domingo, 25 de abril de 2010

[Crítica Social] Invasão é crime?

INVASÃO É CRIME?

Dia desses fui ao cinema e, antes do filme começar, tive que assistir a vídeos sobre segurança em caso de incêndio, trailers de futuros lançamentos e alguma publicidade. Até aí nada fora do comum. Surpresa mesmo tive ao me deparar, nesse espaço de publicidade, em plena sala de cinema, com uma propaganda da Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (CNA), em tom “denuncista” e bastante agressivo, contra as ações dos movimentos sociais dos sem-terra.

A propaganda, soube depois, é parte de uma campanha intitulada: “Vamos tirar o Brasil do vermelho. Invasão é crime.” Trata-se supostamente de uma resposta ao movimento “Abril Vermelho” do MST, realizado em memória do massacre de Eldorado do Carajás em abril de 1996. Mas os argumentos usados contra os sem-terra são, para dizer o mínimo, bastante questionáveis.

Primeiro, a propaganda tenta apelar a estatísticas para mostrar que a reforma agrária seria abrangente o bastante para tornar quaisquer invasões desnecessárias e abusivas. Não sei exatamente qual a fonte dos números, mas cuidadosamente não se menciona que o Brasil é um dos países com maior concentração fundiária do mundo – está em segundo lugar, “atrás” apenas do Paraguai. O contingente de trabalhadores excluídos do acesso à terra pela histórica combinação de latifúndio e monocultura é avassalador, mas a situação miserável e absolutamente marginalizada de todas essas pessoas pura e simplesmente não foi mostrada – como sempre – na propaganda.

Segundo, a propaganda apela a imagens chocantes que denunciariam a violência utilizada pelos sem-terra em suas ações. Mas se – e apenas se – é verdade que os sem-terra atuam violentamente, qual a violência maior: a dos sem-terra, nos limites das invasões que promovem, ou a de toda uma estrutura fundiária excludente – geradora de pobreza, fome, êxodo rural, favelização nas grandes cidades etc. – combinada com a força – armada inclusive – dos grandes proprietários rurais, detentores do poder econômico e, via de regra, apoiados pelo Estado? É crucial compreender que qualquer violência por parte dos sem-terra não é original, mas derivada de violência anterior, a violência da exclusão que compele tantas pessoas a uma única e desesperada alternativa: a invasão.

Terceiro, a propaganda insiste que as invasões de terras deveriam ser tratadas como crimes. Mas qual o sentido de criminalizar o único instrumento efetivo de que dispõem os sem-terra para exigir a reforma agrária? Afinal, se a reforma agrária não foi levada a bom termo até agora, mesmo com invasões, por que ocorreria sem elas? Ora, a criminalização das invasões de terra serviria tão-somente para atender aos interesses econômicos dos grandes detentores de terras improdutivas. Mas por que protegê-los, já que são os pouquíssimos mais ricos e poderosos, em detrimento de uma imensa massa de despossuídos e desamparados?

Na verdade, a campanha contra os sem-terra entrega, pelo próprio título, seu caráter conservador: o “vermelho” que se propõe erradicar é uma clara alusão à esquerda. Mas tudo que a esquerda propõe é mudar a situação, resolvê-la pelas raízes, em prol da maioria. Quem desejaria o contrário?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 21/04/2010.]

domingo, 18 de abril de 2010

[Crítica Social] Filosofia e direito – II

FILOSOFIA E DIREITO - II

Enquanto a filosofia do direito juspositivista encontra nos limites do Estado uma fonte de redução do fenômeno jurídico – reducionismo que gera regozijo para a maior parte dos juristas conservadores –, as filosofias do direito não juspositivistas transpõem esses limites. O fenômeno jurídico será outro, tomado pela perspectiva de suas manifestações sociais efetivas, concretas, existenciais. Mas mesmo as filosofias que não se apoiam na norma, e sim no poder, padecem do vício de uma compreensão genérica do fenômeno jurídico, sem lastreá-lo profunda e especificamente no todo da história. Será o marxismo que fará a investigação mais funda e crítica, de toda a filosofia contemporânea, a respeito das origens e da manifestação do direito.
– Alysson Leandro Mascaro, Filosofia do direito, Atlas, 2010, p. 444.

Se, em sua atividade prática cotidiana, o jurista médio renega o pensamento filosófico como algo “inútil”, isto não implica a completa ausência de alguma filosofia por detrás mesmo da prática mais irrefletida, automática e burocrática deste “operador do direito”. Ao renegar a filosofia do direito, ao imaginar-se atento tão-somente ao que é “prático” e “útil”, o jurista que assim procede recai – ingênua ou deliberadamente – numa determinada concepção filosófica do direito. Não por acaso, na concepção mais rasteira...

Isto que, segundo Alysson Leandro Mascaro, pode-se denominar “filosofia do direito juspositivista” alimenta as práticas jurídicas dominantes, fornece o substrato nem sempre consciente daquilo que constitui o “senso comum” dos juristas. Trata-se precisamente da concepção segundo a qual o direito resume-se à legalidade, às normas jurídicas postas ou à ordem jurídica estatal, sem nenhuma consideração quer pela origem histórica, quer pelo papel social deste direito.

Tal visão reduzida, limitada apenas ao que há de mais superficial no direito, funciona como enorme facilitadora nas tarefas do jurista – não é preciso, afinal, pensar em mais nada além do mais óbvio e simples. Facilitadora, portanto, porque torna possível “operar” o direito como um quebra-cabeça de poucas peças – que, porém, uma vez montado, não forma sequer uma figura completa.

O juspositivismo que nega ao direito a possibilidade de um pensar filosófico é, assim, no fundo, apenas mais uma filosofia do direito – e uma filosofia propositalmente parcial e reducionista. Escapar de um tal reducionismo exige encarar de frente a necessidade de uma compreensão filosófica mais profunda – e, mais ainda, de uma compreensão filosófica que tome em consideração a realidade social, a história, o papel social do direito.

O jurista conseqüente não pode, então, furtar-se à tarefa – que, em verdade, não é nada simples – de refletir filosoficamente sobre o que é o direito mesmo. E o horizonte maior desta reflexão filosófica, mais uma vez segundo Alysson Mascaro, só pode ser a recusa terminante em aceitar passivamente a realidade dada.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 14/04/2010.]

domingo, 11 de abril de 2010

[Crítica Social] Filosofia e direito - I

FILOSOFIA E DIREITO - I

Na realidade contemporânea [...] a atividade jurídica e o pensamento conservador e positivista afastam do jurista uma formação profunda e ampla de filosofia. Em primeiro lugar, devido ao conservadorismo do jurista, homem em geral a serviço das elites, que não querem nenhuma contestação do dado. Em segundo lugar, devido ao rebaixamento universitário que carreia o jurista à sobrecarga do mero conhecimento de técnicas, somando informações sem perfazer, em conjunto, sua formação. E, além disso, também pela estrutura mesquinha do afazer do jurista na sociedade capitalista, premido entre a atividade extenuante do seu ganha-pão que não lhe permite galgar um pensamento mais alto do que o exigido para o quotidiano e a alma contabilista que enxerga o conhecimento como lucro, não como plenitude para situar-se no mundo e transformá-lo.
– Alysson Leandro Mascaro, Filosofia do direito, Atlas, 2010, p. 15.

Qual o papel da filosofia do direito? A resposta aqui não pode ser dada isoladamente, de pronto e automaticamente, porque depende – aliás, muito filosoficamente – de uma série de outros questionamentos. Para que serve o direito? A quem, então, serve o jurista? E, em vista disso, qual o jurista que a sociedade e os cursos de direito pretendem formar?

Se partirmos da concepção – infelizmente dominante – de que o jurista é um técnico, um agente da burocracia estatal, aplicador indiferente da lei, tendo por pano de fundo a idéia resignada de que o direito serve apenas à reprodução cega da realidade dada, então a conclusão necessária é a de que a filosofia do direito é “inútil”.

Ora, como a filosofia poderia ser “útil” na atividade cotidiana do jurista, isto é, na prática do fórum, na correria dos prazos, na redação de peças processuais etc.? Tais atividades, embora não dispensem o pensamento por completo, dispensam-no em tudo que ultrapassa os limites estritamente práticos e burocráticos vinculados ao texto da lei. Dispensam, sobretudo, o pensamento questionador, aquele que coloca em dúvida o aparelho judiciário e seus processos, o Estado, e, mais ainda, a própria lei, o próprio direito. E a filosofia é, por excelência, pensamento questionador...

Se, no entanto, pensarmos no jurista como um conhecedor do direito – em seu sentido amplo, social, histórico, portanto não apenas em seu sentido prático, que é parcial e, por isso mesmo, falso –, a filosofia do direito será essencial. Pois a outra face de sua “inutilidade” prática é o seu caráter indispensável para o conhecimento do direito como um todo, o que exige conhecer a sociedade em que tal direito se insere, a realidade de um tempo histórico.
O jurista de que este mundo precisa – queira-se ou não – deve ser, portanto, capaz, sim, de filosofar...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 07/04/2010.]

domingo, 4 de abril de 2010

[Crítica Social] Ideologia ou ignorância?

IDEOLOGIA OU IGNORÂNCIA?

Nas últimas páginas de sua última edição, a revista Veja trouxe uma reportagem sobre a inclusão das disciplinas sociologia e filosofia nos currículos obrigatórios do ensino médio brasileiro (“Ideologia na cartilha”, edição 2158, p. 116-117). Num tom questionável, o texto critica a medida pela falta de professores “qualificados” para assumir as referidas disciplinas e, sobretudo, pela perspectiva ideológica dominante em seus programas – um “ideário marxista” que persiste “à revelia da implosão do comunismo no mundo”, diz o repórter.

Com relação à “qualificação”, a reportagem insinua que o professor bem qualificado é aquele desprovido de qualquer “visão ideológica”. Nada além, portanto, do velho discurso da neutralidade, segundo o qual nenhum conhecimento é possível senão aquele dado por quem invariavelmente não sai de cima do muro. Bastaria, porém, um pouco de reflexão sociológica ou filosófica, sobretudo a partir do mesmo ideário crítico que a revista censura, para saber que não há neutralidade possível: quem se declara neutro se declara de imediato indiferente à persistência da sociedade presente, tal como dada aqui e agora, portanto é também partidário de algo. Isto, aliás, a própria reportagem denuncia, pois se, de um lado, ataca ferozmente o marxismo, por outro lado não tem o menor pudor de defender abertamente o capitalismo – isto é, a sociedade presente –, afirmando que este “regime resultou em mais e melhores empregos ao longo da história”.

No que diz respeito aos programas das disciplinas, a reportagem afirma predominantes “conceitos rasos” e um “tom panfletário”, o que justificaria não incluir sociologia e filosofia entre as disciplinas do ensino médio. Qual o sentido, no entanto, de acusar as idéias com as quais não concordamos de “rasas” e “panfletárias”? Pois é sempre legítimo discordar de algo, demonstra a possibilidade de debate permanente com a qual as idéias só têm a ganhar. Mas desqualificar o discurso do outro, acusá-lo de inferior apenas porque diferente, é uma atitude arbitrária, contrária ao diálogo, típica de quem se julga “dono da verdade”. E a reportagem claramente discorda das perspectivas teóricas predominantes entre sociólogos e filósofos – a perspectiva teórica que orienta a própria reportagem, no entanto, é “melhor” do que as outras?

Mais do que tudo, a reportagem parece demonstrar certo medo de que, através de disciplinas como sociologia e filosofia, perspectivas críticas e ideais de esquerda sejam difundidos entre os jovens. Por quê? Ora, porque há, é evidente, um grande interesse, por parte de alguns grupos sociais, na completa falta de consciência, no completo silêncio de reflexão, acerca das questões sociais. Difícil, afinal, tomar conhecimento das estruturas e da dinâmica da sociedade presente sem indignar-se... Difícil conformar-se ao absurdo da desigualdade, da exploração, da exclusão... Mas há quem ganhe com a permanência de tudo como está e, para estes, não há nada melhor do que a ignorância das massas.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 31/03/2010.]