quinta-feira, 27 de outubro de 2011

[Crítica Social] “Direito do mais forte”


“DIREITO DO MAIS FORTE”

“Os economistas burgueses têm em mente apenas que se produz melhor com a polícia moderna do que, por exemplo, com o direito do mais forte. Só esquecem que o direito do mais forte também é um direito, e que o direito do mais subsiste sob outra forma em seu ‘estado de direito’.”
– K. Marx, Introdução [de 1857]

Os ideólogos da sociedade presente não cansam de exaltar, hoje como em 1857, o Estado de Direito e as suas supostas virtudes. Uma sociedade do governo das leis, perante as quais todos são iguais. Uma sociedade livre do arbítrio, em que os homens não se submetem senão à lei. Uma sociedade em que esta igualdade e esta liberdade jurídicas são garantidas pela segurança do aparelho de Estado, imparcial promotor do bem comum. Isto é o que nos dizem...

Mas esta sociedade, “éden dos direitos do homem”, é também o paraíso da produção capitalista. A igualdade, a liberdade, a segurança traduzem juridicamente as exigências supremas da circulação universalizada de mercadorias, são imediatamente determinadas pela circulação universalizada de mercadorias. Expressam, portanto, também a peculiar operação de circulação mercantil dada entre força de trabalho e salário – que não aparece aqui senão como contrato, como pacto voluntário entre sujeitos de direito formalmente iguais, com a garantia estatal contra qualquer extrapolação por qualquer da partes.

Esta peculiar relação de troca de mercadorias – que, como toda troca de mercadorias, é marcada pela equivalência entre as mercadorias, em termos de valor, e igualdade entre os sujeitos, em termos jurídicos – é, no entanto, a forma necessária das relações capitalistas de produção. E, na esfera da produção, já não há que se falar ingenuamente em “direitos do homem”, em igualdade jurídica: há que se falar em desigualdade de classe, em extração de mais-valia, em exploração.

A desigualdade da produção capitalista não se realiza senão através da igualdade do direito.  O Estado de Direito, os direitos fundamentais dos homens, a igualdade e a liberdade jurídicas são a condição para a suprema desigualdade inerente à sociedade capitalista, a desigualdade engendrada inexoravelmente pela sua estrutura produtiva.

O Estado de Direito não é, portanto, ao menos num sentido, o “contrário” do direito do mais forte...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 26/10/2011.]

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

[Crítica Social] Causas e conseqüências


CAUSAS E CONSEQÜÊNCIAS

Ninguém pode razoavelmente pretender resolver um problema senão agindo contra as suas causas. – Isto é nada mais, nada menos que o óbvio. No entanto, repetir o óbvio é, às vezes, necessário: porque, às vezes, até o óbvio é completamente esquecido, negligenciado ou soterrado pelos mais diversos tipos de distorção e mistificação.

Assim, quando tratamos dos “problemas” da economia capitalista, uma “solução” só pode ser efetiva se buscar, pelas raízes, agir sobre as causas. Tais causas, é claro, estão na própria estrutura social determinada pelas relações capitalistas de produção, isto é, nas profundezas desta forma social específica determinada por seu específico modo de produção.

Nesse sentido, se a crise econômica se manifesta no setor financeiro, isto não quer dizer que se trata de uma crise do setor financeiro. Uma gripe pode muito bem manifestar-se no espirro, mas é muito mais do que o espirro: apenas um entendimento muito precário poderia tomar o espirro como a própria gripe. Deste ponto de vista, quando se aponta o “excesso de ganância” dos operadores de finanças ou o “descontrole” da especulação como “causa” da crise, não se vai além da mais absoluta superfície. A crise tem suas verdadeiras causas na produção capitalista, é mais uma das crises cíclicas do modo de produção capitalista: só pode ser “solucionada” – em sentido igualmente radical – pela transformação dessas relações de produção.

Do mesmo modo, quando as convulsões do capitalismo contemporâneo aparecem com maior intensidade em certos países, como hoje acontece em Portugal ou na Grécia, isto de modo algum significa que sejam questões tão-somente locais e isoladas. Quando, como “causas” para tais acontecimentos, apontam-se os “excessos” dos gastos sociais do Estado, mais uma vez não se o ultrapassa a superfície. Pois o corte de gastos sociais não pode senão garantir um alívio momentâneo para os capitais, mas não “soluciona” nada: na exata medida em que permite a sobrevida do mesmo modelo econômico, apenas posterga convulsões futuras.

Ora, os “problemas” da economia capitalista são “problemas” da economia capitalista. Ainda que se manifestem em setores isolados, ainda que apareçam com mais evidência em lugares específicos, são questões estruturais. A tentativa de apresentá-los como isolados ou, de modo geral, de limitar-lhes a extensão tem como interesse imediato a mistificadora insistência na possibilidade de um capitalismo harmônico, perfectível, potencialmente livre de crises. É fruto da recusa obstinada a buscar as verdadeiras causas: porque as verdadeiras causas estão no próprio capitalismo e, portanto, apenas a sua superação pode ser encarada como solução autêntica.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 19/10/2011.]

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

[Crítica Social] De volta à produção


DE VOLTA À PRODUÇÃO

Muito se discute hoje, sobretudo em vista das questões ambientais e da crise econômica que se prolonga desde 2008, a respeito do consumo e das finanças. Assim, de um lado, ambientalistas e adeptos da gestão responsável, do consumo consciente ou de qualquer ideal do gênero propõem mudanças contingenciais na esfera do consumo como meio de “redenção”. De outro lado, economistas debatem índices, cotações, variações cambiais, enfim, números, como se tais números tivessem realidade independente, como se gerassem a si próprios – e são assim forçados a “explicar” tudo que há de incongruente com os números com base na “imoralidade”, no “excesso de ganância” ou “desvios” do gênero.

O que praticamente todos aqui negligenciam, consciente ou inconscientemente, é a esfera da produção. E ao fazê-lo, o que se negligencia não é nada menos do que a esfera determinante da economia como um todo. O que se negligencia é o evidente fato de que não se pode consumir senão o que é produzido. O que se negligencia é o evidente fato de que só pode haver finanças numa economia em que, antes de tudo mais, produz-se.

Desse modo, todas as propostas de transformação das relações de consumo, especialmente os apelos à limitação do consumo pela consciência, condenam-se por conta própria, exatamente pela incapacidade de ir além do consumo, à inocuidade. Pois o problema fundamental – e é isto que se ignora – não está no consumo, mas na produção: é a estrutura produtiva do capitalismo, inexoravelmente voltada à multiplicação contínua do capital, que não pode existir senão como devoradora insaciável do meio ambiente. Consumir conscientemente, consumir seletivamente ou reciclar o lixo, na medida em que não alteram a essência da estrutura produtiva, são medidas não mais do que paliativas, capazes, na melhor das hipóteses, de atrasar o colapso em alguns instantes.

No mesmo sentido, a aparente automultiplicação das finanças só pode ser imaginada ao desconectar-se o que não pode ser desconectado. A multiplicação do capital pode ocorrer apenas pela exploração do trabalho, o que significa que pode ocorrer apenas na produção. Assim, toda a variação das finanças não se deve, em última instância, às próprias finanças. Mesmo a sua aparente autonomia só pode ser proposta em vista da dependência crescente do capital produtivo ao capital financeiro, mas de qualquer modo em vista da relação das finanças com a produção. Portanto a crise da economia capitalista só pode ser entendida como crise financeira por um olhar muito parcial: as raízes da crise só podem ser verdadeiramente encontradas nas relações de produção.

Em suma, apenas uma transformação da estrutura produtiva pode pôr fim à completa desmedida na exploração dos recursos ambientais. E, claro, apenas uma transformação das relações de produção capitalistas podem pôr fim à crise da produção capitalista. Voltar à produção é, de qualquer modo, indispensável.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 12/10/2011.]

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

[Crítica Social] Luta de classes, sim


LUTA DE CLASSES, SIM

Por que é tão necessário declarar extinta a luta de classes? Por que é tão imprescindível repetir, antes mesmo que qualquer debate sério a respeito (re)comece, que se trata de uma velharia, “paradigma” superado, algo “fora de moda”. Por que é tão urgente insistir no seu fim, na sua morte, na sua superação, especialmente quando os primeiros indícios de fumaça aparecem no horizonte?

Se a luta de classes acabou, o que os entusiastas do “novo” mundo do fim do séc. XX e início do séc. XXI pretendem colocar em seu lugar: uma sociedade harmônica, sem classes, da solidariedade? Ou a simples vitória definitiva – o “fim da história” – de uma classe sobre a outra?

Ora, a sociedade capitalista não é – e não pode ser – uma sociedade harmônica: a sua estrutura produtiva opõe necessariamente uma minoria de detentores do capital e uma maioria de despossuídos cuja única alternativa é viver do próprio trabalho. Pelo mesmo motivo, também não pode ser senão o campo de uma luta permanente: o domínio contínuo de uma classe nunca será vitória definitiva, porque a “vida” da sua estrutura econômica é a oposição, porque o seu movimento é a própria contradição.

A luta de classes é inerente à sociedade capitalista e está, na verdade, muito longe de acabar. A pressa e a urgência da classe dominante em declarar o seu fim é o mais evidente sintoma disto. O incremento visível desta pressa e desta urgência no momento em que o capitalismo enfrenta mais uma de suas crises é a demonstração cabal da plena vitalidade desta contradição fundamental.

Se as fábricas do mundo capitalista globalizado deslocaram-se para a China e o movimento político dos trabalhadores perdeu força por conta da queda do Muro de Berlim e dos processos de integração pelo consumo, isto não significa que a luta de classes tenha desaparecido ou se esfumaçado. Quando protestos tomam as ruas da Europa em crise e manifestantes propõem ocupar Wall Street contra o “mercado financeiro”, quando grupos abertamente conservadores começam as mostrar as caras e exigir um lugar em cena, é certo que não se fala de outra coisa senão luta de classes. Quando se trata de movimentos ambientais, de minorias, de excluídos, é certo que não se fala de outra coisa – ainda que os próprios movimentos não o saibam – senão de luta de classes. A luta de classes perpassa todas as grandes questões sociais do presente, manifesta-se em vários fronts, tem muitas demandas e muitas vozes: o imperativo dos nossos dias é conectar novamente essas múltiplas lutas, no que lhes há de comum, e dirigi-las contra o alvo exato.

Pois o espectro que, mais de 150 anos atrás, rondava a Europa não foi exorcizado – e agora não ronda apenas a Europa, mas o mundo. Este espectro, concorde ou não com isto a classe dominante, não deixará de causar calafrios à segurança da ordem estabelecida, não deixará de assombrar a solidez deste mundo, ao menos enquanto este mundo perdurar.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 05/10/2011.]