quarta-feira, 24 de julho de 2013

[Crítica Social] Habemus papam

HABEMUS PAPAM

A visita ao país do Papa Francisco I, soberano da monarquia absoluta teocrática do Estado da Cidade do Vaticano, é notícia onipresente nos veículos de comunicação. As supostas virtudes de Sua Santidade, sobretudo uma “simplicidade” tão convenientemente demonstrada, são exaltadas a cada instante. Imagens de manifestações exageradas de devoção e de fanatismo das multidões que seguem o sumo pontífice inundam os noticiários: provas da grande e inabalável “fé” dos brasileiros, é o que dizem. Provas, sem dúvida, da grande influência que a religião ainda exerce entre nós em questões não religiosas, sobretudo políticas.

Nesse sentido, a sensacionalismo midiático sobre a visita do papa não pode elidir problemas fundamentais. Limitemo-nos a dois questionamentos aparentemente deixados de lado.

Em primeiro lugar, a despeito do misticismo que envolve o cargo, o papa é líder de uma instituição, a Igreja Católica – instituição que, a despeito do misticismo que a envolve, atua neste mundo. Essa atuação envolve influência, poder, dinheiro. Não é demais lembrar que a instituição Igreja é uma das maiores proprietárias fundiárias do mundo, que recolhe anualmente somas vultosas de recursos de seus seguidores e que sustenta uma estrutura gigante e global. Também não é demais lembrar que, pouco tempo atrás, essa mesma instituição ocupava os noticiários com manchetes muito diversas: escândalos sobre suas finanças, denúncias seríssimas a respeito da atuação mundana do poderoso “Instituto para as Obras da Religião” (ou Banco do Vaticano) etc. Nada poderia ser mais conveniente para abafar tais escândalos do que um carismático garoto-propaganda das virtudes “franciscanas” – mas o que as virtudes de um único homem (mesmo que autênticas, o que sequer vem ao caso) alteram nas práticas mundanas efetivas da Igreja? Ou, ao contrário, a propaganda da “simplicidade” é apenas uma maneira de perpetuar as mesmas práticas longe dos holofotes?

Em segundo lugar, o sorriso fácil do papa e os seus gentis discursos sobre fraternidade, solidariedade e amor ao próximo não mudam o lugar que a influência religiosa ocupa no espectro das posições políticas no cenário contemporâneo. Não são, via de regra, posições de esquerda ou sequer progressistas. Ao contrário, argumentos de inspiração religiosa são os principais pontos de apoio de algumas das posturas mais retrógradas de que dispomos: contra a legalização do aborto, contra a pesquisa científica que envolve o genoma humano, contra a emancipação feminina, contra os direitos dos homossexuais etc. A influência da religião na política não tem levado a nenhuma exigência de transformação social, a nenhum clamor efetivo por mudança radical – na melhor das hipóteses, tem levado a uma proposta vaga de moralização da política, tradicional bandeira da direta. Noutras palavras, a influência da religião tem servido a uma política conservadora. Não seria, então, o momento de propor, ao invés de uma aproximação, uma emancipação da política quanto à religião? Ou, mais precisamente, uma política verdadeiramente laica?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 24/07/2013.]

quarta-feira, 3 de julho de 2013

[Crítica Social] Ainda sobre as manifestações

AINDA SOBRE AS MANIFESTAÇÕES

I – A estratégia adotada pela grande mídia para “anular” as manifestações foi muito mais eficiente do que aquela da tropa de choque. De um dia para o outro, a TV e os grandes jornais passaram a “apoiar” o movimento, com a ressalva explícita de que seriam “legítimos” apenas os protestos pacíficos. Com isso, o movimento rachou entre uma “maioria” de “pacifistas” e uma “minoria” de “baderneiros” que se “infiltravam” apenas para causar desordem e depredação. A “maioria” passou logo a ser pautada pelos telejornais e se transformou num freio mais forte do que balas de borracha contra qualquer possibilidade de radicalização das manifestações.

II – Imediatamente após a redução das tarifas do transporte público, o movimento perdeu a pouca unidade que tinha. Uma enorme somatória de exigências inteiramente fragmentadas e contraditórias tomou as ruas. Uma série de pautas “apolíticas” e até mesquinhas passou a desviar a atenção quanto ao principal: desde maus-tratos aos animais até redução do imposto de importação para eletrônicos. Instalou-se, com o aplauso da mídia, uma aversão a “ideologias” – mas o silêncio das “ideologias” é sempre o território da direita. O nacionalismo inconsequente das multidões enroladas na bandeira e cantando o hino nacional, simbologia típica da extrema direita, é a prova cabal disso.

III – Instalou-se igualmente uma aversão generalizada aos partidos políticos. Mas essa aversão se dirige, no fundo, contra qualquer forma de unificação e organização do movimento. Assim, as manifestações canalizaram uma enorme massa de insatisfação reprimida, mas essa insatisfação foi acompanhada de uma recusa ativa (e por vezes agressiva) a tomar consciência de suas causas e dos meios adequados para levar adiante as suas exigências. Não se percebeu que os partidos que foram para a rua (e que foram hostilizados pela “maioria” “pacifista” e “sem ideologia”) eram sobretudo partidos de esquerda (que, cada um ao seu modo, pleiteiam mudanças) – e, por outro lado, isto permitiu a apropriação do discurso do movimento por partidos de direita (que pretendem bloquear qualquer mudança efetiva e que são, portanto, “inimigos” do movimento).

IV – Ainda assim, não deixa de ser interessante observar o terror instalado entre os detentores do poder político diante da simples visão das massas tomando as ruas. Esse terror tem uma causa óbvia: o potencial maior de transformação social radical reside precisamente no movimento de massas, que toma as ruas para fazer as suas exigências fora dos mecanismos institucionais da democracia estabelecida (que garantem de antemão a esterilidade de qualquer participação política). Infelizmente o discurso vago do movimento tende a tornar possível responder aos clamores das ruas com propostas igualmente vagas de “reforma política”.

V – Mais ainda, não deixa de ser interessante observar o pânico das elites brasileiras. Os sintomas desse pânico apareceram de diversas maneiras: nos boatos espalhados nas redes sociais sobre um novo golpe militar, na reacionária crítica de Arnaldo Jabor veiculada num telejornal da Globo (e prontamente retificada logo a seguir), num texto nonsense publicado na Veja em que uma professora da USP censura o movimento por ser composto por jovens que foram “mimados” na infância etc. Ora, trata-se da reação “natural” daqueles que se acostumaram a estar do lado vencedor diante do simples vislumbre, ainda que muito remoto, de uma virada de mesa.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 03/07/2013.]

terça-feira, 18 de junho de 2013

[Crítica Social] Reflexões sobre as manifestações em São Paulo

REFLEXÕES SOBRE AS MANIFESTAÇÕES EM SÃO PAULO

I – A reação espontânea às recentes manifestações que tomaram as ruas de São Paulo para protestar (a princípio) contra o aumento da passagem de ônibus urbano e metrô para R$ 3,20 é uma boa unidade de medida de posicionamentos políticos. Quem argumenta que os manifestantes têm direito de manifestar a sua opinião desde que em silêncio, sem atrapalhar o trânsito ou a “vida alheia” – é conservador. Quem “argumenta” que são desordeiros, baderneiros, desocupados etc. e que a “ordem” deve ser mantida à força – é reacionário.

II – O ponto de vista segundo o qual “míseros” 20 centavos não justificam as manifestações é o ponto de vista típico das classes médias e altas. Isto é, o ponto de vista de quem tem leva uma vida confortável (no mínimo) e, principalmente, de quem não usa transporte público. A sua base de apoio mais íntima é a velha discriminação social, o profundo e esnobe desprezo pela pobreza que atinge os grupos que se acostumaram (e gostam de) olhar “de cima para baixo” na sociedade brasileira. R$ 3,20 é, sim, demais, além do aceitável para um transporte público ruim, lento, em que usuário é cotidianamente maltratado.

III – Quem defende as manifestações com a ressalva de que não sejam violentas é, na verdade, contra as manifestações. A mobilização não vai simplesmente “convencer” com seus números. Nenhuma transformação efetiva surge da simples “boa vontade”. Transformações são conquistadas. Grandes transformações – que exigem vencer resistências, vencer os interesses dominantes etc. – são conquistadas à força. As censuras voltadas contra as manifestações exprimem, cada uma a seu modo e com seus (precários) argumentos, aversão à simples possibilidade dessas transformações e o desprezo por quem tem a “ousadia” de lutar por elas.

IV – A crítica que apela a um “despreparo” da PM está fundada numa representação idílica do aparato policial como guardião da ordem e da segurança. Sim: assistimos a cenas deprimentes de violência gratuita por parte da PM, vimos balas de borracha (ainda potencialmente letais) sendo disparadas sem motivo, vimos policiais tomando as ruas deliberadamente sem identificação nas fardas, vimos um policial atirando spray de pimenta num cachorro e outro descaradamente quebrando o vidro da própria viatura. Mas, não: isto não é despreparo. A função primordial do aparato policial é precisamente a repressão, ele é preparado para isso: guardião da ordem, mas de uma ordem muito específica, amparada por interesses muito específicos, dispostos a utilizar a força bruta se preciso for. (Com a ressalva clara de que isto diz respeito à polícia como instituição: os policiais não são individualmente responsáveis pela situação e sequer pertencem às classes sociais que se beneficiam dessa força bruta.)

V – Ainda que as manifestações não resultem em nada de concreto, a violência policial escancarada em frente aos cinegrafistas da TV e compartilhada ao vivo nas redes sociais deixa pelo menos algo de permanente: uma amostra vívida do que acontece cotidianamente nas periferias das grandes cidades brasileiras, longe de qualquer registro pelas câmeras e sem qualquer alarde na mídia. Agora todos podem saber que é com essa violência (ou mais) que a desigualdade social é “enfrentada” todos os dias.


[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 19/06/2013.]

quinta-feira, 16 de maio de 2013

[Crítica Social] Sobre o “bolsa crack”

SOBRE O “BOLSA CRACK”

O governo do estado de São Paulo anunciou nos últimos dias um programa de assistência em que famílias de dependentes do crack receberão R$ 1.350,00 mensais para custear o tratamento destes em clínicas particulares. E, como era de se esperar, o programa recebeu desde então uma avalanche de críticas – em geral, como também era de se esperar, do pior tipo.

Há, é bem verdade, um preconceito já bastante arraigado contra o dependente do crack, preconceito que apenas agrava a situação já por si só muito grave do dependente. Como acontece com todos os outros tipos de dependência química, a questão é, desde o princípio, moralizada indevidamente. Mas especificamente no que diz respeito ao crack, as medidas de combate à dependência têm sido carregadas por uma preocupação higienista muito clara, cujo pressuposto é uma visão do dependente como uma espécie de “sujeira” ou de “doença” no espaço urbano. A desocupação violenta da assim chamada “cracolândia”, na cidade de São Paulo, no início de 2012 e a recente onda de propostas de internação compulsória dos dependentes são a prova disso.

Embora evidentemente insuficiente e falho, o auxílio para custear o tratamento do dependente do crack foge, ao menos em parte, desse esquema higienista. Enfrenta a dependência como uma questão de saúde pública e parte do reconhecimento de que a rede estatal de saúde não dispõe de condições mínimas suficientes para oferecer a todos o tratamento adequado. E este é precisamente o grande problema do programa, aquilo pelo qual deve ser criticado: o enfrentamento ideal seria, de fato, aquele levado a cabo por meio da ampliação quantitativa e do incremento qualitativo da oferta de tratamento público para os dependentes.

Para além disso, o programa herda uma série de críticas repletas de ideais reacionários e  sofre as mesmas censuras já repetidas à exaustão contra outros programas sociais, como o bolsa família ou o bolsa escola. Para quem prefere – ou ao menos parece preferir – que a população em situação de miséria continue na mesma, sem qualquer assistência por parte do Estado, talvez pareça aceitável que o dependente do crack continue simplesmente na mesma situação, à margem de tudo, sem qualquer amparo. Basta um pouco de razão, no entanto, para perceber que isto é um absurdo.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 15/05/2013.]

quinta-feira, 9 de maio de 2013

[Crítica Social] Sem saída

SEM SAÍDA

Os direitos humanos! A arte engajada/autêntica/não alienada! A educação para a autonomia/para a emancipação! O pensamento livre/desideologizante! Há uma saída! Sempre há uma saída!

A liberdade e a igualdade concretizadas! A vitória dos valores sociais sobre o individualismo! A essência humana finalmente realizada! A conscientização/politização das massas! Há uma saída! Sempre há uma saída!

Mas não, não há saída. Que vã esperança é essa que parece empurrar permanentemente a crítica social para o devaneio? Que otimismo ingênuo é esse que parece recusar-se a admitir que todas as portas estão trancadas (e que, portanto, é preciso, no mínimo, derrubá-las à força)? Por que é tão necessário renovar a todo momento o anúncio de uma saída pronta e à disposição, sempre ao alcance, logo ali? Por que é tão necessário ter em mãos isto, seja lá o que for, que permite conclamar sem cessar: “vejam, aqui está toda a esperança”?

Será o completo desespero ante a completa falta de alternativa? Desespero que, no limite, exige antepor alternativas onde não há. Desespero que, quase transformado em delírio, precisa imaginar para suportar a dura realidade. Será, então, que a mentira de que a transformação virá amanhã ou logo mais é condição para manter minimamente em atividade toda crítica e toda luta? Será que essa mentira é a condição que impede a derradeira rendição, a capitulação cabal ante o presente?

Ou será que a “aposta” nas formas e elementos típicos do mundo capitalista como protagonistas da transformação social é, na verdade, o índice do compromisso ainda profundamente arraigado, mesmo entre os críticos, com esta mesma sociedade? Será que essa “aposta” inteiramente ineficaz é a medida da incapacidade da crítica de abrir mão, no limite, do presente em nome de um futuro inteira e radicalmente novo? Ora, não se pode superar a sociedade presente com a reposição de mais do mesmo. Se a tarefa que se impõe à crítica social é pensar a superação da sociedade capitalista, certamente ela não pode pretender utilizar para tal fim aquilo que a própria sociedade capitalista oferece. E se ela não consegue pensar essa superação senão através dos elementos que a sociedade a ser superada fornece, o seu vínculo mesmo com a transformação social é que deve ser questionado.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 08/05/2013.]

quinta-feira, 2 de maio de 2013

[Crítica Social] Sobre a redução da maioridade penal

SOBRE A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL

Há várias maneiras de não resolver um problema. Uma maneira particularmente eficaz de fazê-lo é atacar as consequências do problema, os seus efeitos, as suas formas de manifestação, sem jamais atingir as suas causas. É disso que se trata, em pouquíssimas palavras, a proposta atualmente em discussão de redução da maioridade penal no Brasil.

Novo bastião do conservadorismo e do senso comum prontamente alinhado à direita, a redução da maioridade penal é uma resposta inadequada e insuficiente, muito convenientemente requentada midiaticamente para atender a certos interesses políticos específicos do momento. O seu pressuposto é a presunção de que a ameaça da sanção penal (ou a sua efetiva imposição, tanto faz) serve como inibidora da prática de delitos – e, portanto, a presunção de que a perspectiva de impunidade para os menores de 18 anos é o fator determinante que “empurra” o jovem para a criminalidade.

Ora, se a sanção penal servisse realmente como inibidora, a criminalidade entre os maiores de 18 anos deveria ser reduzida. Mas não é. A existência simultânea de um sistema prisional cada vez mais superlotado e de índices de criminalidade crescentes é a prova empírica cabal. As medidas penais não reduzem significativamente a incidência da criminalidade simplesmente porque a ameaça ou não da sanção não é o fator determinante, não é o que “empurra” alguém para a prática do crime. A repressão estatal não elimina, sequer reduz drasticamente a criminalidade simplesmente porque mantém intactas as suas causas mesmas.

O fator determinante não é jurídico, portanto não pode ser enfrentado com uma mera alteração legislativa. O que leva o adulto ou o jovem para o crime é a perpetuação de condições sociais de extrema desigualdade. Condições de profunda exclusão e, ao mesmo tempo, de profunda carência de expectativas que, ao menos enquanto não houver uma transformação social radical, impossível de levar a cabo juridicamente, continuarão atuando sobre o jovem – quer a maioridade penal seja de 18, de 16, de 14, de 12 ou de 5 anos de idade.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 01/05/2013.]

quinta-feira, 18 de abril de 2013

[Crítica Social] A senzala e a lei

A SENZALA E A LEI

A aprovação da emenda constitucional que assegura os direitos sociais mais básicos às empregadas domésticas tem causado alvoroço há alguns dias. Algo tão simples, tão elementar, mas que causa um incômodo muito revelador: um incômodo típico da classe média brasileira, eternamente deslumbrada diante do mesmo delírio elitista, vivendo permanentemente o mesmo e desprezível desejo de reafirmar a sua posição de “superioridade” e, ao mesmo tempo, de ver-se “servida” por aqueles que estão abaixo. A reação típica – para ser simples e direto – daquilo que há mais conservador dentre os ideais políticos superficiais e espontâneos que habitam o senso comum. (Se bem que isto não impede, é claro, outros ideais mais elaborados e nem um pouco ingênuos no mesmo sentido.)

Ora, o que pode haver demais aqui? Trata-se do simples reconhecimento expresso de que a empregada doméstica é uma trabalhadora como qualquer outra e, portanto, de que ela deve ter garantidos todos aqueles direitos de que todos os outros trabalhadores dispõem. O absurdo – e também o único motivo de espanto possível aqui – reside na inaceitável demora para que esse reconhecimento fosse levado a cabo.

Até mesmo como conquista política, esse reconhecimento só pode ser reverenciado até certo ponto. Não se trata do triunfo do “fraco” sobre o “forte” e, assim, todos aqueles que se colocam ao lado do “fraco” não podem dar-se por satisfeitos. O que todas as posições políticas críticas, insatisfeitas com o presente e engajadas na transformação social têm a comemorar é apenas a vitória sobre uma resistência fundada num anseio pela manutenção de uma desigualdade extrema e num preconceito atroz que quase faz remontar à mão que (sádica e) prazerosamente segura o chicote do senhor de escravos. Mas mesmo essa vitória é, para dizer o mínimo, muito parcial.

Tratar a empregada doméstica como trabalhadora, com os direitos correspondentes, significa, na melhor das hipóteses, explorar o seu trabalho com alguma “dignidade” ou com uma indignidade mitigada. Na melhor das hipóteses, note-se, porque a garantia jurídica não implica imediatamente esse incremento de “dignidade”. Mas, no efetivo, isso não significa nada – ou melhor, não significa que tenha havido ou que haverá qualquer transformação social considerável, em termos estruturais, por conta desse reconhecimento de direito. No que é fundamental, a exploração mesma não é atingida, sequer arranhada.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 17/04/2013.]

quinta-feira, 28 de março de 2013

[Crítica Social] Sobre a desocupação da aldeia Maracanã

SOBRE A DESOCUPAÇÃO DA ALDEIA MARACANÃ

Na manhã da última sexta-feira, 22/03, a polícia militar desocupou de forma muito violenta o terreno da aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro. Antiga sede do Museu do Índio e ocupado de 2006, o local integra os planos de reestruturação do entorno do estádio do Maracanã para os eventos esportivos de 2014 e 2016. Diante do absurdo da violência e, sobretudo, diante dos interesses que animam esse absurdo, algumas reflexões podem ser levantadas.

I – Não é incomum encontrar aqueles que ainda concebem o índio como um semibárbaro (ainda que essa posição seja frequentemente “disfarçada” para evitar constrangimentos) e, assim, entendem que arrastar o índio para fora da sua vida tradicional é o mesmo que arrastá-lo para dentro da “civilização”, portanto um “favor” a ele prestado. Quando, no entanto, assistimos às cenas deploráveis de como esse “favor” é levado a cabo, é impossível não perguntar: de que lado está a barbárie e de que lado está a civilização? A atrocidade cometida contra o índio é uma demonstração cabal da incivilidade da sociedade que pretende civilizá-lo à força.

II – A violência contra o índio evidenciada no episódio da aldeia Maracanã é apenas uma ínfima parcela da violência sistemática e multissecular dirigida contra os indígenas do Brasil. O que espanta aqui é apenas o descaramento da violência cometida à luz do dia numa grande cidade, diante de veículos de imprensa e câmeras de TV, mas a violência que os indígenas sofrem, em silêncio e com a conivência da grande mídia, nas áreas mais distantes e, sobretudo, a violência que empurrou, desde o séc. XVI, os povos indígenas para as margens do território e da sociedade do Brasil é incalculavelmente maior.

III – A barbárie que vitimou os índios da aldeia Maracanã tem por “motor” os interesses bastante ávidos pela especulação imobiliária. Trata-se, em última análise, da barbárie intrínseca ao capital. Não há, no mundo contemporâneo, força maior: o capital não hesita passar por cima do respeito à diversidade, dos assim chamados diretos humanos, da dignidade ou mesmo da vida de quem quer que seja. Essa é a barbárie cotidiana do nosso mundo, repetida sem cessar sob a “capa” da civilidade do “melhor dos mundos possíveis”: a barbárie da miséria, da exploração do trabalho, da exclusão social, da violência estrutural contra todas as minorias etc. Os índios são apenas mais uma das “vítimas”: é preciso que todas as outras, a imensa maioria, se reconheçam como partes de uma mesma luta.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 27/03/2013.]

quinta-feira, 21 de março de 2013

[Crítica Social] Sobre o cicloativismo

SOBRE O CICLOATIVISMO

Um deplorável acontecimento em São Paulo, na Av. Paulista, colocou em evidência um movimento de usuários e defensores da bicicleta como meio de transporte. Mas o acontecimento – o atropelamento de um ciclista que teve o braço decepado e, a seguir, atirado num rio por um inconsequente – não foi mais do que um infeliz gatilho midiático. Esse movimento cicloativista, na verdade, existe já há tempos e tem ganhado força significativa em grandes cidades brasileiras.

Trata-se, sem nenhuma dúvida, de uma exigência bastante legítima. A estrutura urbana de nossas metrópoles – São Paulo talvez mais do que qualquer outra – têm sido desenvolvida sob a lógica dominante ou exclusiva do deslocamento via automóvel privado. As consequências são óbvias e não poderiam ser piores: transporte ineficiente e caro, congestionamento, poluição etc. Assim, qualquer iniciativa em prol do transporte coletivo (sobretudo) ou do transporte individual alternativo há de ser bem recebida.

Por outro lado, o uso da bicicleta não pode ser apresentado como “solução” para o que quer que seja. A “boa vontade” do ciclista que se dispõe a enfrentar, na contracorrente, a enxurrada de veículos automotores que toma as ruas não é uma medida minimamente eficaz para mudar a realidade. Para ser alçado à qualidade de movimento social ou de movimento que propõe algo de efetivamente transformador, o cicloativismo precisa tomar em consideração fatores que extrapolam a luta por “respeito” pelo lugar da bicicleta no trânsito e por “direitos” para o ciclista.

Como tantos outros movimentos, o cicloativismo se coloca atualmente como uma luta setorial, por reconhecimento e proteção às prerrogativas de um grupo. Nesse sentido, a sua luta é até “mais fraca” do que a de muitos outros movimentos: porque a sua causa é socialmente menos urgente (do que a causa da discriminação do negro, da mulher ou do homossexual, por exemplo) e porque o grupo dos ciclistas é numericamente inferior com relação a muitas das outras “minorias”. A condição para que o cicloativismo assuma um caráter transformador é a radicalização das suas exigências de modo que a luta pelo lugar da bicicleta seja, ao mesmo tempo, luta contra a sociedade na qual a bicicleta é marginalizada. Noutras palavras: a luta pelo lugar da bicicleta como capítulo da luta pela transformação da sociedade presente.

Isto exige, em primeiro lugar, buscar as razões da marginalidade da bicicleta. A lógica do transporte por meio do automóvel privado, lógica que exclui o ciclista, não aparece por acaso, não está ligada a “má vontade” ou a “falta de esclarecimento”, mas está profundamente conectada ao tipo específico de estrutura econômica – e, consequentemente, ao tipo de sociedade – na qual vivemos: que privilegia a produção do carro como mercadoria e que, em última análise, coloca, no trânsito, o interesse da montadora acima do interesse mais amplo por um trânsito que flua e o interesse individual do motorista acima do interesse mais amplo por uma cidade acessível e limpa.

Sem a transformação de tais condições econômicas e sociais, o lugar da bicicleta não poderá ser senão secundário. Sem isso, o cicloativismo não será mais do que voluntarismo insistente e ingênuo, porém sem maiores consequências.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 20/03/2013.]

quinta-feira, 7 de março de 2013

[Crítica Social] Sobre a violência dos videogames

SOBRE A VIOLÊNCIA DOS VIDEOGAMES

Na sociedade na qual o bullying se tornou tabu e o politicamente correto foi alçado a novo dogma religioso, tornou-se lugar comum acusar os videogames de violentos e imputar a violência do “mundo real” aos videogames. Os pais, hoje, proíbem aos filhos o acesso aos jogos eletrônicos violentos na ânsia de “protegê-los” de algum tipo de desvio na formação que, causado por esses jogos, supostamente poderia transformá-los em indivíduos violentos. Não podem “protegê-los”, no entanto, do que realmente importa: da sociedade em que vivem.

Essa situação é radicalmente diferente daquela que predominava ainda há pouco tempo. Quem foi criança ao longo dos anos 80 e 90 cresceu não apenas exposto a videogames violentos (para a classe média, pelo menos), mas sob “rigorosa” educação provida diariamente por horas diante da TV (nesse caso, para todas as classes sociais). E o conteúdo “infantil” da TV nesse período era igualmente violento, sem qualquer pudor: filmes, seriados e até desenhos animados recheados de agressão gratuita, sangue e tripas. Não havia, ao que parece, grande preocupação dos pais a esse respeito. E não há, pelo menos não claramente, indício de uma maior tendência à violência por parte dos indivíduos pertencentes a essa geração (hoje com mais de 25 anos).

Quando um adolescente invade a sua escola armado e distribui tiros para todos os lados – algo que infelizmente se repete com cada vez mais frequência nos EUA e no mundo todo – ou diante de qualquer outra situação em que jovens são surpreendidos em atos de extrema violência, buscar os motivos para isto nos videogames é apenas a saída mais fácil e, como tal, falsa. A responsabilidade não é dos videogames, é da sociedade mesma que, pelos mais diversos meios e permanentemente, inculca a violência nos indivíduos. O que significa dizer: a responsabilidade é de todos – exatamente aquilo que, diante de uma tragédia, ninguém quer ouvir ou admitir.

Ora, a causa da violência do “mundo real” não está na violência dos videogames. Há aqui uma completa inversão. A violência do “mundo real” evidentemente precede aquela do “mundo virtual” – isto é, a violência do “mundo real” não é o efeito, mas a causa da violência do “mundo virtual”. A violência dos videogames apenas replica a violência da sociedade em que os videogames são produzidos e consumidos. O que torna a violência “virtual” atrativa para as crianças e jovens que consomem os jogos eletrônicos, ou seja, o que torna a reprodução virtual da violência uma forma de entretenimento, é a banalização da violência previamente produzida e reproduzida na constituição mesma do indivíduo pela sua simples “existência” numa sociedade em que a violência é banal, cotidiana e profundamente arraigada.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 06/03/2013.]

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

[Crítica Social] Religião, privilégio, homossexualidade

RELIGIÃO, PRIVILÉGIO, HOMOSSEXUALIDADE

No último domingo, 03/02/2013, foi ao ar no SBT, no programa “De frente com Gabi”, uma longa entrevista com Silas Malafaia, pastor evangélico e pregador televisivo. O pretexto para a entrevista foi a recente reportagem da revista Forbes que estimou o patrimônio do entrevistado em 150 milhões de dólares – o assunto principal foi, no entanto, um outro bem diferente: homofobia.

Encaremos isto com franqueza: pouco importa, na verdade, o que Silas Malafaia pensa a respeito da homossexualidade. A sua opinião é apenas mais uma (ainda que, infelizmente, bastante comum). E uma bem conhecida, como a de quase todo padre, pastor, pregador, apóstolo (a que ponto chegamos!) ou outro qualquer homem que se esconde por detrás da bíblia: o seu único “fundamento” é uma certa crença, nada mais. Irracional, como toda crença. Algo que não se pode pretender universalizar, como toda crença. Algo que, portanto, não é e não pode ser um verdadeiro fundamento.

De todos os argumentos do pastor, parece digno de comentário apenas um (que, para o próprio pastor, não parece ser o mais importante): aquele segundo o qual a luta pelos direitos dos homossexuais seria uma luta por direitos especiais “em detrimento da coletividade”, isto é, por privilégios. É, sem dúvida, um argumento grave e preocupante, porque procura apresentar a luta dos homossexuais como uma luta contra todos mais e, ao mesmo tempo, propagandeia uma posição que permite (ou incentiva) a reprodução do preconceito como uma forma de resistência a favor da coletividade.

Ora, nada pode ser menos razoável. Este argumento pura e simplesmente inverte a situação real. Encarar a luta dos homossexuais como uma luta por privilégios implica desconsiderar a realidade brutal da discriminação e da exclusão, a realidade brutal da homofobia. Literalmente brutal, porque o preconceito é atroz, mas também porque este preconceito cotidianamente se converte em violência aberta.

Que fique claro: por razões muito específicas, não penso que o direito possa resolver essa questão. Mas não se pode supor que, nesta luta, os homossexuais exijam para si direitos a mais, em maiores proporções do que os direitos de que dispõe o “indivíduo médio”, instituindo uma desigualdade a seu favor. Exigem, na verdade, o mínimo que lhes é negado. Exigem a consideração, a dignidade, a sobrevivência que lhes são continuamente vetadas. Exigem precisamente o contrário do que diz o argumento dos “privilégios”: exigem a igualdade jurídica mais elementar e o fazem porque, como minoria, hoje, sem qualquer proteção jurídica específica, a sua situação de fato é desigual para menos em comparação com a maioria heterossexual.

Só mesmo as trevas do preconceito, do fanatismo ou do oportunismo podem cegar para uma realidade tão clara e, ao mesmo tempo, tão terrível.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 06/02/2013.]

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

[Crítica Social] Internação... compulsória?


INTERNAÇÃO... COMPULSÓRIA?

Uma ideia simples, que pode passar despercebida para muitos ou é ingênua e calorosamente aplaudida pelo grande público. Refiro-me à internação compulsória de dependentes químicos, iniciativa lançada no Rio de Janeiro e que agora chega a São Paulo. Em pouco tempo, é razoável supor, deveremos vê-la implantada em todo o Brasil.

O problema aqui não está em constatar que o dependente químico precisa de tratamento médico. Isto é óbvio: enfrentar uma questão de saúde pública como uma questão de saúde pública. O problema está em pensar ingenuamente que o poder público propõe a internação compulsória, de “boa vontade”, para o bem comum e para o bem do próprio dependente que, incapacitado pela própria dependência, não é capaz de decidir o que é melhor para si próprio. A proposta, velha conhecida, é fazer o “bem” ao próximo, ainda que à força: o mesmo argumento pelo qual foram justificadas as Cruzadas e a Inquisição, pelo qual se defende a assimilação do índio à sociedade capitalista, pelo qual os pais tentam justificar para si mesmos a injustificável violência cometida na “educação” dos filhos. As consequências, em todos esses casos, são notoriamente conhecidas.

Trata-se, em suma, de apresentar a internação compulsória como algo que, em definitivo, ela não é. Uma medida de saúde pública não pode, afinal, tornar-se eficaz à base da força pura e simplesmente. A força é o mecanismo próprio de um outro tipo, bastante diverso, de medida: aquele que encara a dependência química como questão policial, como questão a ser enfrentada por meio da repressão. Não há exemplo mais evidente disto do que o deplorável episódio da invasão policial e “desocupação” da “cracolândia”, no centro de São Paulo, em janeiro de 2012. Não pode haver resultado mais evidente: uma vez que a ação se dirige aos efeitos e não às causas, ao dependente e não à dependência, o problema é afastado, removido, disfarçado, mas nunca resolvido.

Ainda que se disfarce, ainda que se negue convictamente, o que resta ainda por detrás da internação compulsória é o mesmo higienismo de sempre. O mesmo higienismo tão característico das elites brasileiras, que se aplica de tantas maneiras e permanentemente contra o pobre, contra o negro, contra o índio, contra o homossexual e, desde que a dependência do “crack” tornou-se uma epidemia, contra o dependente que, ocupando miseravelmente as ruas, “polui” a cidade. Higienismo que exige a “assepsia” do espaço urbano, custe o que custar. Se o campo de concentração, a fornalha ou a “clínica de reabilitação” é o destino final, pouco importa – desde que o “outro” seja eliminado (ao menos do campo de visão).

No fim das contas, a internação compulsória tende a ser apenas um protótipo de prisão sem crime e sem julgamento. Prisão em que os carcereiros vestem branco. Assim como as prisões convencionais, abarrotadas enquanto a incidência da criminalidade apenas aumenta, isto tende a ser apenas mais uma “solução extrema” para coisa nenhuma.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 23/01/2013.]

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

[Crítica Social] Sobre Chávez e a grande mídia


SOBRE CHÁVEZ E A GRANDE MÍDIA

Ao contrário do que o leitor pode imaginar, não pretendo fazer aqui qualquer tipo de defesa do governo Chávez na Venezuela. Não porque o governo Chávez não mereça críticas – penso, na verdade, que merece muitas. Estou certo apenas de que estas críticas devem ser de um tipo inteiramente oposto àquele comumente veiculado.

Por ora, Chávez e a atual “crise institucional” da Venezuela interessam apenas por conta de uma outra questão. Como se sabe – por conta das notícias incessantes dos últimos dias –, é provável que Chávez, que está se submetendo a tratamento médico em Cuba, não possa participar amanhã da cerimônia de posse do mandato presidencial prevista na constituição venezuelana. Surge daí o questionamento jurídico (mas não apenas jurídico) mais elementar: o que fazer?

Há, como para todos os questionamentos jurídicos, interpretações divergentes. A cerimônia de posse pode ser considerada essencial, algo sem o que Chávez não poderia prosseguir para o seu 4º mandato como presidente da Venezuela. Ou pode ser considerada mera formalidade, algo dispensável ou que possa, ao menos, sofrer adiamento sem maiores problemas. A interpretação que irá prevalecer, como sempre, não é necessariamente aquela “mais próxima” do texto normativo – isto depende de fatores extrajurídicos complexos, que envolvem desde interesses econômicos e políticos até fatores conjunturais do momento em que o questionamento é posto.

A cobertura da grande mídia, no entanto, ignora pura e simplesmente toda essa complexidade. E o faz por uma razão deliberada e muito simples: a grande mídia já tomou a sua decisão. Todo o noticiamento da “crise institucional” venezuelana é marcado por um ponto de vista comum: Chávez não deve tomar posse. Exatamente por conta disso, a cerimônia é apresentada como essencial, porque “está na constituição” – qualquer outra possibilidade é apresentada em tom de absurdo e imediatamente identificada como contrária à ordem jurídica, como “golpe”.

Não que se espere que a mídia seja “neutra”. Tal neutralidade não existe. Mas a tomada de partido da grande mídia em relação à política venezuelana escancara um ponto de vista identificado visceralmente com as classes sociais mais elevadas. É para com estas classes sociais, parcialmente alijadas do poder na Venezuela, dominadoras dos grandes conglomerados midiáticos mundo afora, que vai a “solidariedade” dos grandes veículos de imprensa.

Basta recordar que “estar na constituição” nunca significou muito para a grande mídia brasileira, que apoiou o golpe militar de 1964 e, de lá para cá, não esteve sempre tão preocupada com a ordem jurídica. E, especificamente quanto à Venezuela, não se pode esquecer a tentativa de golpe contra Chávez em 2002 e a atuação partidária e desprezível da imprensa local na ocasião, que deliberadamente falseando notícias, como bem mostra o documentário “A revolução não será televisionada”.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/01/2013.]