quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

[NJ] O mito da neutralidade

O MITO DA NEUTRALIDADE

“Quando um elefante pisa no rabo de um rato e você diz que é neutro, o rato não aprecia a sua neutralidade.”
– Desmond Tutu

Quer na academia, quer na política, a neutralidade é um discurso batido, cansado, já corroído pelo tempo e pelo uso ruim e reiterado. Um discurso pouco razoável para quem, em qualquer dessas áreas, quer ser levado a sério. Mas nem todos querem ser levados a sério. Para alguns, o que importa realmente é convencer, por qualquer meio possível. É por isso que a neutralidade é um discurso ainda teimoso, ainda incômodo, no qual muitos insistem – e, o que é mais difícil de acreditar, um discurso pelo qual alguns ainda se deixam enganar.

Na academia, a neutralidade é uma das bases daquilo que se entende por método científico. Trata-se, em poucas palavras, da exigência imposta ao cientista de não tomar partido em relação ao objeto de sua investigação, para que suas opiniões, sentimentos e idiossincrasias não interfiram nos resultados. Isto como se a relação entre o sujeito que investiga e o objeto que é investigado fosse pura e invariavelmente exterior, quero dizer, como se o cientista realmente estivesse sempre a observar o objeto “de fora”.

Se, no entanto, o objeto de investigação do cientista é social, não há “de fora”. O sujeito que observa não pode colocar-se externamente ao objeto, pois estão ambos intrincados na totalidade social. O observador nunca é, afinal, um ser isolado ou auto-suficiente, mas um ser socialmente determinado, tanto quanto aquilo que observa. A sociedade, em certo sentido, observa, pelos olhos do indivíduo aparentemente autônomo, a si mesma. E se ninguém pode ser neutro consigo mesmo, tampouco a sociedade pode.

Já na política, diz-se neutro quem pretende escapar às grandes disjunções ideológicas – direita ou esquerda, conservador ou progressista, liberal ou socialista etc. É uma maneira de colocar-se “de fora” das disputas propriamente partidárias, o que, por sua vez, é uma maneira de tentar agradar a todos indistintamente. Não sendo propriamente nem aliado nem adversário de ninguém, o político neutro pensa assim conseguir atrair simpatias de todos os cantos. Daí os velhos clichês da política da neutralidade: estar acima das ideologias; apoiar o que for de interesse do povo, independentemente da orientação partidária; preocupar-se com o que é melhor para todos, sem perder tempo com rusgas políticas etc.

A neutralidade política não é, veja-se bem, a simples ausência de posição – é a deliberada posição de não ter posição. Exige, na verdade, um grande malabarismo. É possível, no cabo-de-força da política partidária, ser de extrema direita, direita, centro-direita, centro, centro-esquerda, esquerda ou extrema esquerda. Na direita, é possível ser reacionário ou conservador. No centro, é possível ser liberal ou social-democrata, um pouco mais para um lado ou para o outro. Na esquerda, há a “velha esquerda” marxista (com muitas subdivisões) e a “nova esquerda” social-reformista. Outras inúmeras opções, do anarquismo à teologia da libertação, cobrem um campo vastíssimo. Mesmo assim, há quem prefira (dizer) não ser nada disso. Há quem prefira (dizer) estar “acima”, como que tendo transcendido ao mundo espiritual da política pura. Há quem prefira (dizer) não ter lado.

Mas como é possível não estar em lado nenhum? É possível ficar “em cima do muro”, “lavar as mãos” – mas quem fica “em cima do muro” ou “lava as mãos” por acaso já não escolheu o seu lado? Quem diz não ter lado ou está apenas do seu próprio lado e é, portanto, oportunista, ou prefere manter-se indiferente às coisas como estão e, portanto, contribui com o seu silêncio para manter tudo como está. Pois não ter lado é sempre o mesmo que estar, ainda que indiretamente, do lado dos vencedores. É consentir tacitamente com o forte esmagando o fraco, com o dominador oprimindo o dominado, com o capital explorando o trabalho.

Quem, no entanto, não quer fechar os olhos para os que não tem voz, os explorados, os excluídos, os pobres e miseráveis, enfim, os derrotados, não pode dizer-se neutro. Na academia ou na política, quem se opõe ao domínio dos vencedores tem que tomar partido – e não pode senão tomar o partido da transformação social.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 07/12/2008.]

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

[NJ] A política e os puros

A POLÍTICA E OS PUROS

Há uma certa atitude despontando na política, uma velha atitude travestida de nova, uma sutil, sublime e astuta atitude “pura”. Sim. Há quem reclame (nem sempre com todas as letras, pois pode mesmo soar estranho), em pleno séc. XXI, em pleno impuro (intrinsecamente impuro) domínio da política, a mais alta “pureza”. Não exatamente uma pureza nas posições partidárias ou uma pureza de ideologia política, mas uma “pureza” algo metafísica. Pureza de coração e sentimentos, pureza de corpo e alma – políticos “puros”, nesse peculiar sentido.

Poderia ser uma simples visão “romântica” da política. Poderia, mas, de fato, não é. Os “românticos” entendem que a política é comunhão, unidade, interesse coletivo, o próprio coletivo uma vez – e para sempre – perdido na sociedade civil. Entendem a política como uma esfera luminosa na qual as sombras dos interesses egoístas e espúrios, o “pecado” e a “sujeira”, jamais penetram ou jamais deveriam penetrar – na qual há lugar apenas para a luz eternamente impoluta do que é comum, universal. Mas os “românticos”, que ficam bem na academia e na literatura, que formam sempre novas levas de discípulos e escrevem livros muito lidos, não duram muito na “carreira”, na política “profissional”.

As disputas eleitorais são invariavelmente disputas de interesses. Leia-se: disputas entre interesses privados, entre egoísmos conflitantes, nas quais o último a restar de pé é aquele que há de prevalecer, através da maquinaria do poder público, sobre todos os demais. Exige-se de quem pretende levar a vida nisso, portanto, ao menos uma atitude “realista”. A vida do político “profissional” é uma permanente luta de sombras, na qual é necessário, não raro, aliar-se aos inimigos para logo depois desfazer-se deles, puxar o tapete dos adversários, fazer o que for preciso para sair vitorioso. Na qual é preciso, numa palavra, sujar-se – ainda que para permanecer limpo. Isto, evidentemente, não é o que se propagandeia – é a realidade que interessa manter desconhecida.

Ocorre que o político “profissional” – que é um “realista” e faz o que é necessário, como dele se exige – logra, ao dizer-se “puro”, colocar a situação, aos olhos dos seus e do público em geral, de forma radicalmente diferente. A suposição da “pureza” torna uma simples disputa de interesses um tanto mais elevada, artificialmente elevada, como que passada num outro patamar. Aparece não mais como uma disputa entre interesses que, no egoísmo, equivalem-se, mas como uma disputa entre inúmeros interesses “sujos” e um único “limpo”, entre a “impureza” de todo o resto e a “pureza” de uns poucos – exagerando, mas nem tanto, como uma disputa entre o “bem” e o “mal”.

Ora, na disputa entre o “bem” e o “mal”, o universo, o destino, a vontade por trás do destino hão de interferir, sempre em prol do triunfo do “bem”. Por isso os “puros” devem, a todo custo, permanecer “puros”. Não podem aliar-se a “impuros”, em nenhuma circunstância. Não podem acolher quem não foi devidamente iniciado. Não podem assumir qualquer postura propriamente política – direita, esquerda, centro etc. –, pois as posturas, ao menos quando claras, são tão “impuras”. O que aparece sempre é o velho discurso de “trabalhar para todos”, “acima das ideologias”, como se o “espírito” estivesse encarnado no coletivo e fosse possível cultivar o “espírito” sem tomar partido. Pois o que importa mesmo é afastar a “impureza” e os “impuros” – a eleição se converte assim numa Cruzada e os “puros” agem como os detentores da luz e da verdade, os porta-vozes da salvação. Tudo se resume estranhamente a uma questão meramente pessoal – a saber, se a pessoa a ocupar este ou aquele posto político está devidamente qualificada pela “pureza”. E os “impuros”... são sempre os outros. Os adversários. Os que já estão no poder. (Estranhamente conveniente, não?)

Como conseqüência, a vitória política dos “puros” nunca vai aparecer como a simples vitória de uns sobre outros. Será sempre uma manifestação celestial na terra. Será sempre a vitória dos céus, em relação à qual os “puros” não passam de instrumentos. Mas nenhuma entidade alada descerá à terra para ocupar pessoalmente cargo político algum. Nenhuma “pureza” garante coisa alguma além de, quem sabe, boas intenções – mas destas, como dizem, não são os céus que estão repletos. Que ninguém se engane: a única combinação possível entre política e pureza não é a dos políticos “puros”, é a dos puros políticos.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 02/11/2008]

terça-feira, 7 de outubro de 2008

[NJ] Sobre a crise econômica

SOBRE A CRISE ECONÔMICA

O senhor leitor ou a senhora leitora que, como eu, não é especialista em economia apreciaria, muito provavelmente, uma explicação esmiuçada, minimamente compreensível, do que é a crise que tem, a partir do EUA, abalado o mundo nos últimos dias. Isto, infelizmente, vou ficar devendo. Poderia, no máximo, como jurista, tentar explicar o que é uma hipoteca. Mas, ainda a esse respeito, não poderia dizer mais do que o pouco que lembro ter ouvido em alguma aula de direito civil, lá pelo terceiro ou quarto ano da faculdade. A hipoteca, para situar o leitor ou a leitora que também não é especialista em direito, não é comum entre nós. No mais, o jargão propriamente econômico é, no geral, para mim, estranho e não estou sequer minimamente habilitado a traduzi-lo.


Se não posso explicar exatamente o que é a crise, suas causas e conseqüências, posso, contudo, tratar do que a crise traz à tona. Não me atrevo a dizer que isso irá simplificar qualquer coisa e ajudar na compreensão. Pelo contrário, irá complicar ainda mais. Penso, porém, que poderá despertar algumas outras reflexões – reflexões que reputo relevantes.

A crise econômica, este evento cíclico do capitalismo, é, para usar uma analogia banal, um peculiar momento em que transparece muito claramente que o cobertor é menor do que a cama. Quem está por baixo, encolhido, é logo forçado a pôr os pés para fora, porque quem está de fora se apressa a procurar também o seu cantinho – e não há lugar para todos. A crise deixa a vista, portanto, aquilo que geralmente não aparece. Aquilo que não deveria aparecer. Quero destacar, a respeito do que a crise atual tem revelado, especificamente três pontos.

Primeiro. O liberalismo – agora o novo, como antes o velho – dá sinais bastante veementes de suas limitações e, talvez, de seu fracasso. O livre mercado, que deveria dar conta de todos os problemas do mundo, mostra agora exatamente para que lado conduz. Se muito, o mercado resolve os seus próprios problemas, que nada tem a ver com as necessidades e o bem-estar das pessoas de carne e osso. No entanto, deixado por sua própria conta, movimentando-se com as mínimas restrições possíveis, o mercado não apenas não resolve os problemas de ninguém como, volta e meia, cria problemas colossais para si mesmo. Isto não quer dizer, por um outro lado, que o intervencionismo estatal seria a verdadeira solução. A intervenção do Estado não subverte a “lógica” do capitalismo, portanto não acaba com as “negligências” do mercado – apenas põe-lhes um freio.

Segundo. A própria separação, essencial à sociedade capitalista, entre Estado e sociedade civil, pela qual o Estado deveria ser o lugar exclusivo do público, é seriamente sacudida. O domínio puramente privado da sociedade civil deveria ser privado precisamente em função da não-ingerência do público, do Estado. Mas quando os bancos privados ameaçam falir e o capital (que só pode ser) privado ameaça implodir, o Estado não hesita derramar rios de dinheiro que deveria ser público para salvá-los. O que realmente importa fica, então, evidente para todos os olhos. Isto que nós, juristas, chamamos de “bem comum”, “interesse público” etc. pode ser, na melhor das hipóteses, um “segundo plano” (nem isso, penso) – a continuidade do movimento do capital, em prol de interesses sumamente privados, é, nesta sociedade, o centro de gravidade de tudo, inclusive do Estado.

Terceiro. A loucura da especulação e do financismo – isto é, do capitalismo contemporâneo – transparece, finalmente, como uma autêntica loucura. É princípio elementar da economia, mas os próprios economistas parecem às vezes esquecer. Dinheiro não vira mais dinheiro sozinho. Uma soma x não se torna x+y pela pura flutuação financeira. A fluidez do capital, o seu movimento incessante, o paraíso da globalização criam, de fato, a ilusão de que deveria ocorrer uma multiplicação automática. Mas a multiplicação do capital só acontece através da injeção de trabalho vivo em trabalho morto, com a apropriação de trabalho não pago – na sujeira e na fumaça do chão da fábrica e não nos salões limpos e iluminados da bolsa e dos bancos. É o processo de exploração do trabalho que, em última instância, no fim da cadeia, sustenta toda a especulação. O resto é maquinação, maquiagem, cálculos financeiros que ninguém explica – numa palavra: bolha.

Pois bem... Quem apostou que a bolha poderia crescer indefinidamente errou...

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 05/10/2008]

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

[NJ] "Espíritos livres"

“ESPÍRITOS LIVRES”

“A solidão o cerca e o abraça, sempre mais ameaçadora, asfixiante, opressiva, terrível deusa e mater saeva cupidinum – mas quem sabe hoje o que é solidão?...”
– Friedrich Nietzsche

A respeito dos “espíritos livres”, o solitário Nietzsche diz que, quando deles precisou, foi forçado, não os tendo encontrado ao redor, a uma solução extrema: inventou-os. Nem todos, porém, podem ser um Nietzsche ou dispor assim de tanta imaginação. Nos tempos de hoje, muito menos – e, paradoxalmente – muito mais solitários, pergunto-me: há entre nós “espíritos livres” ou seria ainda necessário inventá-los?

Pode, de fato, soar ridículo falar em “espírito” e em “liberdade” no mundo contemporâneo – ainda mais para um crítico social radical que não acredita nem numa coisa nem noutra. É, no entanto, precisamente no contexto contemporâneo da total destruição da liberdade e precisamente para a crítica desta realidade que os procuro. Há ainda “espíritos” irresignados o bastante para buscar subverter as raízes deste mundo que faz resignar com brutalidade antes inimaginável? Há ainda homens e mulheres livres das determinações deste mundo, livres o bastante para se colocarem em ação para mudá-lo?

Cruel verdade parece ser que a desgraça da sociedade capitalista avançada não causa incômodo aos próprios desgraçados. A sociedade capitalista avançada cuida, afinal, de arrefecer os ânimos por todos os meios: compra a voz daqueles que ainda podem falar, ensurdece os ouvidos daqueles que ainda podem ouvir e emudece os mais miseravelmente subjugados – os que nada tem a perder. Quem ousa abrir a boca para criticar, para protestar, para clamar por mudança parece falar sempre sozinho – e espera, a seguir, os inevitáveis ovos e tomates daqueles que perderam não só a liberdade, mas o próprio espírito para o mundo cooptador e coisificador do capital.

O capital é, afinal, um dominador total. Submete os homens não apenas “por fora” – isto, aliás, não seria sequer uma “novidade histórica” –, mas também “por dentro”. O mundo do capital invade mesmo as profundezas do “eu”, padroniza os indivíduos como padroniza aquilo que sai das linhas produção, uniformiza a subjetividade como uniformiza as mercadorias face à loucura do consumo desenfreado. Que liberdade então? Que espírito? A derrota parece definitiva quando uma determinada organização social parece engendrar adequação por meio do esmagamento dos homens e parece reproduzir-se cada vez mais automaticamente. É como o moto-perpétuo: o fim do ciclo é sempre um recomeço e sempre um recomeço fortalecido.

Esta é, não por acaso, uma sociedade que se apresenta como sem saída. As portas parecem todas fechadas – só por isso, todos concluem que simplesmente não há alternativa. Porque as portas estão fechadas todos concluem, por um raciocínio absurdo qualquer, que não há nada por detrás delas. E se convencem de tal maneira que ninguém se dispõe a questionar a respeito. Eis o grande problema: dada a eficiência dissuasiva espantosa da sociedade do capital, parece que, ainda que as portas se escancarem, ninguém estará disposto a atravessá-las.

Mas há alternativa. Este mundo não será o mesmo para sempre – assim como não foi o mesmo desde sempre. A alternativa, no entanto, não se realizará sozinha. É preciso que existam homens dispostos a encampá-la, levá-la adiante, colocá-la em prática. É preciso que existam homens preparados para conduzir sua própria história adiante, com as próprias mãos. E é preciso que não sejam poucos. A vitória da alternativa será então, enfim, a plenificação dos “espíritos livres”, pois a nova sociedade já não será constrangedora de nossa liberdade. Antes, contudo, não devemos permitir-nos demover pelos obstáculos. Não importa que as portas da transformação social estejam fechadas – é possível ainda arrombá-las.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 06/09/2008]

terça-feira, 9 de setembro de 2008

[surtos e paranóias] O pensamento de Pachukanis

O PENSAMENTO DE PACHUKANIS

[Texto apresentado no Congresso Brasileiro de Marxismo e Direito,

em 30/08/2008, nas Faculdades Integradas Padre Albino, em Catanduva-SP.
V.: www.fundacaopadrealbino.org.br/direito/eventos/2008/30082008.html]

– Sobre Evgeni Pachukanis –
Evgeni Bronislavovitch Pachukanis nasceu em 23 de fevereiro de 1891 na Rússia (cidade de Staritsa, província de Tver), numa família de origem lituana. Iniciou seus estudos na Universidade de São Petersburgo e os completou na Universidade de Munique. Ainda estudante, tomou parte no movimento dos trabalhadores. Integrou o Partido Operário Social-Democrata Russo, alinhou-se à ala bolchevique, participou da Revolução de 1917 e integrou o Partido Comunista Russo desde 1918.
Em 1924, publicou sua mais importante obra: A teoria geral do direito e o marxismo (2ª ed. em 1926 e 3ª ed. em 1927). Despontou, a partir de então, como um dos principais juristas soviéticos – tendo ao seu lado, em especial, P. Stuchka e N. Krylenko. Nos anos seguintes, publicou outras importantes obras, como: Um exame da literatura sobre a teoria geral do direito e do Estado (1925), A teoria marxista do direito e a construção do socialismo (1927), O aparato de Estado soviético na luta contra o burocratismo (1929), Estado e regulação jurídica (1929), além de esboços de código penal, elaborados em conjunto com Krylenko entre 1927 e 1935.
A partir da década de 1930, com a ascensão de Stálin, o pensamento de Pachukanis torna-se altamente conflitante com a “linha oficial” da autoridade soviética. Pachukanis é então pressionado a rever, num processo de “autocorreção”, a sua teoria anterior. Pertencem a este período, entre outras, obras como: Teoria do Estado e do direito (1932), Curso de direito econômico soviético (1935) e Estado e direito no socialismo (1936). Pachukanis, no entanto, insiste, ainda por algum tempo, em vários dos pontos-chave de seu pensamento, acirrando a perseguição. Isto culmina, em 1937, com sua prisão (20/01), sua condenação como “inimigo do povo” (04/09) e sua morte. Andrei Vichinski assume então o posto de destaque na teoria jurídica soviética, recaindo nas concepções burguesas de direito que Pachukanis tanto procurou superar.
O pensamento de Pachukanis que virei a expor é, por razões evidentes, aquele anterior ao período dito de “autocorreção”, mais especificamente aquele d’A teoria geral do direito e o marxismo.

– Uma autêntica teoria marxista do direito –
Pachukanis inaugura, com a sua obra principal, uma autêntica teoria marxista do direito. Ao qualificá-la como “autêntica” não pretendo, porém, subestimar o pensamento marxista anterior acerca do direito, mas reconhecer a Pachukanis o devido mérito de ter empreendido uma análise do direito desenvolvida, com rigor antes inédito, a partir da estrutura teórica de Marx, levando a conclusões igualmente inéditas em sua radicalidade.
A teoria geral do direito e o marxismo apresenta, com efeito, não apenas uma abordagem que sonda e registra os poucos excertos em que Marx trata especificamente direito, tampouco uma abordagem que apenas acolhe na teoria do direito as conclusões de Marx num “outro campo” – o da economia –, mas uma teoria do direito que segue a trilha do pensamento de Marx em duplo sentido: desenvolve-se coerentemente quanto ao conteúdo da obra madura de Marx e é construída sobre a mesma estrutura de pensamento a partir da qual Marx construiu a crítica da economia política.
A construção teórica de Pachukanis é fundada no método dialético desenvolvido por Marx, em especial em O capital. Este desenvolvimento da dialética de Marx no campo do direito é um mérito quase unanimemente reconhecido a Pachukanis e, de fato, garante a sua teoria um potencial crítico ímpar, antes insondado. Talvez seja esta, aliás, a explicação para a longevidade da posição de destaque da obra de Pachukanis – hoje, quase 85 anos depois da publicação de sua obra primordial e mais de 70 anos depois de sua morte, estamos ainda discutindo e aprofundando suas conclusões.

– Método dialético e crítica do direito –
Seguindo as indicações de Marx, Pachukanis recusa tomar como ponto de partida de sua análise a totalidade abstrata. Marx mostrou que, a despeito de parecer mais “natural”, a análise da economia política não deveria começar, por exemplo, pela sociedade, mas por categorias mais simples – sendo a mais simples de todas a mercadoria – e, através de uma longa série de mediações, atingir a totalidade apenas como ponto de chegada, como síntese, portanto como totalidade concreta.
Pachukanis, por sua vez, não parte do direito como sistema de normas, como ordenamento coercitivo externo, enfim, não parte daquilo que, para o pensamento jurídico burguês, é a configuração “natural” e imediata do fenômeno jurídico. A visão tradicional reduz o direito a uma abstração inerte e indiferente, não reconhece a dinâmica das partes na constituição do todo, perdendo com isso a capacidade de compreender a especificidade da forma jurídica. A análise marxista deve então partir das categorias mais simples, para alcançar o direito como totalidade apenas ao fim, como ponto de chegada. Por isso Pachukanis busca a categoria que, na teoria do direito, deve fazer as vezes da mercadoria na teoria econômica – esta categoria deve ser o sujeito de direito.
Portanto, assim como Marx, Pachukanis não descarta as abstrações características do pensamento burguês. Não se trata de pura e simplesmente apontar (como faz o “sociologismo” jurídico) o caráter parcial, ideológico, enfim, falso, das figuras abstratas do direito – sujeito de direito, relação jurídica, contrato etc. –, face a uma realidade diversa que esconde por detrás delas. Cumpre saber como esta realidade diversa se manifesta e se esconde nas abstrações. A dialética não dispensa o abstrato: toma o abstrato e o supera, como etapa para o concreto.
No mais, ainda no que diz respeito ao método, Pachukanis também segue as indicações de Marx a respeito da historicidade das formas sociais. Marx mostra que é a partir da sociedade burguesa plenamente desenvolvida que se pode compreender as sociedades passadas e não o contrário: a anatomia do homem, em sua célebre analogia, é que explica a do macaco e não o inverso. Ora, Pachukanis não busca compreender o direito através de uma evolução histórica linear desde pretensas manifestações jurídicas antigas ou medievais até as manifestações jurídicas capitalistas. Pelo contrário, identifica o direito como forma social tipicamente capitalista: disso decorre que tudo aquilo que tradicionalmente se entende como “direito antigo” ou “direito feudal”, enfim, todo o direito dito pré-capitalista, é, na realidade, não mais do que embrião de direito e, no mesmo sentido, um pretenso direito pós-capitalista é um contra-senso.

– Direito, circulação e produção –
Ao refutar as abordagens tradicionais do direito – abordagens que operam “por gênero e diferença específica” –, Pachukanis refuta a redução do direito à norma ou a um conjunto de normas. A norma, embora categoria central para o positivismo dominante na teoria jurídica, efetivamente nada ou praticamente nada diz a respeito do direito – é um comando externo, neutro, impessoal, mas não revela quais as bases sociais e históricas específicas do direito.
A explicação para o direito não reside naquilo que juristas identificam como o plano do “dever-ser”, mas ainda no plano do “ser” social. Não é a partir do comando externo que o jurídico se define, mas a partir da forma de uma específica relação social: a relação de troca de mercadorias. É para esta relação, como aponta Marx, que o homem, como portador das coisas a serem trocadas, constitui-se em sujeito de direito. É, portanto, a forma subjetiva de uma relação que, em seu aspecto objetivo, passa-se entre mercadorias, que constitui a forma jurídica – quero dizer, a relação subjetiva de troca mercantil já se expressa juridicamente antes da incidência (ou mesmo existência) de qualquer norma de direito, pois é a forma desta relação, segundo Pachukanis, que estabelece a forma jurídica socialmente dominante das relações sociais capitalistas.
O aspecto determinante para a compreensão do direito não é, portanto, a coerção, a sanção, a normatividade, mas a forma atômica da relação entre sujeitos que portam mercadorias para a troca – “proprietários abstratos e transpostos para as nuvens”, como diz Pachukanis. Uma determinada relação social pode ser dita uma relação jurídica, então, a partir do momento em que se passa sob a forma subjetiva da relação de troca, isto é, a partir do momento em que se passa como uma relação entre sujeitos de direito. A norma, o “dever-ser”, é apenas um momento posterior: é apenas algo que se apropria da forma jurídica e procura desenvolvê-la como que num “outro” plano, mas a juridicidade das relações não se dá pela incidência normativa e sim pela assimilação da forma nascida especificamente da relação social de troca mercantil.
Por isso o assim chamado direito objetivo figura como secundário face aos direitos subjetivos: é a relação entre sujeitos de direito que importa, antes de qualquer manifestação jurídica objetivada sob a forma de norma jurídica. E, por razões semelhantes, também o assim chamado “direito público” tem caráter secundário face ao direito privado: mesmo as relações de direito público tem sua forma derivada da relação privada de troca mercantil e podem surgir apenas a partir do momento em que o Estado passa a se relacionar com os indivíduos da sociedade civil como um sujeito de direito.
Pois bem, se a forma jurídica surge especificamente da relação de troca de mercadorias, esta, por sua vez, desenvolve-se plenamente apenas sob o influxo de uma específica organização social da produção. A troca de mercadorias, como sabemos, atinge plena generalidade apenas com o desenvolvimento da produção capitalista – na exata medida em que a produção capitalista torna o próprio trabalho humano mercadoria, sob a forma de trabalho abstrato, e se passa ela própria como troca entre a mercadoria força de trabalho e a mercadoria salário. Assim, Pachukanis pensa o direito como forma diretamente determinada pela esfera da circulação mercantil, mas determinada em última instância pela produção. Ressalte-se: não se trata de um circulacionismo jurídico – a própria circulação mercantil generalizada não pode ser pensada senão em função da produção capitalista.
Isto está claro já na categoria fundamental de toda a teoria jurídica. O sujeito de direito, embora constituído diretamente para a circulação mercantil, manifesta-se, em última instância, como uma determinação das relações sociais de produção. É como guardião das mercadorias que o homem se torna um sujeito de direito, mas é também para que se torne ele mesmo uma mercadoria: é como sujeito de direito que o homem pode vender sua força de trabalho a um outro sujeito de direito, que a compra por seu valor. O homem-sujeito leva a si mesmo como homem-objeto ao mercado. É esta operação fundamental que, em última instância, determina toda a forma jurídica.

– Direito e transformação social –
Visto que a forma jurídica alcança seu pleno desenvolvimento apenas com a generalização da circulação mercantil, portanto apenas no específico contexto social determinado pela produção capitalista, fica evidente que a forma jurídica está indissociavelmente ligada a esta formação social produtiva. Os limites históricos objetivos da forma jurídica são aqueles da sociedade burguesa: não houve senão embriões de direito antes e não haverá direito após a superação do capitalismo.
O que, em suma, Pachukanis estabelece é uma negativa veemente da possibilidade de um “direito socialista”, ou seja, da possibilidade de edificação do socialismo a partir do direito. A forma jurídica é uma forma intrinsecamente capitalista: a sociedade socialista, portanto, ou supera a forma jurídica ou não se constitui como autenticamente socialista. A forma jurídica supõe uma produção atomizada, supõe trabalho humano reduzido a trabalho abstrato, supõe o império do valor – tudo que o socialismo deve deixar para trás ao ultrapassar o “estreito horizonte” da sociedade burguesa.
Quando, no entanto, Stálin ascende ao poder, consolida-se a linha de “reforço do direito e do Estado”, pela qual se propunha utilizar o aparelho estatal e o aparelho jurídico como instrumentos de consolidação do socialismo. Compreendem-se, então, as razões para a execução de Pachukanis: seu pensamento é frontalmente contrário a tudo que Stálin – e Vichinski, seu “braço direito” no campo do direito – representou. Os resultados disso para a história do socialismo soviético, porém, são amplamente conhecidos.

– Conclusões –
Como conclusão, devo insistir que Pachukanis propõe a mais radical dentre as críticas marxistas do direito – mas também a mais rigorosa ao próprio marxismo. Seu pensamento limita severamente as possibilidades de utilização do direito como instrumento para a transformação social – tal utilização não é por completo anulada, mas em nenhum caso ultrapassará os limites da ordem social capitalista. Quero dizer, jamais se poderá propor um “outro” direito para uma “outra” sociedade – a manutenção do direito é inevitavelmente a manutenção do capitalismo, portanto de todas as mazelas intrínsecas ao capitalismo.
Eis um panorama, não há dúvida, pouco animador para os juristas. O jurista marxista deve, paradoxalmente, empenhar-se em fazer deixar para trás o seu objeto, a sua especialidade, em nome de uma sociedade em que o direito não subsiste e não é necessário. Há notícias de que, na década de 1920, não por acaso, o interesse dos estudantes soviéticos pelos cursos jurídicos caiu drasticamente. Ser jurista e marxista ao mesmo tempo é uma árdua tarefa, exige certa coragem necessária a manter um auto-sacrifício permanente – somos, talvez por isso mesmo, tão poucos...
Penso ser o sacrifício do próprio Pachukanis particularmente ilustrativo a esse respeito. Como afirma Bernard Edelman, numa passagem d’O direito captado pela fotografia, nós, marxistas, ao invés de nos empenharmos em ocupar nosso espaço entre as várias teorias do direito, preferimos, antes, eliminar uns aos outros. Este congresso, no entanto, prova uma disposição contrária. Estamos todos aqui unidos em defesa do pensamento jurídico marxista. Faço votos de que essa união seja permanente. Faço votos de que, através de nossa união, o marxismo jurídico brasileiro saia fortalecido.

– Bibliografia –
EDELMAN, Bernard, O direito captado pela fotografia – elementos para uma teoria marxista do direito, Coimbra, Centelha, 1976.
MARX, Karl, Introdução [à crítica da economia política], in J. A. Giannotti, (org.), Manuscritos econômicos filosóficos e outros textos escolhidos, 2ª ed., São Paulo, Abril Cultural, 1978, pp. 103-125.
______, O capital – crítica da economia política, 5 vols., São Paulo, Nova Cultural, 1988.
NAVES, Márcio Bilharinho, Marxismo e direito – um estudo sobre Pachukanis, São Paulo, Boitempo, 2000.
PASUKANIS, Evgeny B., A teoria geral do direito e o marxismo, Rio de Janeiro, Renovar, 1989.
SHARLET, Robert – BIERNE, Piers (orgs.), Pashukanis – selected writings on marxism and law, Londres, Academic Press, 1980.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

[jabá] Congresso Brasileiro de Marxismo e Direito

CONGRESSO BRASILEIRO DE MARXISMO E DIREITO

Fundação Padre Albino
Catanduva-SP, 30 de agosto de 2008


PROGRAMAÇÃO
Conferências magnas
9h00 –
Panorama do marxismo jurídico e suas perspectivas no século XXI
Prof. Dr. Alysson Leandro Mascaro

9h40 –
O direito no pensamento de Karl Marx
Prof. Dr. Márcio Bilharinho Naves

Debates
10h40 – Marxismo e direito: democracia, cidadania e revolução
Prof. Ms. Camilo Onoda Caldas

11h10 – O marxismo jurídico soviético
O debate sobre o socialismo jurídico - Prof. Ms. Adriano Assis Ferreira
O pensamento de Pachukanis - Prof. Celso Kashiura Júnior

14h00 – O direito no “marxismo ocidental”
Direito, filosofia e método - Prof. Ms. Silvio Luiz de Almeida
O marxismo jurídico italiano - Prof. Vinícius Magalhães Pinheiro

14h50 – O direito na Escola de Frankfurt
Adorno e Benjamin - Prof. Walter Andrade
Marcuse - Prof. Joelton Nascimento

15h40 – Tendências recentes do marxismo jurídico
O pensamento de Edelman - Profª Alessandra Devulski da Silva
O pensamento de Zizek - Prof. Marcelo Grillo

16h20 – Lançamento de livros, coquetel e sessão de autógrafos:
Crítica da Legalidade e do Direito – 2ª edição - Ed. Quartier Latin - Alysson Leandro Mascaro
Marx: Ciência e Revolução – 2ª edição - Ed. Quartier Latin - Márcio Bilharinho Naves
Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis – 2ª edição - Ed. Boitempo - Márcio Bilharinho Naves

Inscrições gratuitas até 28/08/2008 pelo telefone (17) 3522-2405 ou pelo e-mail secretaria.faeca@fipa.com.br

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

[NJ] Política e consumismo

POLÍTICA E CONSUMISMO

“Por quê?” – eis uma pergunta que ninguém se faz. Quando se assiste ao telejornal e se ouve censurar a corrupção, o “lobby”, o tráfico de influência ou qualquer outro tipo de interferência de interesses privados no exercício do poder público, a tendência é interpretar a barreira entre privado e público como algo “natural”. Por que o privado não pode interferir no público? Por que o privado se distingue do público? Ora, de “natural” a distinção não tem nada. Fosse “natural”, a sociedade moderna – a nossa sociedade, a sociedade capitalista – não seria a única formação social e histórica a conceber a distinção entre particular e geral, entre individual e coletivo, nos termos da dicotomia privado vs. público. Nenhuma sociedade historicamente anterior chegou a tanto.

Já aqui alguém poderá objetar que vem dos antigos romanos a idéia de res publica, coisa pública, que acabou dando nome a uma forma de governo. E é verdade. Mas isto apenas indica que os antigos romanos chegaram a diferenciar, a seu modo, coisa pública de coisa privada. Na sociedade moderna, privado e público não apenas se diferenciam – opõem-se. Nem os antigos, nem os medievais chegaram tão longe. Apenas a nossa sociedade se erige sobre a oposição, como que em “corpos” diversos, isolados um do outro, entre o puramente privado e o puramente público – estes “corpos” são, respectivamente, a sociedade civil e o Estado.

A questão é que, a despeito da oposição, deve haver “passagem” da sociedade civil ao Estado (e vice-versa), “passagem” que é dada sobretudo através do peculiar mecanismo das eleições. As eleições, como se sabe, funcionam como um recenseamento de vontades individuais, de modo a formar a vontade coletiva, a “vontade” do Estado. Sua peculiaridade é que, ao votar, os indivíduos da sociedade civil não se comportam como tais, mas como cidadãos. A sociedade civil é o lugar do interesse privado, mas os indivíduos, nas eleições, não manifestam – ou não deveriam manifestar – suas vontades egoístas, escolhendo o que é melhor para cada um isoladamente. Como cidadãos, os indivíduos se tornam não mais seres isolados e egoístas, mas partícipes do Estado e altruístas – nesta qualidade, devem manifestar sua vontade voltada ao público, escolhendo o que é melhor para o coletivo.

A fictícia, por assim dizer, “divisão” de um só e mesmo homem em ora indivíduo egoísta, ora cidadão altruísta, é evidente, não funciona tão bem quanto planejado. A transmutação do indivíduo em cidadão não é suficiente para apagar a sua existência como um membro da sociedade civil. Mais ainda, o procedimento (público) das eleições se fundamenta, em última instância, no mesmo voluntarismo e no mesmo individualismo que fundamentam a infinita rede de relações econômicas (privadas) da sociedade civil: as eleições se estruturam sobre uma circulação de vontades individuais, tanto quanto a circulação de mercadorias. No fim das contas, o modelo do mercado, que é sumamente privado, é lastro para a formação da vontade coletiva, que é sumamente pública.

Privado e público têm, portanto, uma relação dialética: quanto mais radicalmente separados, mais profundamente ligados. Um não pode ser senão pelo outro. Tanto é que os mesmos “exageros” contemporâneos verificados no mercado, a esfera do privado, acabam por se manifestar de algum modo também na política, a esfera do público. Se, no mercado, vivemos a era do consumismo obsessivo, alimentado pelo crescente poder social da publicidade; na política, de modo semelhante, vivemos uma espécie de “consumismo eleitoral”, igualmente alimentado pela publicidade. E mais, as estratégias de publicidade que fomentam o “consumismo eleitoral” são muito semelhantes às que fomentam o consumo desenfreado de mercadorias.

Um candidato já não é hoje propriamente votado, é “consumido”. O consumo é igualmente efêmero em ambos os casos: a mercadoria consumida proporciona uma satisfação instantânea e falsa, o voto impensado mal chega a satisfazer qualquer coisa – e até o nome do candidato será esquecido dias depois. Como aquilo que ontem foi inútil e hoje se torna necessidade premente, o candidato que até ontem não preenchia as expectativas políticas dos eleitores acaba, hoje, pela propaganda eleitoral, transformado no único que atende às expectativas – não necessariamente políticas – de toda uma fatia do eleitorado. A propaganda faz vender praticamente qualquer coisa. No mercado de homens em que se converteram as eleições, um bom “investimento” em propaganda faz eleger praticamente qualquer um.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 10/08/2008]

segunda-feira, 21 de julho de 2008

[jabá] Crônicas da vida (pós)moderna

CRÔNICAS DA VIDA (PÓS)MODERNA

Lançamento do livro Crônicas da vida (pós)moderna, obra coletiva dos alunos da disciplina "Ética, direito e pós-modernidade", ministrada na Faculdade de Direito da USP pelo prof. Eduardo C. B. Bittar em 2006.

Quando: 17 de agosto de 2008
Onde: Bienal do Livro de São Paulo (Anhembi), no estande da Editora Litteris

Inclui os textos:
Crônica dos Tempos - Eduardo Bittar
Vantagens Exclusivas - Flávio Batista
Boa Noite, Cinderela! - Franco de Castro
As Viagens de Noriyuki - Celso Kashiura Jr.
Proteja seus Filhos! - Nivaldo Dóro Jr.
A Mulher do Futuro - Luísa Helena
Pensando sobre o Tempo - Rosimeire Ventura
Sociedade da Ansiedade - Nivaldo Dóro Jr.
Vende-se um Líder - Marcos Braga e Wilson Levy
Dr. Hermes - Evandro Pontes
De Volta à Granja do Solar - Celso Kashiura Jr.
A Solidão da Metrópole - Pedro Albuquerque
- Fabio Antunes
Você Não Está Sozinho - Vitor Blotta

quarta-feira, 9 de julho de 2008

[NJ] Consumo e... solidariedade?

CONSUMO E... SOLIDARIEDADE?

Quem consome, consome para si – o consumo de um (ou de alguns) exclui o consumo de todos os demais. Parece, à primeira vista, não ser possível existir algo mais egoísta do que o consumo. Esta, no entanto, é uma visão parcial. Considerado o processo econômico por inteiro, o consumo é o ato final de uma longa série. Todo a cadeia de produção, que capta trabalho humano e materializa em coisas que se destinam ao mercado, de nada serve sem que as coisas produzidas sejam, ao fim, consumidas. O consumo individual se torna possível tão-somente por meio da ação de inúmeros homens – homens que trabalham, que produzem as coisas a serem consumidas e que, através de seus trabalhos, adquirem os meios para que possam eles mesmos consumir.

Na realidade, o consumo, o mesmo consumo que individualiza e exclui a fruição dos demais, é social e inclui toda uma rede de relações entre os homens. Mas este caráter social não pode ser exagerado nem confundido com bem-estar social. E exagero e confusão parecem ser precisamente os equívocos da tendência que, nos últimos tempos, tem propugnado a possibilidade um “consumo solidário”, isto é, a “domesticação” do egoísmo e a instrumentalização do consumo para a “solidariedade”.

Se é verdade que o consumo exige e realiza a socialidade dos homens, isto não quer dizer que tal socialidade reverta em favor dos próprios homens. O ato de consumir só pode ocorrer numa rede de relações sociais, mas a sociedade a que tais relações correspondem é uma sociedade que domina os homens ao invés de ser por eles dominada. O consumo é a derradeira e indispensável etapa do ciclo de valorização do valor, é o meio pelo qual o trabalho não-pago incorporado em mercadorias se torna incremento do capital – o consumo é, portanto, a realização do movimento essencialmente coisificador e degradante da grande “máquina” do capitalismo.

Não há dúvida: qualquer iniciativa que vise levantar oposição à febre consumista contemporânea é bem-vinda. Criar alternativas ao consumo cego e desmedido e buscar consumir menos, radicalmente menos, são propostas muito interessantes. Não é razoável, porém, supor que por tais meios alguma mudança social efetiva será alcançada. No fim das contas, os alimentos orgânicos, o papel reciclado, o carro que polui X% menos e tudo mais que carrega o rótulo de “sustentável”, “ecologicamente correto” ou “socialmente solidário” só faz incentivar o consumo ao invés de refreá-lo. A percepção de que os recursos naturais têm fim, por exemplo, não leva necessariamente à desaceleração da economia, mas, por paradoxal que pareça, gera uma série de novos nichos de mercado para mercadorias que dizem ser produzidas com respeito ao meio ambiente. A “solidariedade” parece ter muito mais a ver com o marketing do que com qualquer melhora na vida de qualquer homem concreto.

Uma vez que o acesso a todos os bens elementares para a sobrevivência só pode ser dado pelo consumo (a não ser que alguém plante a própria comida no quintal de casa, o que é cada vez menos imaginável nos dias de hoje), a nenhum de nós é dada a opção de não consumir. Mas se não consumir não é uma opção, o “consumir com moderação”, por outro lado, apenas limita os efeitos deletérios do consumo desenfreado, sem com isso atingir a causa mesma. Pelo contrário, a idéia de um “consumo consciente” propõe a afirmação da estrutura social dada como forma de oposição a ela, algo como jogar de acordo com as regras como forma de oposição ao próprio jogo. Mesmo sem os apelos publicitários, mesmo sem a compra compulsiva, mesmo sem a perda do senso do banal e do efêmero, ainda assim o consumo é parte de uma organização social desumanizadora e, portanto, é desumanizador.

O limite da “consciência” e da “solidariedade” do consumo é precisamente o fluxo ininterrupto do consumo, que é indispensável à multiplicação do capital. A única “solidariedade” que o consumo pode realizar é, portanto, a “solidariedade” do capitalismo – que não é outra coisa senão a extrema anti-solidariedade. Por isso, para toda e qualquer crítica social que se leve a sério, a aposta no “consumo solidário” é como um tiro no próprio pé.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 06/07/2008]

quarta-feira, 18 de junho de 2008

[NJ] Saitamakenjin no Brasil

SAITAMAKENJIN NO BRASIL

Já há um ano e meio ocupo mensalmente este espaço do Diário Novo Jornal, que procuro preencher com discussões filosóficas, políticas e, eventualmente, jurídicas que considero relevantes. É a maneira que encontro de contribuir – ainda que tímida e superficialmente – para a reflexão acerca dos tão graves problemas da sociedade contemporânea, problemas de que me ocupo como teórico. Hoje, no entanto, em função das comemorações pelo centenário da imigração japonesa, proponho algo diferente. Quero deixar as abstrações de lado. O espaço do jornal inteiro não seria suficiente e, de qualquer modo, meus conhecimentos não bastariam, se propusesse remontar em abstrato esses cem anos. Não sou bom contador de histórias, mas vou contar a trajetória de um homem específico, que nada tem de especial, mas que para mim representa a história de todos os imigrantes.

Massaki Murata nasceu em 1896, em Saitama-ken, província da região Kanto, área central do Japão. Não era o filho mais velho, o chōnan, portanto não seria sua, segundo a tradição japonesa, a responsabilidade principal por levar adiante o nome da família – mas seria seu destino tornar-se o patriarca de uma nova família, do outro lado do mundo. Deve ter vivido os anos de sua juventude como vivia um japonês comum da área rural entre o final do séc. XIX e o início do séc. XX: destacou-se por ter estudado mais tempo do que era usual à época (o que lhe garantiu domínio acima do comum sobre o complicado idioma japonês) e por ter servido o exército imperial, como membro da infantaria (embora digam que se tratava de um péssimo atirador).

Casou-se duas vezes. Primeiro, com a filha única de uma família prestes a se extinguir. Em função disso, foi Massaki que adotou o sobrenome da esposa e não o contrário. Mas este casamento durou pouco: a esposa morreu precocemente, sem que tivessem chegado a ter filhos. Massaki então se casou com Ai. Foi com ela e os três filhos nascidos até então (três outros nasceriam mais tarde) que Massaki emigrou para o Brasil em 1932. Reza a lenda que a decisão de emigrar foi fundada na iminência da guerra. Mas é provável que, como para todos os outros, fatores econômicos e a propaganda oficial do governo japonês também tenham sido determinantes.

No Brasil, o trajeto da família de Massaki começa no Pará. Nem todos sabem, o Pará foi o segundo grande pólo da imigração japonesa, atrás apenas de São Paulo. Mas é difícil imaginar o que foi para um japonês, acostumado ao clima e à realidade sócio-econômica de seu país, ver-se rodeado pela floresta, em meio a um clima úmido e escaldante, sujeito a doenças tropicais e longe de tudo (comunicação, transporte, medicamentos, hospitais etc.). Os imigrantes japoneses na região amazônica chegaram a se dizer num “inferno verde”. Foi lá, primeiro em Acará e depois, fugindo da malária, em Capanema, que Massaki e a família habitaram até 1939.

Em 1940, a família se desloca para São Paulo, mais especificamente para Rancharia, em busca do então lucrativo cultivo do algodão. Entre 1943 e 1948, residiram em Bastos. Estavam, portanto, no “olho do furacão” durante a 2ª Guerra Mundial e no período imediatamente subseqüente. Bastos, que era a maior concentração de japoneses fora do Japão, sentiu profundamente as conseqüências do período mais obscuro da discriminação antinipônica no Brasil. E foi precisamente em Bastos que teve início o terror das disputas internas da colônia, encabeçadas pela organização Shindo Renmei, que culminaram numa série de assassinatos entre 1946 e 1947.

Massaki e a família passaram ainda por Parapuã, Monteiro Lobato e, finalmente, Dracena. Mencionei que Massaki adotou o sobrenome da primeira esposa – e este era Kashiura. Como a mãe de todos os seus filhos foi Ai, a segunda esposa, os Kashiura do Brasil não têm parentesco, ao menos genético, com qualquer Kashiura que ainda possa existir no Japão. Massaki, que paradoxalmente não nasceu um Kashiura, é o fundador da família. E não é uma família qualquer. Disse que não sou um bom contador de histórias, por isso acabo de contar-lhes a minha própria. Massaki é pai de Kinoe, Shoichi, Mitsuo, Miyako, Shiro e Yoshio. Shoichi, que os leitores talvez conheçam das feiras livres na Avenida Rui Barbosa, é pai de Osvaldo Takeharu e de Celso Naoto. E Celso, como o nome denuncia, é meu pai. Sequer conheci meu bisavô, que morreu em 1977, mas sou herdeiro da tradição que acabo de relatar – assim como o Brasil é herdeiro, já há cem anos, das tradições trazidas pelos japoneses. É nesta condição, de bisneto brasileiro de um imigrante japonês, que escrevo. E, por Massaki Kashiura, em nome do clã Kashiura, quero dizer a todos os imigrantes japoneses e aos seus descendentes – banzai!

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 18/06/2008]

quarta-feira, 7 de maio de 2008

[NJ] Sociedade atômica e tecnologia do isolamento

SOCIEDADE ATÔMICA E TECNOLOGIA DO ISOLAMENTO

Children of tomorrow live in the tears that fall today.
Will the sunrise of tomorrow bring them peace in any way?
Black Sabbath em Children of the Grave

Indivíduos isolados, “soltos e solteiros”, independentes uns dos outros – esta é a estrutura social correspondente à estrutura econômica plenamente desenvolvida do modo capitalista de produção. Uma sociedade, por assim dizer, “atômica” é a única na qual o capital pode imperar como força incontrastável e, portanto, é aquela que o império do capital demanda. Não por acaso, o início histórico do capitalismo deu-se em concomitância com a destruição de toda espécie de agrupamento “molecular”: os estamentos, as relações pessoais feudais, as corporações de ofício e, em grande medida, a família.

Para que o indivíduo pudesse se apresentar como “átomo” no mercado, foi preciso que o papel de mediadora social da família fosse destruído. Se entre os antigos alguém só se integrava à sociedade como membro de uma família ou de um clã, entre nós cada um é antes membro da sociedade e se relaciona com os familiares de modo apenas um pouco menos acidental do que com qualquer outro indivíduo. Talvez a família só não tenha sido tragada por completo pelo turbilhão dos novos tempos porque é um meio ainda não dispensável de transmissão da propriedade.

É óbvio que tal desqualificação da família não ocorreu de modo imediato e indolor. O isolamento do indivíduo passa, por um lado, pela “libertação” do domínio familiar. E, nesse sentido, foi demorada e penosa a imposição aos pais do dever de criar os filhos não para si próprios, mas para a sociedade. Por outro lado, o isolamento individual também faz surgir um certo desamparo pelo estar “sozinho no mundo”, o que exige que o indivíduo seja preparado ou “educado” para tanto. Este duplo aspecto já basta para fazer imaginar o quão longo e complexo foi processo de dissolução dos laços familiares tradicionais, que culminou na redução da pertença a uma família à mera posse de um sobrenome.

Este processo foi, não há dúvida, grandemente acelerado pela introdução do rádio e, em seguida, da televisão nas residências familiares. Por paradoxal que pareça, nada isola com eficiência comparável à da autroproclamada tecnologia da aproximação, isto é, a tecnologia dos meios de comunicação. Os membros da família, sentados todos juntos no sofá da sala, assistindo ao telejornal ou à novela, estão, na verdade, todos isolados. Não há diálogo, não há interação, a única relação imaginável é aquela entre cada indivíduo e a transmissão da televisão. Deste modo, todas as gerações subseqüentes à introdução da transmissão radiofônica foram “educadas” de modo muito mais sutil e eficiente para o isolamento.

O que dizer, então, das gerações mais recentes, que conheceram o espetáculo do desenvolvimento da tecnologia da comunicação? Se o rádio e a televisão contribuem para o isolamento, o que dizer dos telefones celulares, do computador, da internet? Hoje é possível manter contato com quem quer que seja, em qualquer parte do mundo, de modo instantâneo, mas é também possível não encontrar ninguém de carne e osso. A tecnologia que pretende aproximar permite, na verdade, que os indivíduos se mantenham distantes. As crianças já não se reúnem para brincar, pois dispõem de meios mais “interessantes” e seguros de diversão, fechadas em casa, sozinhas com o videogame. Os adolescentes encontram na internet e no celular os meios de estabelecer relações que já nascem fundadas na impessoalidade. E mesmo os contatos profissionais dos adultos, resolvidos todos por e-mail, permitem a despersonalização do trabalho que, antes, ao menos exigia interação.

O passo seguinte na lógica atômica da sociedade capitalista tende a ser a destruição de todo e qualquer vínculo que não seja meramente passageiro e ocasional – e aqui o modelo supremo, diga-se, é o vínculo da relação de troca de mercadorias. É para este futuro pouco animador que as gerações de hoje parecem estar sendo preparadas.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP 04/05/2008]

quarta-feira, 9 de abril de 2008

[NJ] O lugar da filosofia hoje

O LUGAR DA FILOSOFIA HOJE

“À consciência ingênua a filosofia aparece como o mundo subvertido, e com razão: a filosofia subverte ‘efetivamente’ o seu mundo.”
– Karel Kosik

O mundo contemporâneo exige do conhecimento de si próprio sempre mais certeza, sempre mais clareza, sempre mais definitividade. Certeza, clareza e definitividade porque este é, afinal, um mundo submetido ao econômico – e a economia capitalista é o domínio do risco calculado, portanto quer de todo o conhecimento, acima de tudo, calculabilidade. E isso mesmo diante do fato de que as relações entre os homens são tudo menos certas, claras e definitivas, quero dizer, tudo menos calculáveis.

Não é de causar espanto, portanto, que as diversas “ciências”, rendidas mais ou menos diretamente às exigências da economia, sejam todas reféns da esfera do dado, tanto mais quanto mais submetidas a cânones metodológicos restritivos e empíricos. Elas se limitam a racionalizar o que é, visam produzir conhecimentos que permitam o melhor “funcionamento” da sociedade atual e, mais ainda, deixaram-se dominar por diretivas organizacionais e metas de produtividade derivadas daquelas já aplicadas à indústria. Sob o signo sagrado do número, o inquestionável máximo para o homem moderno, a “ciência” se reduziu a mero instrumento.

Em tal contexto, a filosofia caminha na contramão. Ela não respeita a exigência de utilidade para suas conclusões e não se submete à mera verificabilidade de hipóteses como método. A filosofia é, portanto, o conhecimento que tem a seu favor a possibilidade de ultrapassar o dado. É por isso que a filosofia engendra abalos constantes no pensamento acomodado e reinante, dissolvendo a aparente solidez do lógico, do evidente, do óbvio. Duvidar de tudo – ou, mais precisamente, questionar-se a respeito de tudo – é a força motriz do pensamento filosófico.

Quem duvida da composição atômica da água? Quem duvida das leis do movimento dos corpos? Quem duvida da órbita elíptica dos planetas? Mas quem duvida da estatística que dá conta do crescimento ou retração da economia – e que ignora realidade assombrosa da exploração e da miséria? Quem duvida da universalidade do direito – sem dar conta dos enormes contingentes simplesmente excluídos do domínio da lei? Quem duvida da publicidade do Estado – mesmo quando são os interesses privados que predominam?

A física e a química, por exemplo, lograram desmistificar os fenômenos naturais, a ponto de hoje quase nada ou nada restar que não tenha uma explicação “científica” e que não possa, por uma fórmula qualquer, ser calculado com grande precisão. Quando, no entanto, se passa do âmbito do natural para o âmbito do social – no qual o efeito dos interesses em choque, das contradições, das transformações sucessivas, enfim, da história, se faz sentir com toda a força – a limitação da “ciência” ao existente se mostra, no fundo, como uma apologia do existente, ou seja, como ratificação do conjunto de relações sociais dominantes num dado momento.

Contra a atitude “científica” de iluminar a superfície do existente, a filosofia propõe investigar o que não se deixa iluminar e o que não exsurge na superfície. Isto especialmente se o pensamento filosófico não se limita a interpretar o mundo do qual faz parte, mas visa a transformação social – em outras palavras, se se trata de uma filosofia crítica. Nesse caso, ao invés da restrição ao que é, coloca-se o compromisso com o que ainda não é; ao invés da mera descrição e sistematização do que já existe, coloca-se a revelação do possível e o encaminhamento na direção do novo.

Quem anseia por certeza contribui, talvez inconscientemente, para a perpetuação do que está dado. A tranqüilidade de um espírito livre de questionamentos é paga com resignação diante de uma sociedade que continuamente nos desumaniza. Quem duvida da imutabilidade dessa estrutura social? Ora, a filosofia crítica. E com a intranqüilidade das dúvidas abre as portas para um pensamento que se recusa a capitular.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 06/04/2008]

quarta-feira, 5 de março de 2008

[NJ] Carne, osso e plástico

CARNE, OSSO E PLÁSTICO

“Os traços radicalmente individuais e irredutíveis de uma pessoa são sempre duas coisas num só: o que não foi totalmente capturado pelo sistema dominante e sobrevive para sorte nossa e as marcas da mutilação que o sistema inflige em seus membros.”
– Theodor Adorno & Max Horkheimer

Ir a um shopping center, opção cada vez mais corriqueira de lazer confortável e seguro para os moradores de grandes cidades, pode ser também um exercício de sensibilidade ao horror da degradação humana engendrado pelo consumismo sem freios – horror oculto sob o encanto sedutor da moda e sob a beleza plástica da propaganda. E digo “exercício de sensibilidade” precisamente porque perceber o horror latente naquilo que é propagandeado e vendido como o que há de mais belo, agradável e necessário (no sentido de “ninguém pode mais viver sem isso”) exige, sem dúvida, a sublime perspicácia de captar a realidade para além da superfície.

Dia desses, era um domingo, tive oportunidade de me exercitar. Reparei que as lojas têm nas vitrines manequins não mais somente de plástico bege, mas agora dotados de cor, cabelo, maquiagem, expressão etc. Uma nova, ou talvez nem tão nova assim, técnica de publicidade, não há dúvida. Eram vários, de diferentes aparências, cada uma correspondente a um dos “estilos” pré-formados e postos à escolha do consumidor – o “moderninho”, o “emo”, o “surfista”, o “rebelde” (sim, pois até o “rebelde” se tornou pasteurizado, enlatado e comercializado em larga escala). Minha surpresa foi perceber que muitas vezes já tinha visto por aí cada um daqueles manequins humanizados, aquele plástico em forma de gente, andando pelas ruas, em todos os lugares, transmutado em gente de plástico.

Os manequins imitam as pessoas, ao parecerem humanizados, ou as pessoas imitam os manequins, em sacrifício de sua humanidade? Esta segunda alternativa é, hoje, assustadoramente dominante. O mercado cria padrões, modelos e ideais e os impõe a um público cada vez menos capaz de resistir, cada vez mais refém e mais indefeso. Enquanto o consumidor imagina que os bens que consome satisfazem suas necessidades e externam sua personalidade, o que se passa, na realidade, é que o mercado que oferece tais bens é que está criando as necessidades e, em última instância, também a personalidade que o consumidor julga sua, própria e autêntica. Noutras palavras, o consumidor imagina preencher seu lugar no mundo através dos bens oferecidos pelo mercado, mas é o mercado que, previamente, cria o lugar no mundo que o consumidor deve ocupar.

O consumo – incluído aqui o ato de consumir tanto quanto a ostentação do consumo, a realização pelo consumo, os paraísos do consumo, enfim, a vida orientada pelo “ter” – é um mutilador. Quantos jovens não têm como modelo de vida a imagem glamurizada do ícone do esporte, da moda ou da mídia que a publicidade torna exemplar? Quantos não acabam cegos pelo desejo pela quinquilharia mais recente, que daqui a poucos dias estará totalmente ultrapassada ou fora de moda e será substituída por outra? Quantas adolescentes não aspiram – e conseguem – tornar-se exatamente como os manequins nas vitrines dos shopping centers? Ao conformarem suas aparências às dos manequins, conformam, sem saber, muito mais: como os manequins, tornam-se não mais do que pedaços de matéria inerte revestidos com aquilo que, num dado instante, é o que há de mais precioso no mundo do fetiche da mercadoria.

A destruição da humanidade pela imposição do mercado, a realização do indivíduo tornada mercadoria, a diversidade individual reduzida à diversidade de produtos na prateleira, o consumismo como derrota do autêntico – do horror deve brotar a resistência. Tal resistência, no entanto, não se limita àquilo que vem “de fora”, mas freqüentemente diz respeito também àquilo que está “dentro” de cada um. Viver no mundo contemporâneo exige, para aqueles que pretendem manter a sanidade e boa e velha existência em “carne e osso”, uma vigilância sem descanso contra a “plastificação”.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 02/03/2008]

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

[NJ] Centenário - identidade e resistência

CENTENÁRIO - IDENTIDADE E RESISTÊNCIA

Não houve, em 100 anos de convívio, momento em que a cultura, as tradições e as contribuições dos imigrantes japoneses e seus descendentes tenham sido tão exaltadas como nas últimas semanas. Trata-se, em parte, do reconhecimento tardio pelo componente japonês na formação do Brasil – reconhecimento justo, diga-se, para aqueles que sofreram toda sorte de preconceito e perseguição até meados do século passado. Mas há um outro lado, que não deve ser negligenciado, relativo aos efeitos negativos que podem advir da superexposição.

O tom da grande maioria das reportagens que têm abordado a imigração japonesa é tristemente raso e caricatural – e não era de se esperar coisa diferente. Resume-se tudo aos olhos puxados, ao sushi e ao idioma incompreensível, como se só por isso se explicasse o que significa ser japonês, sem mais a acrescentar. É assim que a população em geral é semi-informada acerca de toda uma sua parcela e, o que me parece mais grave, é assim que netos e bisnetos de imigrantes japoneses estão sendo lembrados de suas origens.

A situação atual da “colônia japonesa” é de crescente desunião. E isto não apenas em função da natural e salutar integração na sociedade brasileira, mas também pelo fato lastimável do distanciamento e do esquecimento. A própria identidade do nipo-descendente, perdidas ou renegadas as suas raízes, parece esmaecer. Diante de tal contexto, a salvaguarda da memória e dos laços que unem a comunidade de origem japonesa exige uma atitude que não pode ser esperada dos meios de comunicação, mas deve partir da própria comunidade.

Não pretendo que os nipo-descendentes retomem a segregação e o isolamento de outrora, estratégia equívoca baseada no desejo de permanecerem japoneses “puros” fora do Japão. A atitude a que me refiro é de união, é certo, mas não de união com vistas a evitar a diluição do que resta de sangue e de cultura japonesas no caldo mais volumoso da realidade brasileira. A miscigenação fará com que pouco a pouco os traços físicos sejam descaracterizados, o avanço das gerações se encarregará de fazer perder grande parte da culinária tradicional e o idioma, que hoje já é pouco conhecido, será ainda menos no futuro. Ainda assim a sociedade brasileira carregará traços marcantes recebidos dos imigrantes japoneses, incorporados à própria cultura brasileira, tanto quanto os traços recebidos das demais nacionalidades que a constituíram.

Não é como japoneses, mas como brasileiros, ou melhor, como parte do que implica ser “brasileiro”, que os descendentes de japoneses devem manter sua identidade. Pois esta miscelânea que constitui o Brasil, que, dizem, é majoritariamente indígena, africana e portuguesa, é um tanto italiana, alemã e espanhola, é um pouco francesa, inglesa e holandesa, é também japonesa. É como integrantes dessa parcela que todos aqueles que compartilham uma origem japonesa devem ter consciência de si mesmos e é como guardiões de todo um legado incorporado à sociedade brasileira que devem ter consciência de sua unidade.

É razoável que cada indivíduo considere sua identidade e, mais ainda, sua história pessoal, como o caminho trilhado por seus próprios pés neste mundo. Mas não há história de um indivíduo só, não há caminho que simplesmente comece do nada. Nossos pés partem de algum lugar, até o qual foram levados por aqueles antes de nós, e em seguida avançam um tanto mais, até o ponto a partir do qual as futuras gerações caminharão. O lugar do qual partem os pés de todos os descendentes de japoneses foi conquistado através de meio mundo, foi aberto às custas de suor e lágrimas de seus antepassados, na luta por uma vida melhor longe da terra natal. Isto, que veio antes, deve guiar a direção do avanço. Esta deve ser a baliza de sua identidade.

O que ameaça a preservação dos traços de cultura japonesa não é o contato com o “não-japonês”, mas a tendência uniformizadora da sociedade contemporânea. Sob o jugo do capitalismo hodierno, armado com o domínio da comunicação de massa, um modelo ocidental de comportamento (e mais: individualista, consumista, despolitizado etc.) é imposto. Disso não escapam sequer os japoneses do Japão, que está longe de corresponder àquele Japão que os imigrantes deixaram no começo do séc. XX. Aqui, do outro lado do mundo, a diversidade da identidade nipo-descendente pode e deve servir de bandeira de resistência. O centenário da imigração é uma oportunidade para refletir a respeito – desde que pensemos com a conseqüência e a profundidade necessárias.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 03/02/2008]

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

[NJ] Memórias construídas

MEMÓRIAS CONSTRUÍDAS

Num mundo em que o capital tudo domina, em que a publicidade tudo torna vendável, em que o império das coisas se estende cada vez mais, não é de espantar que também a memória se torne mercadoria. Empresas de médio e grande porte oferecem, por meio de organização e planejamento rigorosos, memórias no exato formato e preciso conteúdo desejados entre os consumidores: constroem os fatos tais como os compradores anseiam tê-los na lembrança, arquitetam futuras memórias. E assim cada um dos “ritos de passagem” ou acontecimentos sociais estabelecidos pela moda ou pela tradição serve já não apenas como “rito de passagem” ou acontecimento social, mas como fundo para uma lembrança a ser fabricada e vendida.

O mercado das festas de 15 anos, casamentos, aniversários de casamento, formaturas etc. é altamente disputado – e não por acaso, já que uma festa de formatura, por exemplo, pode envolver somas na ordem das centenas de milhares de reais. Os aniversariantes, noivos ou formandos recebem em troca a tranqüilidade de contar com a organização profissional para um evento que todos desejam recordar como perfeito: o jantar perfeito, a decoração perfeita, a música perfeita, a cerimônia perfeita e até o porre perfeito. Tudo é pensado para corresponder a tais expectativas, do mesmo modo como fazem os fabricantes de sabão em pó ou de comida congelada para adequar seus produtos às preferências do público.

A racionalização característica do capitalismo domina o processo de produção da memória e torna cada detalhe mensurável, calculável, projetável. Como conseqüência, todos os eventos assumem um certo caráter padronizado e insosso, um certo aspecto de fórmula pronta e incisivamente repetida. A entrada sempre triunfal da debutante. O tom sempre romântico barato dos votos de fidelidade eterna dos noivos. O choro copioso dos pais e o rigor sempre fajuto dos smokings alugados e mal costurados dos formandos. O Danúbio sempre Azul das valsas. A marcha nupcial marcando o passo sempre lentíssimo da noiva que quer dar tempo para que os outros a admirem. Os festejos e a bebedeira dos novos bacharéis sempre embalados por “We are the champions”.

Nada há que não seja minuciosamente desenhado para “parecer com” ou para “ser lembrado como tal”, ainda que geralmente não o seja. Tudo – cada passo da debutante ou da noiva, cada etapa do ritual de formatura – é planejado para o registro impecável pelas lentes das máquinas fotográficas e das filmadoras. Há pausas pré-determinadas para fotos, sorrisos pré-orientados para a filmagem – virar para um lado, depois para o outro, uma pose com o diploma, uma pausa para a foto na postura de dança etc. Para quem assiste a tudo de perto e não precisa das fotos para saber do ocorrido, isso chega a soar ridículo. Mas pouco importam os presentes – no salão lotado, eles podem mal enxergar a valsa da debutante, mal apreciar os detalhes do vestido da noiva ou perder a chamada do amigo formando no momento da entrega do canudo (geralmente vazio). A construção da memória exige algo mais “confiável” do que a mera memória dos presentes.

Certamente devo soar exagerado para muitos. De fato, a simples profissionalização da organização de eventos não seria grande problema se não ilustrasse o processo geral de embrutecimento dos indivíduos desencadeado pelas forças coisificadoras da sociedade capitalista. Ao invés da espontaneidade, da experiência estritamente pessoal e livre da qual deveria se originar uma memória parcial e falha, mas rica e única, a memória construída se apresenta como algo dado de antemão, artificial e uniforme. Ao invés de algo elaborado a partir de “dentro”, pelo próprio indivíduo, algo dado de “fora” e simplesmente recebido – o que existe “fora” é o mercado, que assim logra ser posto para “dentro” sem resistência.

A faculdade de vivenciar o momento e, com base na própria experiência e na própria sensibilidade, transformá-lo em memória é mutilada no exato instante que a memória é feita mercadoria e como tal, isto é, como coisa, incorporada ao seu comprador. O comprador não se sente lesado – ele comprou sua memória e, portanto, ela lhe pertence, tanto quanto lhe pertenceriam suas memórias espontâneas. O que ele não percebe é que, além de sua propriedade, ele mesmo foi tornado coisa. O capital atinge discretamente o apogeu de sua eficiência: a fabricação da memória como mercadoria é, na realidade, também a fabricação do indivíduo.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 06/01/2008]