quinta-feira, 26 de maio de 2011

[Crítica Social] “Marcha da Maconha” e “criminalização” da pobreza

“MARCHA DA MACONHA” E “CRIMINALIZAÇÃO” DA POBREZA

No último sábado, com vistas a reprimir a tentativa de realização de uma manifestação pública pela descriminalização do consumo de maconha em São Paulo, a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana atuaram com extrema violência. Tudo foi registrado e noticiado em todas as mídias, incluindo vídeos que demonstram cabalmente os excessos de violência contra os manifestantes indefesos.
 
Antes de tudo, um esclarecimento: não pretendo discutir aqui a razoabilidade ou não do motivo da manifestação. Minha posição pessoal ou a de quem quer que seja pouco importam: é, de qualquer maneira, completamente arbitrária a tentativa de impedir a realização de uma manifestação. Os participantes da assim chamada “Marcha da Maconha” pretendiam apenas apresentar uma exigência política – que pode ou não ser aceitável, pode ou não ser ouvida, mas precisa ter assegurada ao menos a possibilidade de ser apresentada publicamente.
 
Se, afinal, os moradores do bairro de Higienópolis podem apresentar um abaixo-assinado com pouquíssimas adesões contra a construção de uma estação de metrô que beneficiaria toda a cidade – e, além do mais, ter o seu reclamo atendido. Se mesmo as posições político-partidárias mais reacionárias e perigosas podem apresentar as suas propostas publicamente e disputar as eleições. Se, enfim, mesmo as propostas mais estapafúrdias e as manifestações mais sem sentido podem ter lugar, por que a “Marcha da Maconha” não poderia?
 
A violência da repressão policial é, portanto, completamente inaceitável. O lastimável ocorrido apenas denuncia uma visão política conservadora e pouco permeável às exigências propriamente populares que aparentemente se perpetua por detrás das corporações detentoras da força das armas. Para esta visão política, tudo é muito simples: todos os presentes na “Marcha da Maconha” são “maconheiros” e “maconheiro” é bandido, por isso merece ser tratado com pancada.
 
Por outro lado, se a grande mídia tem, desde o fim de semana, noticiado tão exaustivamente o evento, isto não significa que se trate, no Brasil, de uma exceção. A atuação da polícia brasileira está, na verdade, entre as mais violentas do mundo – ao mesmo tempo em que também está entre as menos eficientes. O que houve de excepcional no último sábado não foi o excesso: foi o fato de ter ocorrido “descuidadamente” na frente das câmeras.
 
De um modo geral, a parcela da população mais atingida pelos excessos da violência policial é exatamente aquela mais pobre. Os excessos ocorrem, via de regra, nas periferias, nas comunidades mais distantes da atenção do poder público e da mídia, portanto em geral não são vistos. A mais violenta repressão é aquela que se volta contra a própria pobreza: noutras palavras, a mais abjeta e perversa “criminalização” da pobreza. As classes médias e a grande mídia espantam-se apenas por ver o mesmo acontecendo diante dos seus olhos.


[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 25/05/2011.]

quinta-feira, 19 de maio de 2011

[Crítica Social] Sobre a discriminação social

SOBRE A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

Poucas coisas são mais incômodas do que a discriminação de classe, aquela que atinge o pobre e o excluído. Não que outras modalidades de discriminação não incomodem – há, afinal, no Brasil, quadros graves de discriminação contra negros, mulheres, homossexuais, ou seja, praticamente toda e qualquer “minoria”, de modo que não é possível fechar os olhos à situação. A discriminação social não é necessariamente pior que as outras – mas parece, a mim, mais digna de repulsa, pois reflete a estrutura exploratória e excludente de uma sociedade profundamente desigual.

Nossa sociedade não é homogênea. Não é uma somatória de partes iguais, não é funcional nem equilibrada. É uma sociedade “quebrada”, cindida em classes que se opõem. Não há, por isso, uma visão uniforme dos indivíduos sobre a própria sociedade: a possibilidade de compreender a organização social presente é limitada (embora não de modo inescapável) pela posição objetivamente ocupada pelo observador na sua estrutura. As classes dominantes, do ângulo pelo qual observam, não “vêem” a mesma sociedade que, do seu ângulo, as classes dominadas “vêem”.

Do ângulo pelo qual observam, marcado por seus próprios interesses (notadamente na manutenção da estrutura desigual que as beneficia), as classes dominantes “vêem” uma sociedade sem exploração, na qual a desigualdade é acidental ou culpa dos próprios inferiorizados. Há, a esse respeito, dois pontos, pelo menos, que penso dignos de nota.

Em primeiro lugar, a discriminação social tem como uma de suas bases um entendimento “moral”, por si só equivocado, da pobreza. As classes dominantes crêem, em geral, que o pobre é moralmente responsável pela própria pobreza: o pobre seria pobre por não se “esforçar”, “empenhar” ou “dedicar” o bastante, porque “desleixado”, “incompetente” ou “preguiçoso”. Mas a questão não é moral, é social – é estruturalmente social. A sociedade capitalista é estruturada pela exploração de uma classe sobre a outra, portanto não pode senão cindir-se entre “ricos” e “pobres”. Só há “ricos” porque há “pobres” – as classes dominantes, assim, ao encararem o pobre como culpado pela própria pobreza estão, na verdade, atribuindo ao outro uma responsabilidade própria.

Em segundo lugar, pesa, sobre a questão da discriminação social, uma atitude “esnobe” ou “elitista” bastante freqüente entre as elites brasileiras. A atitude de desejar estar socialmente acima, em posição de privilégio ou de mando. Assim, se a moralização da questão conduz à atribuição da culpa pela pobreza ao pobre, o “elitismo” é o seu complemento perverso: é a auto-atribuição das glórias e dos méritos ao vencedor. É a ridicularização do pobre – por seu linguajar, por seus hábitos, por suas vestimentas, por tudo que for possível – com vistas ao auto-enaltecimento do explorador – que seria, então, “melhor” porque é rico, fala bonito, é refinado, veste-se bem etc.

O ponto de vista das classes dominadas, por outro lado, não está limitado pelo interesse na manutenção da ordem estabelecida. O dominado, ao observar a sua sociedade, tem franqueada a possibilidade compreender a estrutura desigualadora e brutal à qual está submetido. O interesse da classe dominada é, por isso, a transformação radical desta estrutura social – para uma sociedade sem desigualdade e, portanto, sem o absurdo da discriminação contra a pobreza.


[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 18/05/2011.]
[Texto adaptado a partir daquele já publicado neste blog em maio de 2009.]

sábado, 14 de maio de 2011

[Crítica Social] União estável, família e discriminação

UNIÃO ESTÁVEL, FAMÍLIA E DISCRIMINAÇÃO

O Supremo Tribunal Federal tomou, na última sexta-feira, uma importante posição no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos dos homossexuais. Na prática, a união estável entre pessoas do mesmo sexo, o que se tem chamado de união homoafetiva, foi equiparada à unidade familiar.
 
Trata-se, sem dúvida, de um avanço. Mas de um avanço apenas relativo, não mais do que isto – quero dizer: não ainda, nem de longe, uma solução. As ações julgadas pelo STF não tinham mesmo qualquer outra possível solução razoável – por que, afinal, do ponto de vista jurídico, a união entre pessoas de sexo diferente constituiria uma família e a união entre pessoas do mesmo sexo não? –, mas as decisões do STF não são sempre exemplares pela sua razoabilidade: a decisão acerca do aborto de fetos anencéfalos é a prova cabal disto. Assim, se, para todos que pretendem ver erradicada esta modalidade hedionda de discriminação, há algo que comemorar, é porque o contexto é tão desfavorável que mesmo o óbvio parece já uma vitória.
 
O avanço, porém, não é mais significativo porque a discriminação juridicamente perpetuada que atinge os homossexuais foi apenas amenizada. Um casal homossexual pode realizar uma união estável e, a partir de agora, é provável que terá mais facilmente reconhecidos, por exemplo, os direitos de adotar e de herdar. Isto, sem dúvida, é melhor do que nada. No entanto, o casamento propriamente dito continua juridicamente reservado a casais heterossexuais.
 
Em outras palavras, um casal heterossexual pode decidir entre o casamento e a união estável, mas um casal homossexual não pode. A Constituição e o Código Civil continuam a referir-se ao casamento como “união entre homem e mulher” e, portanto, o dispositivo da própria Constituição que determina a igualdade de todos perante o direito continua limitado de maneira incompreensível e questionável. A “racionalidade” que os juristas tanto estimam e que supõem caracterizar o direito continua em xeque. E esta “irracionalidade” jurídica perpetuada, por sua vez, contribui para perpetuar, ao menos do ponto de vista simbólico, a irracionalidade da discriminação contra os homossexuais.
 
A única solução jurídica aceitável para esta questão – que, por sua vez, não é e nem pode ser a solução definitiva da discriminação – exige alterações legislativas profundas. A decisão do STF é apenas um dos primeiros ensaios, um passo não mais do que cambaleante – o melhor que se pode esperar é que, a partir daqui, providências cada vez mais efetivas sejam tomadas.


[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 10/05/2011. REVISTA TEM (Dracena-SP), junho/2011]

quinta-feira, 5 de maio de 2011

[Crítica Social] Sobre a morte de Bin Laden

SOBRE A MORTE DE BIN LADEN

A morte de Osama Bin Laden, do grupo Al Qaeda, suposto mentor dos ataques ao World Trade Center em 2001, é a grande notícia dos últimos dias. Imagens de multidões de americanos comemorando nas ruas, todos morbidamente satisfeitos com um assassínio aparentemente muito aguardado, têm povoado cada minuto disponível na TV. Depoimentos regozijantes da alta cúpula do governo dos EUA sacramentam o que dizem ser uma “vitória histórica” contra o terrorismo. A “vingança” ou a “justiça” – no fundo, tanto faz – supostamente foi, enfim, feita.

Mas seria realmente Bin Laden, como querem que acreditemos, uma espécie de demônio, encarnação do “mal”, a personificação de todo o terror? Seria Bin Laden, em pessoa, o responsável pelo fenômeno do terrorismo? Seria a morte de Bin Laden, então, a solução? A resposta a todas essas perguntas só pode ser – não.

A morte de Bin Laden certamente satisfaz interesses políticos e, sobretudo, eleitorais nos EUA, mas talvez mais atrapalhe do que ajude o “combate ao terrorismo” que tanto ocupa os Estados mais poderosos do ocidente.

Em primeiro lugar, porque Bin Laden é apenas um homem, apenas um líder, mas de nenhuma forma o único e não necessariamente o mais importante. O exército americano assassinou, na “melhor” das hipóteses, um “símbolo”, mas a grande rede de homens, armas e recursos por detrás dele continua intacta. Nesse sentido, a morte brutal de Bin Laden apenas acrescenta mais um “motivo” para o desencadeamento de atentados ou ataques de quaisquer tipos.

Em segundo lugar, porque o simplismo desta solução homicida, quero dizer, desta solução segundo a qual a morte de um homem é o quanto basta, deliberadamente apaga todos os questionamentos acerca das reais causas do terrorismo. Se o “combate ao terrorismo”, afinal, está resumido ao assassinato de um homem, nada mais importa. Mas o terrorismo continua, de um modo geral, conectado com a expansão globalizante do capital e as suas conseqüências, como, por exemplo, uma homogeneização cultural forçada que põe em risco todo um modo de vida centrado nas tradições do islamismo. Quanto a isto, ninguém se preocupa. Contra o massacre – cultural, mas não apenas cultural – dos povos do Oriente Médio, nenhum dos grandes Estados do ocidente se movimenta: vivo ou morto Bin Laden, o capital prossegue em sua marcha voraz.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 04/05/2011.]