quarta-feira, 5 de novembro de 2008

[NJ] A política e os puros

A POLÍTICA E OS PUROS

Há uma certa atitude despontando na política, uma velha atitude travestida de nova, uma sutil, sublime e astuta atitude “pura”. Sim. Há quem reclame (nem sempre com todas as letras, pois pode mesmo soar estranho), em pleno séc. XXI, em pleno impuro (intrinsecamente impuro) domínio da política, a mais alta “pureza”. Não exatamente uma pureza nas posições partidárias ou uma pureza de ideologia política, mas uma “pureza” algo metafísica. Pureza de coração e sentimentos, pureza de corpo e alma – políticos “puros”, nesse peculiar sentido.

Poderia ser uma simples visão “romântica” da política. Poderia, mas, de fato, não é. Os “românticos” entendem que a política é comunhão, unidade, interesse coletivo, o próprio coletivo uma vez – e para sempre – perdido na sociedade civil. Entendem a política como uma esfera luminosa na qual as sombras dos interesses egoístas e espúrios, o “pecado” e a “sujeira”, jamais penetram ou jamais deveriam penetrar – na qual há lugar apenas para a luz eternamente impoluta do que é comum, universal. Mas os “românticos”, que ficam bem na academia e na literatura, que formam sempre novas levas de discípulos e escrevem livros muito lidos, não duram muito na “carreira”, na política “profissional”.

As disputas eleitorais são invariavelmente disputas de interesses. Leia-se: disputas entre interesses privados, entre egoísmos conflitantes, nas quais o último a restar de pé é aquele que há de prevalecer, através da maquinaria do poder público, sobre todos os demais. Exige-se de quem pretende levar a vida nisso, portanto, ao menos uma atitude “realista”. A vida do político “profissional” é uma permanente luta de sombras, na qual é necessário, não raro, aliar-se aos inimigos para logo depois desfazer-se deles, puxar o tapete dos adversários, fazer o que for preciso para sair vitorioso. Na qual é preciso, numa palavra, sujar-se – ainda que para permanecer limpo. Isto, evidentemente, não é o que se propagandeia – é a realidade que interessa manter desconhecida.

Ocorre que o político “profissional” – que é um “realista” e faz o que é necessário, como dele se exige – logra, ao dizer-se “puro”, colocar a situação, aos olhos dos seus e do público em geral, de forma radicalmente diferente. A suposição da “pureza” torna uma simples disputa de interesses um tanto mais elevada, artificialmente elevada, como que passada num outro patamar. Aparece não mais como uma disputa entre interesses que, no egoísmo, equivalem-se, mas como uma disputa entre inúmeros interesses “sujos” e um único “limpo”, entre a “impureza” de todo o resto e a “pureza” de uns poucos – exagerando, mas nem tanto, como uma disputa entre o “bem” e o “mal”.

Ora, na disputa entre o “bem” e o “mal”, o universo, o destino, a vontade por trás do destino hão de interferir, sempre em prol do triunfo do “bem”. Por isso os “puros” devem, a todo custo, permanecer “puros”. Não podem aliar-se a “impuros”, em nenhuma circunstância. Não podem acolher quem não foi devidamente iniciado. Não podem assumir qualquer postura propriamente política – direita, esquerda, centro etc. –, pois as posturas, ao menos quando claras, são tão “impuras”. O que aparece sempre é o velho discurso de “trabalhar para todos”, “acima das ideologias”, como se o “espírito” estivesse encarnado no coletivo e fosse possível cultivar o “espírito” sem tomar partido. Pois o que importa mesmo é afastar a “impureza” e os “impuros” – a eleição se converte assim numa Cruzada e os “puros” agem como os detentores da luz e da verdade, os porta-vozes da salvação. Tudo se resume estranhamente a uma questão meramente pessoal – a saber, se a pessoa a ocupar este ou aquele posto político está devidamente qualificada pela “pureza”. E os “impuros”... são sempre os outros. Os adversários. Os que já estão no poder. (Estranhamente conveniente, não?)

Como conseqüência, a vitória política dos “puros” nunca vai aparecer como a simples vitória de uns sobre outros. Será sempre uma manifestação celestial na terra. Será sempre a vitória dos céus, em relação à qual os “puros” não passam de instrumentos. Mas nenhuma entidade alada descerá à terra para ocupar pessoalmente cargo político algum. Nenhuma “pureza” garante coisa alguma além de, quem sabe, boas intenções – mas destas, como dizem, não são os céus que estão repletos. Que ninguém se engane: a única combinação possível entre política e pureza não é a dos políticos “puros”, é a dos puros políticos.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 02/11/2008]