quarta-feira, 5 de março de 2008

[NJ] Carne, osso e plástico

CARNE, OSSO E PLÁSTICO

“Os traços radicalmente individuais e irredutíveis de uma pessoa são sempre duas coisas num só: o que não foi totalmente capturado pelo sistema dominante e sobrevive para sorte nossa e as marcas da mutilação que o sistema inflige em seus membros.”
– Theodor Adorno & Max Horkheimer

Ir a um shopping center, opção cada vez mais corriqueira de lazer confortável e seguro para os moradores de grandes cidades, pode ser também um exercício de sensibilidade ao horror da degradação humana engendrado pelo consumismo sem freios – horror oculto sob o encanto sedutor da moda e sob a beleza plástica da propaganda. E digo “exercício de sensibilidade” precisamente porque perceber o horror latente naquilo que é propagandeado e vendido como o que há de mais belo, agradável e necessário (no sentido de “ninguém pode mais viver sem isso”) exige, sem dúvida, a sublime perspicácia de captar a realidade para além da superfície.

Dia desses, era um domingo, tive oportunidade de me exercitar. Reparei que as lojas têm nas vitrines manequins não mais somente de plástico bege, mas agora dotados de cor, cabelo, maquiagem, expressão etc. Uma nova, ou talvez nem tão nova assim, técnica de publicidade, não há dúvida. Eram vários, de diferentes aparências, cada uma correspondente a um dos “estilos” pré-formados e postos à escolha do consumidor – o “moderninho”, o “emo”, o “surfista”, o “rebelde” (sim, pois até o “rebelde” se tornou pasteurizado, enlatado e comercializado em larga escala). Minha surpresa foi perceber que muitas vezes já tinha visto por aí cada um daqueles manequins humanizados, aquele plástico em forma de gente, andando pelas ruas, em todos os lugares, transmutado em gente de plástico.

Os manequins imitam as pessoas, ao parecerem humanizados, ou as pessoas imitam os manequins, em sacrifício de sua humanidade? Esta segunda alternativa é, hoje, assustadoramente dominante. O mercado cria padrões, modelos e ideais e os impõe a um público cada vez menos capaz de resistir, cada vez mais refém e mais indefeso. Enquanto o consumidor imagina que os bens que consome satisfazem suas necessidades e externam sua personalidade, o que se passa, na realidade, é que o mercado que oferece tais bens é que está criando as necessidades e, em última instância, também a personalidade que o consumidor julga sua, própria e autêntica. Noutras palavras, o consumidor imagina preencher seu lugar no mundo através dos bens oferecidos pelo mercado, mas é o mercado que, previamente, cria o lugar no mundo que o consumidor deve ocupar.

O consumo – incluído aqui o ato de consumir tanto quanto a ostentação do consumo, a realização pelo consumo, os paraísos do consumo, enfim, a vida orientada pelo “ter” – é um mutilador. Quantos jovens não têm como modelo de vida a imagem glamurizada do ícone do esporte, da moda ou da mídia que a publicidade torna exemplar? Quantos não acabam cegos pelo desejo pela quinquilharia mais recente, que daqui a poucos dias estará totalmente ultrapassada ou fora de moda e será substituída por outra? Quantas adolescentes não aspiram – e conseguem – tornar-se exatamente como os manequins nas vitrines dos shopping centers? Ao conformarem suas aparências às dos manequins, conformam, sem saber, muito mais: como os manequins, tornam-se não mais do que pedaços de matéria inerte revestidos com aquilo que, num dado instante, é o que há de mais precioso no mundo do fetiche da mercadoria.

A destruição da humanidade pela imposição do mercado, a realização do indivíduo tornada mercadoria, a diversidade individual reduzida à diversidade de produtos na prateleira, o consumismo como derrota do autêntico – do horror deve brotar a resistência. Tal resistência, no entanto, não se limita àquilo que vem “de fora”, mas freqüentemente diz respeito também àquilo que está “dentro” de cada um. Viver no mundo contemporâneo exige, para aqueles que pretendem manter a sanidade e boa e velha existência em “carne e osso”, uma vigilância sem descanso contra a “plastificação”.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 02/03/2008]