quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

[Crítica Social] Sobre o comunismo de Niemeyer


SOBRE O COMUNISMO DE NIEMEYER

O comunismo de Oscar Niemeyer nunca foi o melhor comunismo. Dizer-se comunista ao longo de toda a vida, diante dos meios de comunicação, inclusive em períodos políticos de repressão, é, sem dúvida, um ato de coragem. Mas é impossível não reconhecer que, muito distante do necessário radicalismo, marcado por desvios idealistas e compromissos com a sociedade presente, o comunismo de Niemeyer não foi mais do que uma posição política muito diluída.

Por isso, o grande legado de Niemeyer, presumo, é mesmo a sua arquitetura – embora não esteja ao meu alcance opinar especificamente a respeito –, não os seus ideais políticos. Isto, aliás, a grande mídia, no esforço de glorificar o “gênio” Niemeyer (a morte parece ter esta consequência necessária entre as personalidades), tem procurado destacar. Da pior maneira, é claro.

Há, para os meios de comunicação, duas opções. A primeira delas é destacar a “genialidade” da arquitetura de Niemeyer e, ao mesmo tempo, desprezar o seu comunismo ou tratá-lo como uma espécie de “anedota”. Esta foi, por exemplo, a escolha da Rede Globo: em meio a toda a adulação da cobertura de seus telejornais, até mostraram, num ato de “tolerância” para com as idiossincrasias de um velho, o caixão coberto pela bandeira vermelha com a foice e o martelo.

A outra opção é a que faz questão de antepor uma ressalva explícita: “apesar do comunismo”. A morte, no fim das contas, amplifica todas as virtudes e apaga quase todos os “vícios”, mas um “vício” tão grave (do ponto de vista característico da mais odiosa posição de classe burguesa) como ser comunista não pode ser deixado de lado tão facilmente.

Exemplo contundente desta postura pode ser encontrado num texto publicado na Folha de São Paulo na última sexta-feira (“Ideologia de Niemeyer foi mero detalhe”, Bárbara Gancia, p. C-2). Nele, a colunista lamenta que Niemeyer não tenha “constatado” que “a alma humana, por questões meramente evolutivas, é movida a competitividade e a busca do individualismo”. E conclui o seu argumento anticomunista com a apoteótica tese: “o que conta agora são a vigilância constante pela regulamentação do sistema econômico e a viabilização legal da sustentabilidade”.

Impressiona a capacidade de condensar tantos equívocos em tão poucas palavras. Por trás desses argumentos há: (1) a defesa de um tosco evolucionismo que naturaliza, talvez no desespero de justificar o injustificável, condições típicas de um tempo histórico muito determinado; (2) o ingênuo ou cínico entendimento de que a dinâmica do capital pode ser “domada”; (3) a precaríssima proposta de que isso possa ser feito por meio da boa vontade; (4) a pouco plausível defesa das formas jurídicas e políticas como meios de controle externo e neutro da estrutura econômica.

O comunismo de Niemeyer, mesmo não sendo o melhor, está seguramente muito acima deste tipo de crítica. Mesmo moderada e ingênua, a sua posição política é ainda muito mais precisa, mais rigorosa e mais solidamente fundamentada. Afinal, entre o comunismo moderado ou a absoluta falta de razão, não é nada difícil ficar com a primeira alternativa.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 12/12/2012.]

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

[Crítica Social] Fantasia e crítica social


FANTASIA E CRÍTICA SOCIAL

Faltam apenas alguns dias para a estreia da primeira parte da adaptação para o cinema de “O Hobbit”, de J.R.R. Tolkien. O filme, sem dúvida, aproveita o estrondoso sucesso anterior da série “O Senhor dos Anéis” (lançada entre 2001 e 2003) e muito provavelmente atrairá milhões para as salas de cinema mundo afora. Assim, de repente, hobbits, anões e elfos da Terra-Média voltam a ocupar o imaginário do público e a fantasia, como gênero narrativo, ocupa o centro das atenções.

Tolkien é, de fato, um autor sem o qual não se pode compreender este gênero. O universo de lugares, raças e lendas, com características e história próprias e tão detalhadas, desenvolvido ao longo de “O Hobbit”, “O Senhor dos Anéis” e, sobretudo, “O Silmarillion” é o modelo de toda a fantasia produzida desde então. E este modelo revela, com uma clareza que talvez não possa ser encontrada em qualquer outra obra do gênero, o “apelo” de toda fantasia junto ao seu público.

O que há de “fantástico” aqui é precisamente a completa irrealidade de toda a narrativa, construída num universo impossível, com personagens impossíveis. Mas ainda “o sonho mais fantástico repousa sobre a realidade”.* O aspecto “positivo”, por assim dizer, deste “fantástico” é o permanente apontar para trás, a apologia do ontem. Em termos políticos, isto surge como apologia do regresso. Daí o caráter acentuadamente medievalista da fantasia: a glorificação das “virtudes” da nobreza (coragem, honra etc.), que também implica a glorificação de uma sociedade reconhecidamente desigual, na qual o domínio direto e a guerra desempenham papéis fundamentais.

Na obra de Tolkien, esta apologia do ontem, muito além do óbvio medievalismo, “organiza” todo o desenvolvimento histórico: o presente aparece sempre como degeneração do passado. O ontem é sempre melhor do que o hoje – e isto permanece, não importa o quanto se recue na linha do tempo. A ruína dos homens da Terra-Média é determinada pelo distanciamento quanto às tradições e glórias do passado. A solução (precária) que conclui a narrativa de “O Senhor dos Anéis” só pode ser, por isso mesmo, o retorno do rei (isto é, a restauração da monarquia pelo herdeiro de sangue) ao trono de Gondor (o último dos grandes reinos do passado da Terra-Média).

Há, por outro lado, um aspecto “negativo” da fantasia. Em sua maior parte inconsciente, esta negatividade se dirige contra a sociedade presente. É o sentimento de não-conformidade, de não-pertencimento ou de não-aceitação do presente. Neste aspecto somente, um conservador como Tolkien se aproxima, por exemplo, do comunismo. Esta negatividade é comum à fantasia e à crítica social mais radical, embora “apontem” para direções opostas – enquanto uma propõe a “solução” para o presente no retorno ao passado, a outra se projeta para a superação do presente no futuro.

A fantasia apresenta, assim, uma paradoxal relação com a crítica social. É o seu oposto, porque fornece, ao mesmo tempo, o “conforto” do escapismo e uma proposta política regressista. Mas é também o seu par, porque se “alimenta” da mesma matéria-prima e porque reitera o mesmo clamor: impossível não é o delírio do “ontem” ou a alternatividade do “amanhã” – impossível mesmo é o hoje.

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* A expressão, embora construída com outro sentido, é de Evgeni Pachukanis. Ver: A teoria geral do direito e o marxismo, Rio de Janeiro, Renovar, 1989, p. 124. Ou: www.marxists.org/portugues/pashukanis/1924/teoria/cap05.htm.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 05/12/2012.]

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

[Crítica Social] Redenção pelo adjetivo


REDENÇÃO PELO ADJETIVO

Carência de radicalidade, recusa em avançar até as últimas consequências, temor da ruptura ou, em última instância, um compromisso não inteiramente superado com a sociedade presente conduzem, não raro, o pensamento crítico – em qualquer nível – à estranhíssima tentativa de redenção pelo adjetivo. Incapaz de atingir o cerne do objeto, o substantivo propriamente, a crítica procura “salvá-lo” através de um adjetivo qualquer: “concreto”, “material”, “real”, “social” etc.

Assim ocorre com frequência, por exemplo, na crítica das formas políticas e jurídicas do mundo burguês, peças-chave da própria ideologia burguesa: democracia, igualdade, liberdade, humanismo. Não há, em nenhum desses casos, nada a “salvar” – a crítica social radical, portanto, não deve propor novas modalidades de democracia, igualdade, liberdade ou humanismo, mas a sua superação, isto é, a sua extinção. Mas há quem suponha que este “salvamento” é lícito e possível pela simples anexação de um adjetivo – bastaria falar, então, em “democracia real”, “igualdade material”, “liberdade concreta”, “humanismo social” etc. (As combinações entre substantivos e adjetivos podem aqui, na verdade, variar quase aleatoriamente.)

Uma “democracia real”, no entanto, em nada difere essencialmente da democracia tal como se conhece hoje – que poderia artificiosamente ser dita, em oposição a “real”, democracia formal. Fundada na forma sujeito, a democracia reproduz no nível político o movimento típico da circulação de mercadorias e da produção capitalista. Não há, na democracia, nenhuma “realidade” além disto, não há adjetivo que possa redimi-la da condição de forma política típica do capitalismo.

Uma “igualdade material” e uma “liberdade concreta”, do mesmo modo, estão tão fundadas na universalização da condição de sujeito de direito – que é, por sua vez, efeito do movimento mais íntimo da produção capitalista – quanto uma igualdade e uma liberdade formais ou abstratas. A defesa dos atributos jurídicos do homem, quaisquer que sejam os seus adjetivos, não pode ser senão a defesa, mais ou menos velada por palavras vazias, da produção capitalista.

O mesmo se aplica a um suposto “humanismo social” (ou “real” ou “concreto”, tanto faz). O eterno retorno a uma “essência” humana, com os seus atributos inalienáveis e supremos, é uma das bases do pensamento burguês. É, no fim das contas, indiferente encontrar esta “essência” numa razão e numa liberdade transcendentes ou na vida em sociedade ou na atividade do homem “concreto” que trabalha e produz. O substantivo mantém os seus compromissos de classe ainda quando o adjetivo procura, ingênua ou cinicamente, afirmar o contrário.

A consequência última da redenção pelo adjetivo é, em qualquer situação, esta mesma: o reformismo, a bandeira das mudanças parciais e progressivas – que, na verdade, mantém o essencial intocado. Mas a proposta da crítica social deve ser outra: não se trata de dar novas roupagens para velhas formas, mas de romper com o velho (isto é, o atual) para instituir algo inteiramente novo.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 21/11/2012.]

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

[Crítica Social] Mais do que indignação


MAIS DO QUE INDIGNAÇÃO

Parece haver, na estratégia de operação da grande mídia, um lugar permanente para a matéria causadora de indignação da vez. A cada momento um assunto diferente ocupa este espaço, mas tudo que se espera é a mesma reação, o mesmo “isto é um absurdo!” do leitor ou do espectador diante da notícia com a qual se depara e com seus desdobramentos.

Hoje, este lugar parece ser ocupado pela onda de violência que atinge a cidade de São Paulo, com um número crescente e alarmante de homicídios sendo cometidos todos os dias. Mais ou menos ao mesmo tempo, apareceu como grande causadora de indignação a notícia de uma carta redigida por uma comunidade Guarani-Caiová do Mato Grosso do Sul contra uma decisão da Justiça Federal que ordena a sua retirada à força da área que ocupam. Poucas semanas atrás, ocupou o posto de notícia indignante o leilão virtual da “virgindade” de uma jovem de Santa Catarina.

Este último caso é insignificante: a indignação do público deveria ser voltada para a desfaçatez da grande mídia em apelar a um moralismo tão tosco para vender uma notícia descartável. Os outros dois casos, por outro lado, são autenticamente causadores de indignação: a violência urbana e o massacre dos povos indígenas brasileiros são assuntos graves e urgentes, preocupações reais que deveriam ocupar a atenção do público permanentemente e não apenas quando expostos no noticiário. Para a grande mídia, no entanto, a dimensão real do problema é secundária: só importa que o assunto sirva para o mesmo tratamento sensacionalista de sempre.

Que o público seja ainda capaz de indignar-se é bom sinal. Esta indignação é, contudo, desviada pelo sensacionalismo midiático na direção errada. A indignação instantânea com a notícia do momento é também efêmera e isolada – é indignação com “A” que acabou de ser denunciado pelo jornal, mas logo depois com “B” que apareceu na TV e dias depois com “C”, “D” etc. O público é assim impedido de tomar ciência de que a causa dos acontecimentos indignantes que lhe são expostos é a mesma – e que, portanto, não faz sentido voltar-se para os efeitos, um por vez, como se estivessem desconexos. É contra a própria causa que deve voltar-se a indignação.

Para ficar nos três exemplos levantados: a causa última de todos é a própria estrutura econômica da sociedade em que vivemos. É a desigualdade essencial à produção capitalista que alimenta a violência urbana, exclusão social que explode em violência sobretudo nas periferias das grandes cidades. É a economia capitalista que inviabiliza a preservação das comunidades indígenas – porque o indígena não é vendedor de força de trabalho para a exploração do capital e não é consumidor, portanto não tem lugar no mundo capitalista, isto é, não tem lugar no mundo. E é a redução de tudo à forma de mercadoria, inclusive aquilo que não é produto do trabalho humano, que explica algo como um leilão de sexo – como também a prostituição impulsionada pela miséria, o que é muitíssimo mais preocupante do que a pequena aventura de uma jovem de classe média.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 07/11/2012.]

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

[Crítica Social] Nem tribunal


NEM TRIBUNAL

Nem deus, nem césar, nem tribunal”, diz a canção dos trabalhadores desde o séc. XIX. Quanto a deuses e césares, a crítica da sociedade presente, ao menos em suas expressões mais radicais, parece ter assimilado o recado (ainda que com vacilações eventuais). Não há, de fato, o que esperar da providência ou fé, como não há o que esperar de governantes, líderes ou “heróis”: nenhuma transformação social autêntica pode provir daí e toda aposta nestes dois elementos constitui uma fuga daquele que deve ser o verdadeiro campo da luta política. Quanto aos tribunais, por outro lado, resta ainda uma estranha “confiança”.

Esta “confiança” se divide em outras duas, que funcionam como seus pontos de apoio: uma “confiança” no direito e uma “confiança” no juiz.

A “confiança” no direito tem por pressuposto uma concepção segundo a qual a luta social pode realizar-se como luta jurídica. Noutras palavras, uma concepção acerca do direito que propõe ou, ao menos, deixa margem para um papel ativo, determinante, positivo a ser desempenhado por este na transição para uma nova forma de sociedade. Portanto, uma concepção que desconsidera o caráter histórico determinado, essencialmente capitalista, das formas jurídicas. Ao fazê-lo, não toma em conta que a reprodução das formas jurídicas, ainda que “melhoradas” ou “socializadas”, não pode ser senão a reprodução da sociedade capitalista – e, em última análise, desloca a crítica daquilo que é o essencial: a luta contra a sociedade presente não pode ser a luta no direito ou por direitos, mas uma luta contra o direito.

A “confiança” no juiz (ou, de um modo geral, no aplicador do direito), por sua vez, é baseada na aposta numa interpretação e aplicação alternativas do direito, interpretação e aplicação comprometidas com questões sociais e voltadas para algo além da simples “manutenção” do existente. Esta aposta recai inteiramente sobre os ombros do aplicador do direito, apela ao seu bom senso, à sua sensibilidade ou ao seu alinhamento político na esperança de que isto abra-lhe os olhos para o “concreto” das mazelas sociais em detrimento do “abstrato” da letra da lei e da técnica jurídica. O seu fundamento é, portanto, inteiramente moral – o seu apelo se dirige, no fim das contas, à boa vontade individual – e, assim, também inteiramente inadequado, desde o princípio, à luta social.

Não, não há o que esperar do tribunal. Toda aposta numa transformação social através da aplicação do direito – na forma de “ativismo judiciário”, “direito alternativo” ou qualquer outra do gênero – toma como ponto de partida algo que, desde logo, invalida a possibilidade mesma que qualquer transformação mais profunda: a recuperação da forma jurídica. E da forma jurídica (ou pela forma jurídica) só pode provir mais do mesmo – do mesmo modo de produção capitalista.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 24/10/2012.]

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

[Crítica Social] Democracia, liberdade, igualdade


DEMOCRACIA, LIBERDADE, IGUALDADE

As “virtudes” da democracia costumam ser exaltadas sob o argumento de que esta forma de governo é realizadora, no mais alto grau, da liberdade e da igualdade do indivíduo. Este argumento é verdadeiro, mas cabe ainda uma pergunta: isto constitui uma “virtude”?
Na eleição, momento apoteótico da democracia, o indivíduo realiza, de fato, na condição de cidadão, a sua liberdade e a sua igualdade. Cada um decide o seu voto livremente, faz a escolha livre entre as opções dadas. E cada voto, uma vez depositado, tem o mesmo peso, é exatamente igual a todos os demais votos depositados. O resultado é decidido pela simples somatória, escolha livre de uma maioria composta por iguais.

Ora, este exercício democrático da cidadania se realiza sob as mesmas bases da liberdade e da igualdade jurídicas. O centro de gravidade é, em ambos os casos, o indivíduo “socialmente isolado” portador de vontade autônoma, abstratamente igualado a todos os demais indivíduos: sujeito de direito por um lado, cidadão por outro. E isto significa dizer: o centro de gravidade é, em ambos os casos, a subjetividade que constitui o “outro lado” da mercadoria – a subjetividade que faz a sua vontade habitar a coisa inanimada, que constitui o lado voluntário da troca de mercadorias e que se coloca como mediação necessária da relação de produção capitalista.

O fundamento último desta liberdade é, assim, a livre disposição da propriedade – ainda que esta se resuma à propriedade da própria força de trabalho, colocada à disposição do capital, ou seja, livremente submetida à exploração. E o fundamento último desta igualdade é a capacidade de ser proprietário – ainda que o indivíduo em questão não seja proprietário de nada e, assim, seja constrangido a sobreviver da venda da “propriedade” de si mesmo.

Noutras palavras, esta liberdade e esta igualdade são as categorias engendradas pela produção capitalista que, na sua essência, só pode mover-se através da exploração do trabalho e da reprodução de uma profunda desigualdade. São a liberdade e a igualdade que se resolvem na redução voluntária do homem à condição de mercadoria e na equivalência “em direitos e deveres” entre classes sociais que se opõem no processo de produção como exploradora e explorada.

Como forma de governo realizadora da liberdade e da igualdade, a democracia não faz, então, mais do que realizar as categorias típicas da exploração do trabalho pelo capital. Trata-se de uma forma de governo plenamente fundada na forma sujeito de direito e movida pela ideologia jurídica. Trata-se, por isso mesmo, de uma forma de governo cujo vínculo histórico e social concreto é evidente – e este vínculo é, ao mesmo tempo, o seu limite: a sociedade capitalista. Qualquer aposta na democracia como “valor universal” é, portanto, uma falácia. Qualquer aposta nas “virtudes” da democracia é, em última instância, um engodo: a sua única “virtude” é a reprodução do presente e de tudo que há nele de menos “virtuoso”.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 10/10/2012.]

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

[Crítica Social] Deus, diabo, eleições


DEUS, DIABO, ELEIÇÕES

O candidato da igreja, ungido por deus. O padre/pregador/bispo/missionário/apóstolo – quantos títulos, afinal, para o mesmo cargo? – que aparece na propaganda eleitoral para dizer: “este é o meu candidato” ou, o que dá no mesmo, “este é o candidato da minha igreja”. O pastor diz e o rebanho que o siga: porque o representante de deus na terra assim prefere, então deus mesmo prefere que fulano seja eleito.

Há, em todas as cidades, pelo menos um candidato a vereador que “representa” uma igreja. Há, em muitas, um ou mais candidatos a prefeito com a mesma “proposta”. E assim a “pequena” política eleitoral municipal pode, de uma hora para outra, alavancar uma grande briga religiosa: a disputa pela prefeitura de São Paulo, por exemplo, tem suscitado nos últimos dias um conflito aberto entre a igreja católica e algumas igrejas evangélicas.

Esta situação demonstra com muita clareza a dimensão atual da influência e do poder (mundano) de algumas religiões, mas é também um indício sério da fragilidade do caráter laico do Estado. Quando eleições e religião se misturam, muitas coisas podem ser esperadas, muitas mesmo e nenhuma delas desejável – mas certamente não se pode esperar o mínimo que qualquer eleição deveria suscitar: política. Não há nenhuma proposta propriamente política que acompanhe qualquer dos “candidatos da fé”. Todos apelam à confiança dos “irmãos” de fé, são carregados pelo apoio pessoal do(s) sacerdote(s), clamam uma suposta missão confiada por deus: nenhum deles é capaz de apresentar algum plano político que se sustente, que se possa levar a sério.

A única “propaganda” que um “candidato da fé” pode fazer por si mesmo, sem o sacerdote ao seu lado, é a de usar o poder público para ajudar a edificar os princípios – seja lá quais forem – de sua igreja ou, se for um pouco mais ousado, para ajudar a levar a cabo os desígnios de seu deus. Mas por que exatamente um ser metafísico dotado da propriedade invejável da onipotência precisaria do poder público, da máquina partidária e do voto popular para realizar os seus desígnios? Por que um deus escolheria, entre todos os homens, um para ser o “seu candidato”? E como explicar que este “escolhido”, mesmo com a unção divina, perca as eleições caso não tenha votos suficientes?

Ora, a única política aqui é um projeto de poder levado adiante em benefício de um grupo ou outro por detrás de alguma religião. Nada que se diferencie fundamentalmente da infeliz realidade da política partidária laica brasileira, nada que se diferencie fundamentalmente da mesquinhez das disputas entre os pequenos grupos políticos de sempre pelo controle de cargos e recursos do poder público: isto tudo muito mais próximo, é bem verdade, do que o diabo gostaria...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 19/09/2012.]

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

[Crítica Social] Conciliação e individualização da política


CONCILIAÇÃO E INDIVIDUALIZAÇÃO DA POLÍTICA

A campanha do PMDB à prefeitura de São Paulo tem se destacado por apostar todas as suas fichas num argumento do mesmo tipo: a conciliação. O candidato Gabriel Chalita é apresentado na propaganda eleitoral como aquele capaz de suspender a disputa partidária entre o PT do governo federal e o PSDB do governo estadual – o que se desdobra em várias frentes, desde uma suposta oposição entre investimento em corredores de ônibus e investimento em metrô até uma oposição muito mais significativa entre um “governo para os pobres” e um “governo para os ricos”.

Há aqui, é evidente, um ideal de “conciliação de classes” que, do ponto de vista de uma crítica social consequente e radical, não passa de falácia: toda “conciliação” implica manutenção da ordem estabelecida e, assim, manutenção do domínio de uma mesma classe. O argumento conciliador se revela mero revestimento ideológico (ou de marketing eleitoral) para uma posição conservadora. Sem mais.

Por outro lado, o argumento da campanha do PMDB tem por pano de fundo uma forma escancarada de individualização da política. A possibilidade de conciliação é inteiramente vinculada às competências e talentos atribuídos ao candidato. Toda a “solução” proposta é ancorada nos atributos de um único indivíduo. Tudo depende das qualidades que este "escolhido" possui e os outros – todos os outros – não.

Não se trata, não há qualquer dúvida, de um argumento eleitoralmente fracassado. O candidato do PMDB tem, segundo as últimas pesquisas, cerca de 7% das intenções de voto – e isto não é insignificante. A conciliação é atraente, “fácil”, e talvez seja mais simples confiar num indivíduo do que numa proposta política. Mas a individualização da política introduz um risco a ser levado a sério: a redução da política à dimensão meramente individual é, ao mesmo tempo, a completa extinção da política.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 12/09/2012.]

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

[Crítica Social] “Corações Sujos” e a moralização da história


“CORAÇÕES SUJOS” E A MORALIZAÇÃO DA HISTÓRIA

Estreou nos cinemas há pouco mais de uma semana “Corações Sujos”, filme dirigido por Vicente Amorim e baseado no livro homônimo de Fernando Morais de 2000. Como enredo, o momento da história dos imigrantes japoneses no Brasil: ao fim da Segunda Guerra Mundial, segregada, discriminada e privada de acesso à informação, parte substancial dos imigrantes japoneses recusou-se a aceitar a derrota do Japão para os Aliados. Inspirada, em parte, por ideais ultranacionalistas, a ala mais radical destes “vitoristas” agrupou-se em torno da organização “Shindo Renmei” e entrou em conflito aberto com a outra parte da colônia japonesa, taxada de “derrotista”. O palco principal deste conflito foi o interior de São Paulo, sobretudo a região de Bastos, e o seu resultado foi trágico: ao menos 23 assassinatos e centenas de feridos.

No filme, porém, este evento histórico aparece apenas marginalmente, como “pano de fundo”. Não se trata, é bem verdade, de um documentário, portanto não se pode esperar que a fidelidade quanto à história seja plena, nem que a história real ocupe o lugar central. Mas há, de todo modo, exagero: a história da “Shindo Renmei” é diminuída até o ínfimo do drama pessoal de poucos personagens, relegada a uma dimensão meramente moralizante e descontextualizada.

Não há, por exemplo, qualquer preocupação mais séria em mostrar a situação de vida dos imigrantes japoneses em meados da década de 1940. Não há qualquer pista das condições nas quais os japoneses deixaram o país de origem, dos motivos pelos quais o fizeram, das expectativas e frustrações que carregavam consigo, sobretudo da situação econômica que determinou este movimento. O surgimento da “Shindo Renmei” aparece, de início, creditado unicamente a um ufanismo gratuito e o desenvolvimento posterior da narrativa apenas piora este quadro: a escalada da violência acaba reduzida à má consciência de um único personagem, que, por mau-caratismo e/ou loucura que simplesmente permanecem sem explicação, manipula os compatriotas em favor de seus próprios interesses. Encarnação de todo o mal, a morte deste único personagem – deste único homem – é identificada imediata e precariamente com a extinção de toda a “Shindo Renmei” – que congregou milhares de japoneses – e de toda a violência – que perdurou por anos.

É, sem dúvida, interessante que este “trauma”, este fantasma que assombra há quase 70 anos a colônia japonesa no Brasil, seja dado ao conhecimento do grande público. Mas é, por outro lado, um problema permitir que um acontecimento histórico desta magnitude seja apresentado de forma parcial. Não foram os “corações sujos” de homens “maus” que causaram este acontecimento e a dissolução de relações amorosas não foi o seu impacto mais relevante. A história – da “Shindo Renmei”, da imigração japonesa ou do que quer que seja – não é feita pela boa ou má vontade, pela consciência pura e simples ou por escolhas meramente individuais. O “equívoco” do filme – se é que há algum – é, nesse sentido, o equívoco mais do que corrente de moralizar a história.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 29/08/2012.]

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

[Crítica Social] Por que temer as cotas em universidades públicas?


POR QUE TEMER AS COTAS EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS?

Há alguns dias foi aprovado no Congresso um projeto de lei que institui a reserva de 50% das vagas nas universidades federais para estudantes provenientes de escolas públicas. Censuras de todos os tipos e baseadas em todos os argumentos possíveis – especialmente nos mais absurdos e preconceituosos – surgiram desde então, mas a medida deve ainda ser encarada como uma vitória.

A universidade pública precisa ser entendida como algo mais do que uma instituição para a pura e simples distribuição de diplomas. Seu papel perante a sociedade na qual se insere e que a sustenta deve ser muito diverso do papel desempenhado por qualquer instituição privada ou por qualquer outro tipo de instituição de ensino. Os seus critérios de seleção devem, exatamente por isso, atender a requisitos muito maiores e mais complexos do que o desempenho num exame vestibular ou a meritocracia.

Nada mais razoável do que ter assegurada, na universidade pública, pelo menos a metade das vagas para estudantes provenientes do ensino público. A metade das vagas é, na verdade, o mínimo: a reserva – ou a “cota”, como se prefere chamar – poderia muito bem ser mais ampla. Trata-se de um meio de garantir o acesso ao ensino superior para a parcela mais abrangente da população e, portanto, de aproximar a universidade pública daquele que deve ser o seu autêntico “público-alvo”. Trata-se, mais ainda, impedir um círculo vicioso pelo qual a parte da população que tem acesso ao ensino superior continua a ser precisamente a pequena minoria mais abastada, como um “privilégio” que continuamente alimenta a si próprio. E, assim, pode-se pretender a participação da universidade pública num importante – ainda que muito superficial, é bem verdade – processo de transformação social.

O sistema de “cotas” não é, claro, o melhor meio para tanto. Um sistema de educação pública universal e de excelência em todos os níveis seria o ideal. Mas este ideal está ainda muito distante: na verdade não pode ser plenamente atingido dentro da estrutura social presente. Assim sendo, exigir o completo imobilismo enquanto um tal sistema de educação pública não se realiza, ou seja, aguardar que este incremento simplesmente “caia do céu” é uma hipocrisia: é uma forma velada de defender que tudo permaneça exatamente como está, que os “beneficiados” continuem a ser os mesmos de sempre, que a educação continue a bloquear ao invés de propiciar alterações na estrutura da sociedade brasileira.

A instituição de um sistema de “cotas” para estudantes provenientes de escolas públicas é apenas o primeiro passo. Por que os opositores das “cotas” se empenham tanto em censurá-las? Por que temem as “cotas”? Ora, os opositores deste pequeno avanço parecem, na verdade, temer a grande massa de despossuídos, explorados e excluídos cujos interesses esta medida indiretamente atende.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 15/08/2012.]

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

[Crítica Social] Solução e problema


SOLUÇÃO E PROBLEMA

O julgamento do caso do “mensalão”, atualmente em curso, traz para o centro das atenções o tribunal e o direito. Assim acontece, na verdade, com todos os processos que envolvem algum apelo midiático, com os escândalos convertidos em exemplos moralizantes, com os crimes cuidadosamente explorados para que se transformem em grandes momentos de comoção nacional. De repente, tudo que importa é “fazer justiça” – isto é, a punição, o mal devolvido na exata medida do que é “merecido”, o castigo que faz com que o culpado “pague” pelo que fez.

O direito aparece como a “solução”, como o instrumento pelo qual se restabelece a ordem. A justiça aparece neste restabelecimento da ordem – no “dar a cada um o que é seu”, como já dizia o provérbio romano ainda tão repetido, tão irrefletidamente repetido pelos juristas. Mas qual é esta ordem a ser restabelecida? O que o “seu” de “cada um”, o “seu” a ser sempre garantido, fixado, devolvido?

Se o justo é o retorno ao estado anterior, então não se pode esperar do tribunal ou direito mais do que a reafirmação da ordem já estabelecida. Mas a reafirmação da ordem estabelecida é a permanente reafirmação da sociedade presente. Garantir a cada um o que é “seu” é garantir uma distribuição profundamente desigual da riqueza, retornar a riqueza desigualmente distribuída para os seus detentores originais. Trata-se do retorno incansável do mesmo, da reafirmação incansável da oposição entre classes sociais e de uma estrutura social na qual uma minoria se beneficia da exploração do trabalho da maioria.

Como mostraram Marx e, da maneira mais contundente, o jurista marxista Pachukanis, o direito está intimamente vinculado à estrutura da sociedade capitalista. A forma jurídica tem suas raízes na circulação de mercadorias e se manifesta como a forma pela qual o próprio homem se converte em mercadoria. A igualdade e a liberdade do direito são o espelho da equivalência das mercadorias e de um modo de produção movido pela valorização do valor. A realização do direito não é, não pode ser senão a realização disto: da exploração do trabalho, das relações de produção capitalistas, do processo de multiplicação do capital.

A “solução” oferecida pelo direito não é, portanto, senão a “solução” já dada pela ordem capitalista. O direito não pode, por isto mesmo, oferecer nenhuma autêntica “solução” – trata-se, na verdade, de parte do problema.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 08/08/2012.]

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

[Crítica Social] O espetáculo olímpico


O ESPETÁCULO OLÍMPICO

Repetidos a cada 4 anos, intensamente televisionados e noticiados, os Jogos Olímpicos constituem um verdadeiro espetáculo. A produção hollywoodiana da cerimônia de abertura, a transmissão contínua, o sensacionalismo dos recordes, todos os elementos parecem meticulosamente arranjados para tanto. Quem pode correr mais rápido, quem pode saltar mais longe, quem pode vencer – em disputa, a superioridade, a glória, os limites físicos e biológicos do homem. Mas apenas isto?

Na sua suposta origem, as olimpíadas integravam uma celebração religiosa. Os gregos corriam, saltavam e lutavam em honra aos deuses. Nas olimpíadas modernas, a despeito de sua alegada ascendência, este aspecto religioso já não existe – mas os atletas de hoje certamente não empenham o máximo de suas aptidões e esforços apenas em honra ao esporte, pelo puro prazer da competição ou pela simples glória de ter o nome gravado na história como vencedor. As olimpíadas modernas são, no seu íntimo, consagradas a um único ídolo – o dinheiro.

No que diz respeito aos atletas, mais do que prêmios e medalhas, estão em disputa patrocínios e recursos que lhes permitem ganhar a vida através do esporte – ou seja, que lhes permite viver como atletas profissionais. Nenhum atleta, claro, tem “culpa” por isto – e as conseqüências disto são, ao menos diante das câmeras de TV, positivas: disputas mais acirradas, em nível cada vez mais alto, com resultados extraordinários que desafiam os limites do humanamente possível. Mas, para além das câmeras de TV, esses resultados extraordinários custam, não raro, sacrifícios e danos corporais permanentes, cujos sinais aparecem apenas depois da curta “carreira” de um profissional do esporte. São, afinal, os desdobramentos óbvios de um corpo que é adestrado, exigido e manipulado (inclusive quimicamente) para, na verdade, além do que pode suportar.

No que diz respeito aos patrocinadores, os atletas não são mais do que outdoors que se movem. E, no mundo do capital, nenhum patrocínio é ingênuo: só se investe dinheiro no esporte e no espetáculo olímpico porque isto significa, de algum modo, ganhar mais dinheiro. Não se investe, de um modo geral, uma soma exorbitante na organização e realização dos Jogos Olímpicos – dinheiro público, inclusive – por acaso. Do ponto de vista da sede, há uma evidente movimentação de recursos com o turismo e benefícios para a infra-estrutura da cidade sede que são permanentes, mas os ganhos com o turismo ficam sobretudo com a iniciativa privada e as melhorias na infra-estrutura poderiam (ou deveriam) ser feitas independentemente das olimpíadas ou de qualquer evento do tipo. O que move, no fim das contas, todo o espetáculo é o interesse privado de alguns poucos.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 01/08/2012.]

quinta-feira, 26 de julho de 2012

[Crítica Social] Pinheirinho, seis meses depois


PINHEIRINHO, SEIS MESES DEPOIS

Pouco mais de seis meses atrás, o Pinheirinho, em São José dos Campos, foi invadido por policiais armados e os seus milhares de moradores foram retirados de suas casas à força. Um espetáculo de violência gratuita, de arbitrariedade e de ausência do mínimo bom senso. Uma demonstração não menos do que cabal de uma “política social” baseada na imposição, na pancadaria, na criminalização da pobreza. Um evento deplorável, noticiado ao seu tempo com o sensacionalismo de hábito, mas que a grande mídia, no seu compromisso infalível com as elites brasileiras, deseja ansiosamente esquecer para sempre.

Seis meses depois, o terreno foi reintegrado, os moradores foram expulsos. Há certamente uma meia dúzia de seres humanos profundamente satisfeitos por conta disso – e o que será do terreno daqui por diante pouco importa, exceto para esta meia dúzia. No outro extremo, há milhares de famílias com as quais ninguém parece se importar. Milhares de famílias que já viviam em situação precária e que perderam as suas casas. Que tipo de vida estas milhares de pessoas levam hoje, onde moram, como sofreram ou ainda sofrem com a expulsão do Pinheirinho, ninguém sabe – só o que se sabe é que, do ponto de vista do poder público, tudo isto é secundário frente à satisfação daquela meia dúzia de “proprietários”.

É por estas pessoas, por esta ferida eternamente aberta, que o Pinheirinho não pode ser esquecido. O transcurso do tempo não pode legitimar o absurdo, o silêncio não pode tornar aceitável o inaceitável. Pois em janeiro de 2012 o interesse especulativo de uns poucos prevaleceu implacavelmente sobre as necessidades vitais de milhares, a força foi utilizada para proteger o formalismo da propriedade privada ao custo de extirpar milhares da única moradia de que dispunham, a violência aberta foi o “instrumento” descaradamente escolhido para “solucionar” uma questão social grave e complexa.

Este recurso à violência como mecanismo de “solução” de questões sociais tornou-se, na verdade, um hábito – ao menos no estado de São Paulo. Pudemos assistir a isto, apenas para ficar com casos recentes e de grande repercussão, também na “cracolândia” e na USP. Para além do confortável microcosmo do noticiário da TV e dos grandes jornais, revistas e sites da internet, este hábito já existe há muito tempo e atinge sobretudo as periferias das grandes cidades. O Pinheirinho é apenas um “marco”, um caso a destacar em meio uma imensidão anônima e cotidiana de violência institucional contra a pobreza – e exatamente como “marco” é que ele deve ser lembrado.

Contra o absurdo que se perpetua dia após dia, contra o absurdo de uma estrutura social que se alimenta da pobreza de muitos, contra esta estrutura social que oprime as classes exploradas, a capacidade de indignar-se é um pequeno e ineficaz remédio. Mas este pequeno e ineficaz remédio é ainda o mínimo que podemos esperar.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 25/07/2012.]

quinta-feira, 12 de julho de 2012

[Crítica Social] Sobre o 9 de julho de 1932


SOBRE O 9 DE JULHO DE 1932

“Celebramos” nesta semana os 80 anos da Revolução Constitucionalista de 1932. Como sempre, no dia 9 de julho, São Paulo dedica cerimônias grandiosas à memória dos seus revolucionários e a grande mídia noticia calorosamente o exemplo de bravura e dedicação daqueles que lutaram e morreram por “liberdade”. Mas, para além do clichê e do ufanismo, o que, afinal, há para lembrar e comemorar nesta data?

A “versão oficial” da história relata que o movimento paulista de 1932 lutou contra o governo ditatorial de Getúlio Vargas, exigindo a limitação dos poderes do governo federal por meio de uma constituição. Uma luta, portanto, do direito contra o arbítrio, da liberdade contra a opressão, da democracia contra a ditadura. Uma luta “legítima”, em que os paulistas, isolados, foram derrotados. E esta derrota alimenta – muito convenientemente, diga-se – há 80 anos o mito de que São Paulo está “à frente” dos outros estados do Brasil.

O que, no entanto, a “versão oficial” negligencia – “para o bem de São Paulo” – é que os motivos por detrás do 9 de julho são bastante mais complexos e bastante menos “nobres” do que se supõe. O “problema” real por detrás do governo Getúlio Vargas não estava exatamente circunscrito à ausência de uma constituição ou, de um modo geral, à falta de liberdade, mas ao fato de que a ascensão de Vargas ao poder significou o alijamento de uma velha oligarquia rural cuja sede era precisamente o estado de São Paulo. A velha oligarquia dominante desde a proclamação da república, a velha oligarquia do café e das eleições de fachada foi o lado perdedor, anos antes, na revolução de 1930.

Mais do que um movimento por avanços democráticos, por legitimidade política, por direitos e por liberdade, 1932 representa, portanto, uma luta pelo retrocesso. A história não é feita por discursos e, assim, o discurso da revolução não pode ser tomado a sério como o seu embasamento real. As palavras de ordem pela constitucionalização do país apenas levavam a cabo os anseios de uma pequena elite que tinha perdido o seu lugar privilegiado, que desejava avidamente retomá-lo e que não mediria esforços para tanto.

Os festejos em torno 1932 celebram há 80 anos esta tentativa de retomada do poder pela elite do café. E não se trata de uma grande causa para celebrar... Não há nada de especial, é bem verdade, para louvar no governo Vargas, mas há menos motivo ainda para louvar qualquer das pequenas elites que, ao longo da nossa história, alternaram-se no poder.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 11/07/2012.]

quinta-feira, 5 de julho de 2012

[Crítica Social] Sopão e higienismo em São Paulo


SOPÃO E HIGIENISMO EM SÃO PAULO

Na última terça-feira, 26 de junho, a Folha de São Paulo publicou na sua seção Tendências/Debates um artigo em que dois ex-alunos da Faculdade de Direito da USP, localizada no Largo de São Francisco, questionam a “apropriação” deste “espaço público” por moradores de rua. Entre as várias soluções propostas, destacam-se a “conscientização” para o fato de que “doar dinheiro, roupas ou alimentos na rua não ajudará a transformar as pessoas” e a “indução ininterrupta” por parte do poder público para que os moradores de rua adentrem o sistema de abrigos da cidade.

No dia seguinte, quarta-feira, 27 de junho, foi amplamente divulgada a notícia de que a prefeitura de São Paulo pretende proibir a distribuição gratuita de alimentos, promovida por várias instituições não-governamentais na capital, aos moradores de rua. O “sopão” passaria a ser distribuído apenas em alguns poucos locais previamente determinados, de modo a obrigar os moradores de rua a ingressar em abrigos da prefeitura.

Em comum, as duas propostas têm por suposto (apesar do texto da Folha de São Paulo tentar negá-lo) o mais puro e simples higienismo. Os moradores de rua são o problema, o inaceitável, a poluição, a sujeira. E a solução lógica, deste ponto de vista, só pode ser esta: tirar os moradores de rua da rua, tirá-los do campo de visão do transeunte, limpar a sujeira.

O que de fato mais interessa é precisamente aquilo que não aparece. A “solução” para o “problema” dos moradores de rua só pode se pretender efetiva se enfrentar as causas, isto é, aquilo que coloca um grande número de pessoas em situação de rua. Atacar o próprio morador de rua, forçar a sua retirada deste ou daquele local, obrigar o seu ingresso em abrigos etc. são formas absolutamente superficiais de atuação, fundadas numa limitadíssima visão preconceituosa e elitista que reputa, no fim das contas, ao próprio morador a responsabilidade exclusiva pela sua situação.

A situação específica do Largo de São Francisco está imediatamente relacionada com a intervenção desastrosa e violenta promovida pelo poder público no início do ano na região da “cracolândia”. Isto, é evidente, a prefeitura jamais assumirá: a “cracolândia” agora não tem mais fronteiras e ocupa todo o centro da cidade.

A situação geral da cidade de São Paulo e, mais ainda, de todas as grandes cidades brasileiras têm, por sua vez, causas ainda mais profundas e complexas. A existência de moradores de rua é uma faceta da existência incômoda da miséria. Trata-se de uma das manifestações inevitáveis da estrutura econômica e social em que vivemos, estrutura que se alimenta da desigualdade, em que a exploração do trabalho é a fonte última de toda a multiplicação da riqueza, em que a opulência de alguns pode ser sustentada apenas pela pobreza de muitos. Sem alteração radical desta estrutura não há qualquer solução verdadeira possível.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 04/07/2012.]

quinta-feira, 28 de junho de 2012

[Crítica Social] Sobre os “direitos reprodutivos da mulher”


SOBRE OS “DIREITOS REPRODUTIVOS DA MULHER”

“Direitos reprodutivos da mulher” – esta expressão tão simples, que não deveria ser senão a garantia mais elementar, que não deveria causar qualquer comoção ou oposição, acabou se tornando o centro de um dos debates de maior destaque da Rio+20. Isto talvez seja uma demonstração da pouca expressividade de tudo que se discutiu na reunião de cúpula das Nações Unidas ou da pouca disposição dos representantes da grande maioria dos Estados no que diz respeito ao enfrentamento dos temas mais sérios ali propostos. Mas é ainda significativo que o assunto tenha sido desviado de uma tal maneira e que a posição mais retrógrada tenha sido, ao final, aquela que prevaleceu.

Ora, com “direitos reprodutivos da mulher” tudo que se quer dizer é que à mulher deve ser assegurada a prerrogativa de decidir quando ter filhos. Aqui se inclui, por exemplo, a garantia de acesso e a liberdade de uso de métodos contraceptivos. Por que, afinal, implicar com algo assim, bloqueando por completo a discussão? Por que motivo alguém pretenderia negar por completo à mulher a possibilidade da decisão a respeito de ser mãe, a respeito de quando ser mãe, a respeito de como ser mãe?

O debate a respeito dos direitos reprodutivos pode avançar, claro, até temas mais controversos como, por exemplo, o direito de escolher pela interrupção da gravidez. E este debate seria pautado desde o princípio por um ponto de vista muito adequado: o do reconhecimento da mulher como plenamente capaz de decidir e de agir. Um ponto de vista laico, que sobrepõe a saúde pública às crenças individuais e que se coloca a favor da mulher. Mas a intolerância para com o reconhecimento da mulher e o fervor religioso indevidamente transposto para além dos limites estreitos da fé estão sempre vigilantes para impedir mesmo a simples proposição deste debate.

Apenas a persistência de uma visão conservadora, preconceituosa e machista pode explicar – sem, é evidente, justificar o que é ainda injustificável – tamanho desrespeito para com a mulher. É, nesse sentido, absolutamente lamentável que os arautos de algumas das mais disseminadas religiões do mundo se prestem ao desserviço de fornecer subsídios a tal visão, chegando mesmo a utilizar o seu “peso político” para pressionar pela eliminação do termo. E, pior ainda, é absurdo que uma reunião de líderes mundiais se curve a esta exigência, abrindo mão sem qualquer constrangimento da oportunidade de estabelecer um avanço – ainda que pequeno – na questão da igualdade da mulher.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 27/06/2012.]

quinta-feira, 14 de junho de 2012

[Crítica Social] Sobre o “generoso” salário mínimo


SOBRE O “GENEROSO” SALÁRIO MÍNIMO

Os aumentos do salário mínimo não podem mais ser tão generosos sem elevar o risco de inflação.” Esta foi uma das conclusões da coluna da senadora Kátia Abreu, do PSD, publicada na Folha de São Paulo no último sábado (9/6). Os “aumentos generosos” a que se refere a senadora são, por exemplo, os pouco mais de 14% concedidos no final de 2011, levando o salário mínimo ao valor atual de R$ 622.

Não pretendo aqui desqualificar o texto da senadora apenas por uma frase retirada de seu contexto. Isto não seria, do ponto de vista intelectual, algo de todo adequado – e, mais ainda, é desnecessário, visto que os interesses políticos que aqui se traduzem são por si sós o suficiente para que o leitor mais atento saiba com que tipo de argumento está lidando. Pretendo apenas insistir numa única e muito simples questão: do ponto de vista de quem, afinal, os aumentos do salário mínimo podem ser qualificados como “generosos”?

Certamente o trabalhador assalariado cujos rendimentos não ultrapassam o mínimo não considera, sob nenhum aspecto, o reajuste anual do seu salário como “generoso”. Certamente ele e sua família, constrangidos a “satisfazer” todas as suas necessidades vitais com tão poucos recursos, consideram ainda o salário mínimo e seus reajustes como francamente insuficientes. A tal “generosidade” em questão só pode, então, ser imaginada do ponto de vista dos grupos sociais privilegiados, mais enriquecidos, elites ou, pelo menos, classes médias. Ou seja, do ponto de vista de quem definitivamente não vive do salário mínimo.

De fato, saberia uma senadora da república, da bancada ruralista, o que significa viver com nada mais do que um salário mínimo? Os grandes produtores rurais, as elites tradicionais, a alta burguesia etc. poderiam fazer remota idéia do que significa viver com apenas R$ 622 durante um mês? Tais grupos sociais sabem – e muito bem – qual o “peso” de pagar salários mínimos. Sabem que, via de regra, quanto menores os salários pagos, maiores os lucros. Sabem, portanto, que o aumento do salário mínimo significa, no pólo oposto ao dos trabalhadores, maiores “despesas”.

O ponto de vista de quem acusa o aumento do salário mínimo de “generoso” só pode ser, no fim das contas, o de quem não vive com tão pouco e, mais ainda, o de quem vê o salário mínimo como “obstáculo” para o “elevado” objetivo de lucrar sempre mais. Trata-se, portanto, de um ponto de vista que não apenas não corresponde ao do trabalhador – isto é, ao ponto de vista da imensa maioria da população –, mas, na verdade, constitui o seu adversário direto, o seu maior opositor. Trata-se precisamente do interesse pela manutenção da desigualdade econômica que alimenta o enriquecimento de uma minoria, pela manutenção ou agravamento da exploração do trabalho que move a multiplicação do capital, pela perpetuação ao infinito das mesmas estruturas sociais pelas quais se organiza a sociedade presente.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 13/06/2012.]

quarta-feira, 6 de junho de 2012

[Crítica Social] Sobre o dia mundial do meio ambiente


SOBRE O DIA MUNDIAL DO MEIO AMBIENTE

Ontem, 5 de junho, foi o dia mundial do meio ambiente. Há 40 anos, foi a data de abertura da conferência de Estocolmo, primeiro grande debate organizado pela ONU para debater a questão ambiental. Ao longo desses anos, no entanto, parece não haver qualquer avanço para levar em consideração e as preocupações acerca do meio ambiente parecem não ter sido resolvidas exceto em discursos cada vez mais incisivos e cada vez menos efetivos.

Nesse sentido, o tom de alarme ou de denúncia de tudo que é veiculado pela grande mídia acerca do meio ambiente aparece em perfeita sintonia com o tom moralizante das intervenções dos ambientalistas. Em comum, em ambos os casos, um discurso cujo tom é equivocado desde o princípio e que mira objetivos igualmente equivocados.

Em primeiro lugar, não pode haver alarmismo acerca daquilo que não pode ser surpresa para ninguém. É bem verdade que a sociedade contemporânea “descobriu-se”, como nunca antes na história, capaz de aniquilar por completo os recursos e as condições naturais que permitem a sobrevivência da própria espécie humana na Terra. Mas a sociedade contemporânea, embora relativamente recente em termos históricos, é já velha de séculos. A estrutura de produção capitalista, com o seu progresso técnico característico e com a sua avidez cega e essencial pela multiplicação do capital, é o que de fato tornou a humanidade capaz de destruir-se e de destruir o seu planeta – mas esta mesma estrutura de produção progrediu, desde seu advento, apenas no sentido de tornar esta destruição cada vez mais iminente, cabal, sem volta.

Em segundo lugar, nenhum discurso pode transformar, apenas porque quem o emite assim deseja, a questão ambiental em mero problema moral. Esta moralização – isto é, a redução da questão a dever moral: “você deve reciclar seu lixo”, “você deve plantar árvores”, “se cada um fizer a sua parte...” etc. – é, ao mesmo tempo, a individualização do problema. Tudo se reduz a um problema de consciência, toda solução se resume a uma exigência de “conscientização”. “Salvar o planeta” aparece então como responsabilidade de todos, de cada um e, portanto, de ninguém. Assim desaparece por completo o que é, de fato, essencial: a dimensão propriamente estrutural da questão, a sua vinculação fundamental ao modo de produção em vista do qual toda a sociedade contemporânea está determinada em última instância.

Desaparece por completo, no mais, o que há de mais importante e, ao mesmo tempo, de mais desesperador acerca de qualquer perspectiva de solução: o fim da ameaça de esgotamento completo dos recursos naturais só pode ser o fim de uma forma histórica de sociedade, isto é, o fim de uma forma histórica de relações de produção. Isto, por sua vez, não se pode resolver de uma hora para outra e não se pode resolver com apelo ingênuo ou hipócrita à “boa vontade”.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 06/06/2012.]

quinta-feira, 31 de maio de 2012

[Crítica Social] Direito de greve?


DIREITO DE GREVE?

A greve é um instrumento legítimo de luta da classe trabalhadora. O direito de greve, por outro lado, não pode ser encarado como o bastião fundamental desta luta – como não pode, de um modo geral, ser a luta dos trabalhadores reduzida a uma simples luta “por direitos”. A juridificação da greve – isto é, a sua redução a direito de greve e, assim, a instituição da distinção entre “greve lícita” e “greve ilícita” – é, na verdade, a sua “domesticação”: a greve passa a ser admitida como direito apenas na medida em que se limita a reivindicações pontuais, estritamente relacionadas a questões profissionais, afastado qualquer conteúdo político. Mas a despolitização da greve implica o sacrifício de sua maior força.

O advento, a constitucionalização e a garantia de um direito de greve não significam, portanto, um avanço substancial no que diz respeito a uma transformação social radical. Pelo contrário, são um meio de simultaneamente dar voz aos trabalhadores e de silenciá-la no que é essencial e urgente. Trata-se, ainda que indiretamente, de promover a reprodução da estrutura social presente, permitindo a paralisação dos trabalhadores e impedindo que as suas reivindicações ultrapassem os limites “seguros”.

Pois bem. Na última semana, os metroviários de São Paulo realizaram uma greve. O evento foi amplamente noticiado pela grande mídia, com especial destaque para os “transtornos” causados no transporte da cidade. Pouca atenção foi dada, como sempre, às reivindicações dos grevistas, mais do que razoáveis. E pouca importância foi dada a outro dado: a Justiça do Trabalho decidiu, antes da paralisação, que, sob pena de multa de R$ 100 mil ao dia, os grevistas deveriam manter 100% de funcionamento do metrô nos horários de pico e 85% em todos os demais horários.

Ora, qual greve pode desenvolver-se com, no máximo, 15% de paralisação? Qual greve pode servir, nestas condições, como instrumento de luta para os trabalhadores? Ou, em termos propriamente jurídicos, há, diante de uma tal limitação, um direito de greve ainda assegurado?

Se o direito de greve já não é sinal concreto de qualquer avanço substancial, o que dizer de uma situação em que mesmo este mínimo não pode tornar-se realidade? O que dizer diante de um contexto tal em que, mesmo com todas as restrições referentes às reivindicações “juridicamente admissíveis”, a greve não possa ser aceita?

Trata-se, sem dúvida, de uma situação francamente desfavorável aos trabalhadores, de um contexto de franca e desmedida resistência à luta contra o domínio do capital. Isto, no entanto, não deve redundar em conformismo ou desmobilização: o que se exige é mais luta, mais mobilização, mais força para vencer o invencível, para superar os poderes que bloqueiam o advento de uma nova e cada vez mais necessária forma de sociedade.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 30/05/2012.]

quinta-feira, 24 de maio de 2012

[Crítica Social] Internet, compartilhamento, propriedade


INTERNET, COMPARTILHAMENTO, PROPRIEDADE

O site livrosdehumanas.org, conhecido por compartilhar gratuitamente versões digitalizadas de inúmeros livros, muitos dos quais raros e difícil acesso, foi bloqueado na última semana por conta uma ordem judicial emitida a pedido da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR). O episódio deve servir, no mínimo, para propor alguns importantes questionamentos.

Em primeiro lugar, para que servem os progressos tecnológicos e informáticos? Afinal, o desenvolvimento (e, recentemente, o barateamento) dos computadores e a ampliação do acesso à internet tornaram perfeitamente possível a distribuição em muito maior escala e de maneira muito mais aberta – até mesmo inteiramente gratuita – de uma série de bens culturais, como músicas, vídeos e textos. Tornou-se possível assegurar o acesso a tais bens a toda uma parcela da população que, do contrário, sequer tomaria conhecimento da sua existência ou não poderia dispor dos meios necessários para tanto. Só não se pode fazê-lo porque a estrutura mesma desta distribuição ainda constitui um obstáculo.

Que obstáculo é este? Ora, a distribuição de músicas, vídeos e textos é, até o presente, controlada por gravadoras, produtoras e editoras que atuam, como não poderia deixar de ser, em regime de mercado e que, portanto, fazem da distribuição uma atividade orientada para o lucro. Toda a distribuição é, portanto, realizada em regime de concorrência e determinada pelo movimento próprio do capital: a sua finalidade não é, em primeiro plano, a efetiva difusão da cultura, o acesso da maior parte possível da população ou os avanços culturais e intelectuais possibilitados pelo acesso ampliado e aberto.

Qual, então, o (suposto) ilícito cometido através do livrosdehumanas.org? O compartilhamento gratuito de livros digitalizados certamente atente ao interesse de muitas pessoas, sobretudo estudantes, pesquisadores e professores. Fere, por outro lado, o interesse de algumas poucas pessoas, mais precisamente daquelas que lucram com o monopólio da distribuição (isto é, com a venda) dos mesmos textos. Este interesse não é essencialmente dos autores, que, via de regra, recebem muito pouco pela publicação, mas das grandes editoras, livrarias etc. A questão dos direitos autorais é, no fundo, apenas instrumental: o “problema” central é que o compartilhamento digital gratuito “desvia” parte da distribuição em regime de mercado e, assim, implica menores lucros para quem tem como atividade a comercialização de livros. Não se trata, portanto, de proteger e garantir juridicamente o interesse da coletividade – que só pode ser pelo maior acesso – e sim um interesse proprietário muito mais restrito.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 23/05/2012.]

quinta-feira, 17 de maio de 2012

[Crítica Social] Perspectiva crítica do direito


PERSPECTIVA CRÍTICA DO DIREITO

O pensamento acerca do direito pode ter diferentes perspectivas. Pode ter – o que é mais comum – uma orientação direta à prática, à aplicação, à concretização do direito. E pode ter, por outro lado – e bem menos freqüentemente –, um caráter desvinculado da prática, de modo a constituir uma cogitação mais densa, mais profunda, sobre as questões fundamentais do direito.

A primeira perspectiva é a da técnica – o que os juristas mesmos denominam usualmente “doutrina” ou “dogmática”. O pensamento jurídico dogmático tem uma evidente limitação relativa à aplicabilidade do direito, à decidibilidade etc. É a perspectiva que se encontra nos manuais, nos códigos comentados, na obra dos “grandes doutrinadores” de cada área etc.

A segunda perspectiva, desvinculada das necessidades práticas, é aquela que podemos denominar de “Filosofia do Direito”. Esta pensa o que é impensável para a dogmática jurídica: o sentido, a origem, os fins, a realidade profunda das disposições jurídicas e do próprio direito. E pode, por sua vez, ter diferentes conotações: conservadoras ou transformadoras, resignadas ou indignadas, justificadoras ou críticas.

Justificadora é a filosofia do direito que aceita a conformação dada da sociedade e que aceita a legitimidade e/ou a necessidade do direito para uma tal sociedade. O direito é tido como necessário e isto não se questiona, o que importa é “abrir”, pelo pensamento filosófico, as condições prévias ao pensamento científico ou dogmático sobre o direito ou “fechar” filosoficamente as questões complexas, causadoras de inconvenientes, que o pensamento jurídico estrito, por sua própria estreiteza, não dá conta de superar.

Crítica, pelo contrário, é a Filosofia do Direito que não se resigna ao dado, que não se presta ao serviço de meramente justificar o direito tal como está, que vislumbra, em maior ou menor medida, a possibilidade da transformação. Uma tal crítica pode ser dada no conteúdo ou na forma.

A crítica dada no conteúdo é aquela dirigida aos termos específicos de uma determinada disposição jurídica, ao tratamento jurídico de uma determinada questão, ao texto de uma determinada lei etc. Já a crítica dada na forma é aquela que se dirige não a conteúdos específicos, mas ao direito como um todo. É a crítica que não se questiona se o direito pode ser melhor ou pior, se pode avançar aqui ou ali – é a crítica que se questiona sobre o próprio direito, qual o seu lugar, qual a sua raiz na estrutura social, para que serve, a quem serve. É a modalidade mais radical de crítica, a face mais radical da Filosofia do Direito.

Esta última é a crítica mais profunda e, ao mesmo tempo, a mais necessária. Se alinhada à crítica na perspectiva marxista, torna-se, no limite, a crítica de uma forma histórica de sociedade como um todo – a crítica da sociedade capitalista.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 16/05/2012.]
[Texto adaptado a partir daquele já publicado neste blog em junho de 2009.]

quinta-feira, 10 de maio de 2012

[Crítica Social] Sobre a greve dos trabalhadores de Belo Monte


SOBRE A GREVE DOS TRABALHADORES DE BELO MONTE

Qual é o preço do “progresso”? Até que limite estamos dispostos a pagar pelo “desenvolvimento”? E o que é, no fim das contas, “progresso”? O que é “desenvolvimento”?

A usina hidrelétrica de Belo Monte, em construção no rio Xingu, no interior do Pará, suscita estas questões em diversos aspectos. Trata-se de uma obra bilionária, que envolve milhares de trabalhadores, considerada de vital importância para a infra-estrutura do país, vital para manter, num futuro próximo, o ritmo do nosso crescimento econômico. Ao mesmo tempo, trata-se de uma obra com impacto ambiental avassalador, cujos efeitos destruidores afetarão uma área gigantesca e mais ainda, de uma obra que forçará o deslocamento ou a alteração das condições essenciais de vida de inúmeras de comunidades tradicionais.

Mas, em especial, as questões aqui levantadas devem ser postas em vista da greve dos trabalhadores que atuam na construção da usina, deflagrada no final de abril e prontamente “combatida” por via judicial.

As exigências dos trabalhadores: elevação do vale-alimentação de R$ 95 para R$ 300 mensais e redução do intervalo de “baixada” (visita à família, para trabalhadores que se deslocam de outros estados) de 6 para 3 meses. Exigências, note-se bem, elementares, absolutamente mínimas: de pouco mais de R$ 3 para R$ 10 por dia em alimentação e a possibilidade de visitar a família (e o tempo de dispensa para tanto é de apenas 9 dias) a cada 3 meses. Exigências que indicam, portanto, com muita clareza, que nem mesmo o absolutamente mínimo está sendo assegurado à massa de trabalhadores empenhada em erguer as condições entendidas como vitais para o desenvolvimento econômico do país.

Em que medida, afinal, estes trabalhadores participam ou participarão do “progresso” ou do “desenvolvimento” que ajudam a tornar possível? Em que medida o “progresso” ou o “desenvolvimento” implicam uma distribuição mais adequada da riqueza ou um abrandamento de desigualdades sociais? O preço a ser pago aqui, além da grande destruição ambiental e do completo desrespeito a comunidades tradicionais, é a acentuada exploração de milhares de trabalhadores, condição ainda mais penosa do que o “usual”: qual o “progresso” nisso? O que esperar, então, para o futuro, de um “progresso” ou de um “desenvolvimento” construído a partir de tais sacrifícios?

Ora, o “progresso” ou o “desenvolvimento” que se pode falar aqui não é destinado ao meio ambiente, ao índio, ao trabalhador ou a qualquer grupo social subalterno. No interior dos estreitos limites da sociedade capitalista, não se poderia mesmo esperar algo diferente. Os interesses econômicos envolvidos com a construção da usina de Belo Monte não são, em definitivo, aqueles da classe trabalhadora.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/05/2012.]

quinta-feira, 26 de abril de 2012

[Crítica Social] Duas leis “exemplares”


DUAS LEIS “EXEMPLARES”

O poder legislativo municipal de Campinas, interior de São Paulo, aprovou nos últimos dias uma dupla de leis “exemplares”. Uma delas regulamenta a fixação de placas, patrocinadas pela iniciativa privada (a troco de publicidade), “conscientizando” a população contra a prática de dar esmolas. A outra proíbe uma série de atos que supostamente “atrapalham o trânsito” – como, por exemplo, a prática de pedir esmolas.

As duas leis são “exemplares” porque demonstram com a mais absoluta clareza a persistência de um desprezível higienismo social, elitista e carregado de preconceito. Demonstram, mais ainda, a mais inadequada realização deste higienismo por meio jurídico, por iniciativa do poder público – e, assim, revelam qual a “solução” adequada, do ponto de vista deturpado da “higiene” social, para a profunda desigualdade da sociedade brasileira.

O higienismo não é, de fato, uma novidade nesta sociedade de extremos, de passado senhorial e de aspirações aristocráticas incansáveis em que vivemos. A reação contra a construção de uma estação de metrô – ou, mais precisamente, contra um suposto “público diferenciado” – da burguesia tradicional do bairro paulistano ironicamente conhecido como “Higienópolis” é apenas mais um célebre episódio a ser lembrado. O preconceito contra a pobreza e o desprezo da miséria são recorrentes e estão profundamente arraigados na “consciência” das assim chamadas classes médias e das elites brasileiras.

Esta “repulsa” encontra, não raro, por parte desses grupos sociais, a solução mais “óbvia”: trata-se de eliminar do seu campo de visão o pobre, o miserável, o excluído, o mendigo, o usuário de “crack” etc. Trata-se, noutras palavras, de “varrer” isto que, de um ponto de vista sórdido, é a “sujeira” da sociedade, o indesejável que “polui” o ambiente idealmente asséptico de uma sociedade igual que não existe, para debaixo do tapete.

É precisamente isto que as leis aprovadas em Campinas pretendem realizar. Não se coloca em questão qualquer medida para suprimir ou, ao menos, para reduzir a extrema e estrutural desigualdade que constitui a causa da existência de mendigos pedindo esmolas nas ruas da cidade. O único objetivo das leis é tirá-los de vista, afastá-los para sabe-se lá onde, afastá-los da “nobre” presença do transeunte que, por “sorte”, não está na mesma condição miserável de vida.

O transeunte tem, afinal, que ser “poupado” desta desagradável visão – da desagradável realidade que, bem defronte os seus olhos, não deixa dúvidas. Uma agradável mentira, portanto, cuidadosamente construída com ajuda da lei. Mas, a despeito de qualquer mentira, o problema central, que o poder público não coloca em pauta e que lei alguma poderá resolver, continua o mesmo: a distribuição desigual da riqueza inerente ao mundo capitalista, cuja eliminação pode ocorrer apenas por meio da superação desta forma histórica de sociedade.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 25/04/2012.]