quinta-feira, 11 de outubro de 2007

[NJ] O público contra o povo

O PÚBLICO CONTRA O POVO

O mensalão, o filho do presidente, o ministro e o caseiro, o deputado e o dono do restaurante, o senador e o lobista e a amante, as operações com nomes estranhos da Polícia Federal, a insana multiplicação das CPIs etc. O cenário político brasileiro atual parece ser o de uma sucessão interminável de crises e escândalos. Talvez porque uma maior transparência em nossas instituições esteja tornando mais difíceis velhas práticas por “debaixo dos panos”, talvez porque o governo atual seja de fato mais corrupto que seus antecessores, talvez porque o poder dos capitais privados de influir nas decisões públicas tenha se expandido – talvez, o que é bem provável, a imprensa tenha simplesmente descoberto o escândalo como fórmula infalível de audiência.

Certo é que a situação gerou inédita desconfiança da população em geral quanto ao poder público. A cada nova edição transbordante de sensacionalismo do noticiário televisivo, em meio ao denuncismo exacerbado que faz apenas banalizar a corrupção, a sociedade é incentivada a ter desprezo pela política. A imagem do político hoje é, como nunca antes, a imagem do corrupto, do aproveitador, do interesseiro, do membro de uma “casta” ou corporação própria que protege e encobre seus pares. Como nunca antes, o brasileiro tem a contraditória sensação de que o público está contra o povo.

Tal sensação, no entanto, é barrada no nível superficial do descrédito quanto às pessoas que concretamente ocupam os cargos públicos ou, se muito, ao arranjo institucional do Estado. As propostas de “solução” que surgem aqui e ali comprovam isso. A velha máxima do “voto consciente” e as cobranças de punição exemplar para os corruptos, que insistem ser a solução para todos os males, resumem todo o problema à moralidade, à honestidade e à boa vontade. Propostas de reforma política e de reforma eleitoral existem várias, todas buscando maior rigor e confiabilidade, mas nenhuma sendo capaz de fechar todas as brechas. No limite, há quem confie na interferência da religião. E neste ponto, quando a salvação da política se confunde com a salvação da alma, quando a política se torna questão de fé, fica absolutamente claro que o caso já é de desespero.

O que não fica claro, em hipótese alguma, é que todas essas “soluções” não passam de paliativos. O problema do poder público não diz respeito apenas aos “desvios” como a corrupção, mas à própria existência de algo como um “poder público”, como o Estado. Mesmo que o aparelho estatal funcionasse exatamente como deveria, isto é, com transparência, de maneira perfeitamente democrática e com inabalável compromisso com um suposto interesse da coletividade, ainda assim o público estaria funcionando contra o povo.

Ao contrário do que figura no senso comum e nas teorias jurídicas e políticas dominantes, o Estado não existe para o interesse comum, isto é, para o bem da sociedade como um todo. E isto não implica afirmar que o Estado existe, de modo conspiratório, como um puro mecanismo de dominação que só serve para beneficiar alguns indivíduos ou grupos determinados em detrimento de todos os demais. Este é precisamente o “desvio”, o que há de irregular no funcionamento do Estado, que tem se revelado cada vez mais corriqueiro no Brasil.

O compromisso do Estado é com uma forma específica de organização da sociedade, aquela correspondente ao modo capitalista de produção – e, este sim, em sua essência fundado em exploração econômica, beneficia alguns poucos em detrimento de muitos, gera desigualdade e injustiça. O Estado, ainda que indiretamente, é, portanto, o guardião dessa desigualdade e dessa injustiça. Uma melhor escolha dos ocupantes dos cargos públicos ou qualquer reforma no quadro institucional do Estado não farão mais do que amenizar o problema – de nenhuma maneira o Estado poderá ser visto como aliado absoluto da parcela menos favorecida da sociedade, já que a ordem social que produz tal desfavorecimento está amparada no poder estatal.

Este tipo de crítica dificilmente pode ser expresso sem imediata taxação de “anarquista” ou “antidemocrático”, e por isso sequer chega a ser pensado ou minimamente levado em consideração, mas se mostra profundo e revelador. Deste ponto de vista, a questão central acerca das crises políticas contemporâneas é permitir que as consciências despertas pela agitação superficial ultrapassem a superfície. Pois o público está contra o povo não apenas porque os políticos nos lesam, mas porque o poder público não está do nosso lado.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 07/10/2007]