quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

[NJ] Memórias construídas

MEMÓRIAS CONSTRUÍDAS

Num mundo em que o capital tudo domina, em que a publicidade tudo torna vendável, em que o império das coisas se estende cada vez mais, não é de espantar que também a memória se torne mercadoria. Empresas de médio e grande porte oferecem, por meio de organização e planejamento rigorosos, memórias no exato formato e preciso conteúdo desejados entre os consumidores: constroem os fatos tais como os compradores anseiam tê-los na lembrança, arquitetam futuras memórias. E assim cada um dos “ritos de passagem” ou acontecimentos sociais estabelecidos pela moda ou pela tradição serve já não apenas como “rito de passagem” ou acontecimento social, mas como fundo para uma lembrança a ser fabricada e vendida.

O mercado das festas de 15 anos, casamentos, aniversários de casamento, formaturas etc. é altamente disputado – e não por acaso, já que uma festa de formatura, por exemplo, pode envolver somas na ordem das centenas de milhares de reais. Os aniversariantes, noivos ou formandos recebem em troca a tranqüilidade de contar com a organização profissional para um evento que todos desejam recordar como perfeito: o jantar perfeito, a decoração perfeita, a música perfeita, a cerimônia perfeita e até o porre perfeito. Tudo é pensado para corresponder a tais expectativas, do mesmo modo como fazem os fabricantes de sabão em pó ou de comida congelada para adequar seus produtos às preferências do público.

A racionalização característica do capitalismo domina o processo de produção da memória e torna cada detalhe mensurável, calculável, projetável. Como conseqüência, todos os eventos assumem um certo caráter padronizado e insosso, um certo aspecto de fórmula pronta e incisivamente repetida. A entrada sempre triunfal da debutante. O tom sempre romântico barato dos votos de fidelidade eterna dos noivos. O choro copioso dos pais e o rigor sempre fajuto dos smokings alugados e mal costurados dos formandos. O Danúbio sempre Azul das valsas. A marcha nupcial marcando o passo sempre lentíssimo da noiva que quer dar tempo para que os outros a admirem. Os festejos e a bebedeira dos novos bacharéis sempre embalados por “We are the champions”.

Nada há que não seja minuciosamente desenhado para “parecer com” ou para “ser lembrado como tal”, ainda que geralmente não o seja. Tudo – cada passo da debutante ou da noiva, cada etapa do ritual de formatura – é planejado para o registro impecável pelas lentes das máquinas fotográficas e das filmadoras. Há pausas pré-determinadas para fotos, sorrisos pré-orientados para a filmagem – virar para um lado, depois para o outro, uma pose com o diploma, uma pausa para a foto na postura de dança etc. Para quem assiste a tudo de perto e não precisa das fotos para saber do ocorrido, isso chega a soar ridículo. Mas pouco importam os presentes – no salão lotado, eles podem mal enxergar a valsa da debutante, mal apreciar os detalhes do vestido da noiva ou perder a chamada do amigo formando no momento da entrega do canudo (geralmente vazio). A construção da memória exige algo mais “confiável” do que a mera memória dos presentes.

Certamente devo soar exagerado para muitos. De fato, a simples profissionalização da organização de eventos não seria grande problema se não ilustrasse o processo geral de embrutecimento dos indivíduos desencadeado pelas forças coisificadoras da sociedade capitalista. Ao invés da espontaneidade, da experiência estritamente pessoal e livre da qual deveria se originar uma memória parcial e falha, mas rica e única, a memória construída se apresenta como algo dado de antemão, artificial e uniforme. Ao invés de algo elaborado a partir de “dentro”, pelo próprio indivíduo, algo dado de “fora” e simplesmente recebido – o que existe “fora” é o mercado, que assim logra ser posto para “dentro” sem resistência.

A faculdade de vivenciar o momento e, com base na própria experiência e na própria sensibilidade, transformá-lo em memória é mutilada no exato instante que a memória é feita mercadoria e como tal, isto é, como coisa, incorporada ao seu comprador. O comprador não se sente lesado – ele comprou sua memória e, portanto, ela lhe pertence, tanto quanto lhe pertenceriam suas memórias espontâneas. O que ele não percebe é que, além de sua propriedade, ele mesmo foi tornado coisa. O capital atinge discretamente o apogeu de sua eficiência: a fabricação da memória como mercadoria é, na realidade, também a fabricação do indivíduo.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 06/01/2008]