parcela de responsabilidade –, estragos, mortes e demais danos decorrentes não podem ser reputados pura e simplesmente à movimentação das massas de ar. É necessário considerar muitas outras questões – questões eminentemente humanas.

Por exemplo: a ocupação desregrada de muitas das áreas das grandes cidades. É isto, muito mais do que as chuvas propriamente, que leva aos deslizamentos de terra e às inundações, e que, portanto, explica o grande número de vítimas. Trata-se de uma questão de planejamento urbano e, mais ainda, de um indicativo das disparidades crescentes da sociedade brasileira atual: o processo de favelização está intimamente relacionado à exclusão social e a sua solução não pode ser dada sem enfrentamento direto às incongruências estruturais desta sociedade.

Outro exemplo: o descaso do poder público com relação a áreas potencialmente perigosas quando das chuvas intensas. Sabe-se, a princípio, que o ambiente urbano, com solo quase integralmente coberto por concreto e asfalto, sem áreas verdes em proporção adequada, é especialmente suscetível às chuvas. No caso de cidades cortadas por rios, o risco é ainda maior. Mas há áreas que sabidamente sofrem alagamentos, encostas que periodicamente desabam, sem que nenhuma providência seja tomada. Todo ano é a mesma coisa: as autoridades políticas alegam “surpresa” diante do excesso de chuvas, mas, no ano seguinte, na mesma época, estranhamente tudo se repete e o argumento não muda. A catástrofe tem agenda pronta, mas ninguém tenta evitá-la.

Chuvas demais? Sim... Mas a natureza não pode ser eternamente culpada por aquilo que é de nossa responsabilidade.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 03/02/2010. DIÁRIO (Dracena-SP), 06/02/2010.]

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

[Crítica Social] PNDH e realidade brasileira III – memória e verdade

PNDH E REALIDADE BRASILEIRA III – MEMÓRIA E VERDADE

Nas últimas semanas, tenho discutido aqui o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e as resistências à sua realização. Nas edições anteriores, tratei mais detidamente das questões da reforma agrária e da liberdade de imprensa, sobretudo com o intuito de demonstrar quais os interesses reais por detrás das posições críticas da grande mídia brasileira acerca do PNDH. Hoje, para encerrar a série, tratarei das propostas relativas ao direito à verdade.

No seu eixo VI, em especial na diretriz 23, o PNDH propõe a apuração e o esclarecimento público das violações aos direitos humanos decorrentes de repressão política, ocorridas sobretudo no período da ditadura militar. Estipula a criação de uma comissão incumbida de investigar e divulgar a verdade – ainda lamentavelmente desconhecida – sobre torturas, extermínios e demais graves violações aos direitos humanos dadas sob o autoritarismo implantado pelo golpe de 1964.

Houve, de imediato, resistência de parte do alto comando dos militares brasileiros (incluindo ameaças de demissão) e de segmentos políticos abertamente conservadores, com forte repercussão em parte da mídia – por “coincidência”, sobretudo nos veículos suspeitos de terem contribuído com a ditadura no passado. A exigência levantada foi de que as investigações tenham por alvo não apenas autoridades públicas, mas também os grupos que lutaram contra a ditadura.

É absurdo, no entanto, confundir as violações praticadas pelos agentes da ditadura militar com as ações dos movimentos que lutaram contra ela. Em primeiro lugar, porque violações aos direitos humanos cometidas por agentes públicos e com apoio do Estado, aqueles que deveriam zelar por tais direitos, são muito mais graves do que aquelas cometidas por civis. Em segundo lugar, porque a violência pró-ditadura foi deliberada para a conquista e a perpetuação do poder, mas a violência eventualmente praticada por aqueles contrários à ditadura deveu-se, não raro, a uma imposição de sobrevivência diante da repressão armada e permanente.

O governo Lula infelizmente cedeu e elaborou um novo decreto que deixa margem para a investigação de atividades de civis no período da ditadura. É um passo atrás, sem dúvida. Mas os méritos gerais do programa ainda devem ser reconhecidos. O PNDH nada tem de autenticamente radical e deixa ainda a desejar em vários pontos, mas traz avanços importantes e inéditos no Brasil, merecendo apoio dos setores políticos, intelectuais e movimentos sociais verdadeiramente comprometidos com uma sociedade mais equânime e uma vida mais digna para todos os brasileiros.

Em verdade, as resistências à realização de um simples plano de direitos humanos escancaram muito da realidade brasileira atual. Passadas décadas desde a abertura política, o “clima” geral da recepção ao PNDH em muito se assemelha à recepção do plano das reformas de base de João Goulart, deixando claro que resquícios do mais ultrajante autoritarismo político repousam tranqüilamente entre nós, mesmo sob a fachada da democracia formal.


[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 27/01/2010. DIÁRIO (Dracena-SP), 31/01/2010.]