quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

[NJ] O mito da neutralidade

O MITO DA NEUTRALIDADE

“Quando um elefante pisa no rabo de um rato e você diz que é neutro, o rato não aprecia a sua neutralidade.”
– Desmond Tutu

Quer na academia, quer na política, a neutralidade é um discurso batido, cansado, já corroído pelo tempo e pelo uso ruim e reiterado. Um discurso pouco razoável para quem, em qualquer dessas áreas, quer ser levado a sério. Mas nem todos querem ser levados a sério. Para alguns, o que importa realmente é convencer, por qualquer meio possível. É por isso que a neutralidade é um discurso ainda teimoso, ainda incômodo, no qual muitos insistem – e, o que é mais difícil de acreditar, um discurso pelo qual alguns ainda se deixam enganar.

Na academia, a neutralidade é uma das bases daquilo que se entende por método científico. Trata-se, em poucas palavras, da exigência imposta ao cientista de não tomar partido em relação ao objeto de sua investigação, para que suas opiniões, sentimentos e idiossincrasias não interfiram nos resultados. Isto como se a relação entre o sujeito que investiga e o objeto que é investigado fosse pura e invariavelmente exterior, quero dizer, como se o cientista realmente estivesse sempre a observar o objeto “de fora”.

Se, no entanto, o objeto de investigação do cientista é social, não há “de fora”. O sujeito que observa não pode colocar-se externamente ao objeto, pois estão ambos intrincados na totalidade social. O observador nunca é, afinal, um ser isolado ou auto-suficiente, mas um ser socialmente determinado, tanto quanto aquilo que observa. A sociedade, em certo sentido, observa, pelos olhos do indivíduo aparentemente autônomo, a si mesma. E se ninguém pode ser neutro consigo mesmo, tampouco a sociedade pode.

Já na política, diz-se neutro quem pretende escapar às grandes disjunções ideológicas – direita ou esquerda, conservador ou progressista, liberal ou socialista etc. É uma maneira de colocar-se “de fora” das disputas propriamente partidárias, o que, por sua vez, é uma maneira de tentar agradar a todos indistintamente. Não sendo propriamente nem aliado nem adversário de ninguém, o político neutro pensa assim conseguir atrair simpatias de todos os cantos. Daí os velhos clichês da política da neutralidade: estar acima das ideologias; apoiar o que for de interesse do povo, independentemente da orientação partidária; preocupar-se com o que é melhor para todos, sem perder tempo com rusgas políticas etc.

A neutralidade política não é, veja-se bem, a simples ausência de posição – é a deliberada posição de não ter posição. Exige, na verdade, um grande malabarismo. É possível, no cabo-de-força da política partidária, ser de extrema direita, direita, centro-direita, centro, centro-esquerda, esquerda ou extrema esquerda. Na direita, é possível ser reacionário ou conservador. No centro, é possível ser liberal ou social-democrata, um pouco mais para um lado ou para o outro. Na esquerda, há a “velha esquerda” marxista (com muitas subdivisões) e a “nova esquerda” social-reformista. Outras inúmeras opções, do anarquismo à teologia da libertação, cobrem um campo vastíssimo. Mesmo assim, há quem prefira (dizer) não ser nada disso. Há quem prefira (dizer) estar “acima”, como que tendo transcendido ao mundo espiritual da política pura. Há quem prefira (dizer) não ter lado.

Mas como é possível não estar em lado nenhum? É possível ficar “em cima do muro”, “lavar as mãos” – mas quem fica “em cima do muro” ou “lava as mãos” por acaso já não escolheu o seu lado? Quem diz não ter lado ou está apenas do seu próprio lado e é, portanto, oportunista, ou prefere manter-se indiferente às coisas como estão e, portanto, contribui com o seu silêncio para manter tudo como está. Pois não ter lado é sempre o mesmo que estar, ainda que indiretamente, do lado dos vencedores. É consentir tacitamente com o forte esmagando o fraco, com o dominador oprimindo o dominado, com o capital explorando o trabalho.

Quem, no entanto, não quer fechar os olhos para os que não tem voz, os explorados, os excluídos, os pobres e miseráveis, enfim, os derrotados, não pode dizer-se neutro. Na academia ou na política, quem se opõe ao domínio dos vencedores tem que tomar partido – e não pode senão tomar o partido da transformação social.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 07/12/2008.]