sexta-feira, 20 de abril de 2007

[NJ] Dianteira e contra-mão

DIANTEIRA E CONTRA-MÃO

“Tu quoque, Brute, fili mi!”
– Júlio César

A velha lição cristã diz que “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”. Um crítico radical da sociedade capitalista espera ansiosamente pela ascensão dos “últimos”, mas a verdade é que a história do séc. XX e deste início do séc. XXI parece mostrar que apenas a segunda parte da máxima se confirma: ora ou outra, os “primeiros” é que acabam sendo rebaixados.

Um dia, os judeus foram os primeiros. Enquanto as luzes da ordem feudal se apagavam, eram eles que, por velhas trilhas, de feira em feira, de cidade em cidade, carregavam o capitalismo ascendente nas costas, disseminando o comércio pela Europa. O judeu mercador, o judeu banqueiro, o judeu usurário: figuras prototípicas, autênticos modelos do indivíduo burguês moderno, portador abstrato de direitos, sujeito econômico isolado. Na infância do novo modo de produção, eles foram, sem dúvida, pajens muito dedicados.

Gratidão, no entanto, é algo que não se pode incluir entre as qualidades do capitalismo. Se saltamos alguns séculos, encontramos os judeus vítimas do mesmo modo de produção que ajudaram a difundir. Sempre foram comerciantes, sempre estiveram no mercado, razão pela qual sua imagem foi longamente associada à vertente mercantilista do capitalismo. Mas e quando o próprio mercado deve ser deixado para trás? Quando o assim chamado “capitalismo de Estado” nazista pretendeu substituir o “anárquico” mercado pela “ordem” estatal, os judeus, outrora pioneiros, se converteram na encarnação do obsoleto, do retrógrado, do entrave ao desenvolvimento da nação. Da dianteira da história, passaram à contra-mão. A eles foi atribuída toda a culpa que vagava “sem dono”, sobre eles recaiu todo o ódio que se acumulava sem descarga. Em nome do progresso e da razão, eles deveriam ser eliminados. Foram, por fim, conduzidos a Auschwitz...

Hoje semelhante inversão se repete, ainda que seja outra sua vítima. Enganam-se os adeptos da tese de que a humanidade aprendeu e evoluiu com as atrocidades do seu passado. O “novo” capitalismo também tem seus inimigos da vez, que nem sempre foram inimigos.

Também os muçulmanos estiveram, um dia, na dianteira. Enquanto os europeus se fechavam nos feudos, foram eles que mantiveram a arte do comércio viva. Foram eles que preservaram grande parte da antiga cultura ocidental, que desenvolveram as técnicas de navegação, que alcançaram progressos notáveis na matemática. Séculos depois, quando o feudalismo europeu iniciou sua decadência, foi a partir do comércio com os muçulmanos que Veneza e Amalfi construíram seus impérios, que mercadorias voltaram a ser intercambiadas e que moeda voltou a circular em larga escala. Mesmo o direito comercial romano, ainda hoje base do nosso direito comercial, foi em sua maior parte conservado pelos muçulmanos, que o legaram via Bizâncio, e posteriormente reintroduzido entre os “herdeiros de Roma” da Europa, onde há muito havia sido esquecido.

O contato com os muçulmanos foi, portanto, condição para a retomada da atividade mercantil na Europa; a partir daí a burguesia cresceu, se consolidou, se tornou rebelde, se tornou revolucionária: assim foi aberto o caminho para o capitalismo. Mas agora isso pouco importa. Para o “novo capitalismo” de hoje, o da globalização, os muçulmanos representam o antiquado, o entrave que deve ser sacrificado. No mundo do capital sem fronteiras, da extinção do trabalho, da uniformização cultural, aqueles que não estão dispostos a abrir mão de suas tradições e de seu modo de vida em geral, que não estão dispostos a aceitar uma posição submissa no cenário internacional, são a máxima inconveniência. O muçulmano assume então o lugar do alienígena, do opressor, da ameaça: o fundamentalista, o machista, o terrorista; em suma, o bárbaro. Ao muçulmano toda a culpa, sobre ele todo o ódio... Os muçulmanos estão agora na contra-mão do “novo”: para seguir adiante, a grande máquina do capitalismo não hesitará em esmagá-los.

[publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 06/01/2007]

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