domingo, 28 de novembro de 2010

[Crítica Social] Automóvel, pobreza, discriminação

AUTOMÓVEL, POBREZA, DISCRIMINAÇÃO

Circulou como uma mania na internet na última semana um vídeo no qual o jornalista Luiz Carlos Prates, comentarista de uma emissora de TV de Santa Catarina, alega, entre outras coisas, que o alto índice de acidentes nas estradas brasileiras e outros problemas relacionados ao trânsito são devidos à “popularização do automóvel”. Crê o jornalista que os consumidores de baixa renda, aqueles que, em suas palavras, “nunca leram um livro”, são responsáveis, uma vez que agora têm acesso ao automóvel, pela insegurança no trânsito – e que, portanto, a ascensão social e a melhoria da qualidade de vida deste grupo social são “espúrias”.

O vídeo, claro, é um verdadeiro deleite para os reacionários de plantão, sempre mais numerosos do que racionalmente se pode supor. Por outro lado, para qualquer visão política minimamente engajada socialmente e consequente na análise da realidade brasileira, as declarações do jornalista só podem ser reputadas como absurdas. Pois aquilo que, no fim das contas, tais declarações alimentam não é senão a discriminação social, a discriminação de classe, uma certa visão elitista e esnobe recorrente em meio às classes dominantes brasileiras.

Ora, por que o motorista pobre – que apenas muito arbitrariamente pode ser dito “inculto” – seria responsável em maior medida pelas desventuras do trânsito do que o motorista de outra classe social? Qual relação pode ser estabelecida, com um mínimo de razoabilidade, entre violência no trânsito e condição social? Desde que haja disposição para pensar para além de preconceitos rasteiros, a resposta parece evidente: não há relação alguma, não há elemento algum que autorize uma ligação razoável entre a pobreza e a “culpa” por aquilo que se passa em nossas estradas.

A pergunta que se deve fazer é, então, uma outra: por que, mesmo diante da completa ausência de argumentos razoáveis, alguém pretende atribuir ao pobre uma tal responsabilidade? Qual o motivo para tanto? Ao que parece, o incômodo aqui não é tanto com o trânsito. O incômodo, no fundo, parece ser a constatação, por parte das elites, de que a propriedade do automóvel já não pode funcionar perfeitamente como elemento de distinção social. Se tanto o pobre quanto o rico podem ter um carro, então o carro já não serve ao rico como prova de seu distanciamento – ou da sua suposta “superioridade” – quanto ao pobre. E se, então, há problemas no trânsito, essa visão esnobe – e limitadíssima – de mundo não pode senão apontar o dedo para o outro e imaginar que nada disso ocorreria se esta “gente” estivesse ainda “condenada” ao transporte público.

Como análise dos problemas do trânsito, os argumentos apresentados no vídeo não fazem o menor sentido. Mas fazem sentido, pensando bem, como protesto contra o esfumaçamento de velhos “degraus” sociais dos quais nossas velhas elites tanto se comprazem. Com isto, evidentemente, uma visão socialmente crítica não pode em nenhuma hipótese concordar.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 24/11/2010.]

domingo, 21 de novembro de 2010

[Crítica Social] Homofobia e religião

HOMOFOBIA E RELIGIÃO

As declarações das autoridades maiores da Igreja Católica não raro surpreendem. A condenação da homossexualidade como “pecado”, a proibição do uso do preservativo mesmo diante do avanço das doenças sexualmente transmissíveis, a insistência no celibato mesmo diante de constantes “escândalos” sexuais do clero – tudo isso parece bem pouco e cada vez menos razoável. No fundo, tais posições talvez sejam explicáveis como recrudescimento desesperado diante da perda contínua de adeptos, talvez como gritos de agonia de uma visão de mundo em vias de desaparecer num mundo em que a circulação cada vez mais frenética de informações ameaça a persistência de qualquer dogma. Mas explicá-las definitivamente não é o que importa aqui...

Foi notícia [v., por exemplo, FSP e Terra] nos últimos dias a declaração de Bento XVI a bispos brasileiros na qual o papa conclamou-os à defesa do “matrimônio entre homem e mulher” e da vida “desde o momento da concepção até a morte natural” [discurso na íntegra: aqui]. Leia-se: contra a união entre pessoas do mesmo sexo e contra o aborto. Isto, claro, não é uma novidade. Há poucas semanas, o mesmo Bento XVI, em clara tentativa de interferir no processo eleitoral brasileiro, discursou em termos semelhantes a outros bispos brasileiros. E são freqüentes mesmo as suas declarações nesse sentido – isto quando não são ainda mais abertamente conservadoras.

O que mais surpreende, porém, é que, quase ao mesmo tempo em que a declaração de Bento XVI é noticiada, a grande mídia destaca a agressão sofrida por um grupo de jovens em São Paulo, em plena Av. Paulista. A suspeita maior, até o momento, é de que a agressão tenha sido motivada por homofobia. E isto, por sua vez, também não é novidade entre nós. Embora as estatísticas não sejam claras, é certo que o Brasil é um dos países com maior índice de violência contra homossexuais no mundo. Na região da Av. Paulista, em específico, agressões semelhantes são recorrentes.

Esta coincidência entre as notícias não apontará, se pensarmos bem, para uma outra “coincidência”? Quero dizer, esta persistência da homofobia, e em níveis tão alarmantes que desencadeiam uma violência sistemática, não terá alguma relação com preconceitos alimentados exatamente por uma visão religiosa de mundo?

Ora, a Igreja e os fiéis poderão certamente argumentar que a religião não propaga, mas condena toda e qualquer forma de violência. E isto é certo. Mas parece certo também que a insistência da Igreja na condenação da homossexualidade, a sua taxação incessante como “imoralidade” ou “pecado” a ser combatido, não contribui em absolutamente nada para o arrefecimento da homofobia. Pelo contrário, alimenta-a na medida em que fornece, direta ou indiretamente, fundamentos para uma visão segregacionista, discriminatória, preconceituosa. Que esta visão, logo adiante, torne-se violência aberta é algo bastante previsível.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 17/11/2010.]

domingo, 14 de novembro de 2010

[Crítica Social] Sobre a pobreza e o seu desconhecimento

SOBRE A POBREZA E O SEU DESCONHECIMENTO

Será que o leitor paulistano tem idéia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200?” A pergunta é parte de um texto de Maria Rita Kehl, publicado ainda durante a campanha eleitoral presidencial no Estado de São Paulo – texto que, diga-se, custou a demissão da autora do cargo de colunista daquele periódico abertamente conservador. Os 200 reais em questão dizem respeito ao programa Bolsa-Família.

Pois bem, insisto: será que o brasileiro de classe média, especialmente do sudeste e do sul do país, tem idéia do que significa ser miserável? Será que, da sua posição social, ele consegue compreender o que é a pobreza e a sua real dimensão na sociedade brasileira?

Para quem nunca sofreu com a carência das coisas mais elementares, talvez nunca tenha surgido a oportunidade de compreender que mesmo o mínimo essencial – o alimento, a água, a vestimenta, o teto, o transporte, a higiene etc. – só podem ser obtidos com dinheiro. E quem não é proprietário – de terras, máquinas, estabelecimentos comerciais etc. – não tem outra maneira de obter dinheiro (e, portanto, tudo mais que é indispensável à sua sobrevivência) senão vendendo o próprio trabalho. O que acontece, então, com aqueles que, no “mercado de trabalho”, não conseguem vender o próprio trabalho ou só conseguem vendê-lo em condições marginais, como uma “mercadoria de segunda”? Ora, o que acontece é a pura e simples incapacidade de custear mesmo as suas próprias condições elementares de subsistência.

A classe média costuma atribuir esta condição “desfavorecida” a causas morais: é porque alguns indivíduos não têm “vontade”, não “se esforçam”, não “lutam” que vivem na pobreza. Mas mesmo que todos queiram e se esforcem, há oportunidades para todos? A formação econômica em que vivemos oferece esta possibilidade? Na verdade, não. Não há “lugar ao sol” para todos. A condição indispensável para a riqueza ou, pelo menos, a boa vida de alguns é a miséria de muitos – esta desigualdade é estruturalmente necessária na sociedade presente.

Não é minimamente razoável, portanto, atribuir ao próprio pobre a responsabilidade pela sua pobreza. Não é minimamente razoável imaginar que a pobreza é algo de “natural”, deste modo, irremediável. Há, sem dúvida, um profundo desejo da classe média e dos grupos privilegiados em geral de ignorar a situação penosa de quem é miserável e, em especial, a dimensão social da miséria no Brasil. A auto-ilusão, porém, não pode sobreviver por mais de dois minutos diante da dura realidade social em que – querendo ou não – vivemos. A perpetuação de níveis absurdos de pobreza é uma chaga profunda da sociedade brasileira. Nossa desigualdade social está entre as maiores do mundo. Enfrentar isso é inquestionavelmente uma missão urgente.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 10/11/2010.]