sexta-feira, 20 de abril de 2007

[NJ] Desiguais, consumidores e juristas

DESIGUAIS, CONSUMIDORES E JURISTAS

“Se é claro que a produção oferece o objeto do consumo em sua forma exterior, não é menos claro que o consumo põe idealmente o objeto da produção, como imagem interior, como necessidade, como impulso e como fim.”
– Karl Marx

Juristas costumam ser pessoas pouco simpáticas à inovação; ainda assim, de tempos em tempos se sentem sufocados num mar de tecnicismos antiquados e se vêem obrigados a deixar que “novos ares” adentrem seus domínios. Como conseqüência, logo após cada inovação quase sempre se segue uma onda de superestimação do “novo” – até que, de novo, o “novo” seja transformado em tecnicismo. É o caso do direito do consumidor.

Esse ramo talvez já nem seja a “vedete” do momento, mas o motivo da empolgação ainda bastante viva dos juristas em geral a seu respeito (embora alguns civilistas mais tradicionais continuem pouco receptivos) é a pretensa “ruptura”, nele realizada, da igualdade formal absoluta entre consumidor e fornecedor. “Ruptura”, nesse caso, significa o seguinte: o direito reconhece que, numa relação jurídica específica, há uma desigualdade pré-avaliada entre uma parte “mais poderosa” e outra “menos poderosa”, oferecendo certa proteção a esta última. Em outras palavras, nada além do que o direito do trabalho, décadas antes, já consagrara quanto à relação entre capitalista e trabalhador.

Mas o que não se costuma levar em consideração é o que há por trás desse reconhecimento de desigualdades e até onde esse reconhecimento se estende. Certo é que esse “ar fresco” não surgiu pura e simplesmente da “cabeça quente” de ninguém. Suas raízes estão fincadas muito mais fundo.

A realidade na qual surge o direito do consumidor é a da exclusão permanente do trabalho do processo produtivo. O problema já não é, como na idade de ouro do direito do trabalho, garantir que o trabalhador não deixe de levar sua força de trabalho até a máquina: é a máquina que substituiu, e substitui cada vez mais, o trabalhador. Excluído da produção, o trabalhador está também excluído da circulação: sem salário, como consumir? E o capitalismo engendra assim, por si mesmo, uma nova crise: sem consumidores, de que servem as máquinas que sozinhas produzem mais, melhor e mais barato?

Se já não é possível produzir para um mercado universal – porque há um contingente crescente de excluídos do mercado – a alternativa para manter o fluxo econômico e as taxas de lucro é levar os que podem consumir a consumir cada vez mais. Não por acaso tanto se fala que vivemos numa era de consumismo desmedido, de consumo insaciável de coisas de utilidade efêmera: disso depende a sobrevida do capitalismo.

O direito do consumidor aparece aqui não como dádiva ou progresso, mas como necessidade. Se alguma desigualdade é reconhecida entre fornecedor e consumidor, não é porque não deve existir desigualdade de poder econômico: é porque o excesso de poder não deve obstruir o consumo. Se alguma proteção é oferecida ao consumidor, não é porque ele é o “menos poderoso”: é porque ele deve consumir mais. Os que estão fora do universo do consumo estão também fora dessa – e, em verdade, de qualquer outra – proteção.

O limite da “ruptura” com a igualdade jurídica formal é que as desigualdades tornadas visíveis mantenham invisíveis as desigualdades essenciais. Reconhecer que o consumidor é a “parte fraca” na relação de consumo: isso é possível – reconhecer que alguém pode ser a “parte fraca” em todas as suas relações sociais: isso é possível? Se pensarmos que os ramos em que a tão exaltada “ruptura” é consagrada são o direito do trabalho e o direito do consumidor – portanto produção e consumo, duas esferas essenciais ao capitalismo – fica claro que esse superficial reconhecimento de desigualdades apenas faz com que as desigualdades profundas e essenciais da sociedade capitalista funcionem melhor...

[publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 06/04/2007]

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