domingo, 23 de maio de 2010

[Crítica Social] Cultura, cidade, miséria

CULTURA, CIDADE, MISÉRIA

A cidade de São Paulo abrigou, neste último fim de semana, mais uma edição da “Virada Cultural”. Promovido pela prefeitura municipal desde 2005, o evento consiste em 24 horas seguidas de atrações culturais que ocupam sobretudo o centro da cidade, em vários pontos.

Trazer ao centro parte do público, especialmente aquele formado pelas classes médias paulistanas, tem sido um dos principais objetivos. O centro, gradualmente “abandonado” desde a década de 1960, tornou-se por muito tempo identificado como área perigosa e suja a ser evitada. Lojas, shopping centers, restaurantes etc. mudaram-se, áreas residenciais deslocaram-se para outros bairros. Mas com grandes projetos de revitalização sendo implantados ao longo dos últimos 10 anos, trazer o público de volta tornou-se interessante – politicamente sobretudo, como parte de uma grande estratégia de marketing eleitoral.

Na edição deste ano, as atrações da “Virada Cultural” estiveram em grande medida concentradas na região da Luz, setor do centro da cidade onde estão localizadas as famosas estações ferroviárias Luz e Júlio Prestes, o Memorial da Resistência, a Pinacoteca do Estado – e também conhecida por abrigar a extremamente degradada área da “cracolândia”. A escolha não foi casual, já que é exatamente a região da Luz o novo alvo dos projetos de revitalização urbana – momento, então, interessante, do ponto de vista político, para “exibir” a região.

Saiu do “plano”, porém, a perpetuação de tudo aquilo que se vê diariamente na “cracolândia” em plena “Virada Cultural”. A presença massiva da polícia – que, em dias ordinários, nunca está presente na região em intensidade sequer semelhante – não foi o bastante para inibir o consumo e o comércio de drogas a céu aberto, em meio ao grande público. A triste e absurda situação dos dependentes foi escancarada diante dos olhos da classe média acostumada a vê-la tão-somente pela TV, como uma notícia distante. Sujos, miseráveis, fisicamente debilitados, os usuários de “crack” chocaram sobretudo aqueles que desejam imaginar o mundo como limitado ao ambiente iluminado e asséptico do shopping center.

Isto faz pensar no sentido mesmo das propostas de revitalização do centro de São Paulo. Tais propostas são orientadas, ao que parece, para a “higienização” das áreas, afastando toda a miséria visível e buscando mudanças estéticas. Sem dúvida isto atende aos interesses ligados à especulação imobiliária, já que há enorme valorização de prédios e terrenos em áreas revitalizadas – mas e os interesses da população, especialmente da população mais pobre? Quem ocupava a área antes, na época da degradação, em geral é simplesmente empurrado para outros cantos, quaisquer cantos. Os problemas sociais mesmos não são resolvidos, em geral não são sequer enfrentados.

Se o modelo até agora estabelecido for repetido, tráfico e consumo de drogas continuarão com ou sem a revitalização da Luz. Eventualmente continuará em outro lugar, mas será a única mudança. Esta postura política que negligencia as questões sociais mais duras só é capaz, afinal, de revitalizar a cidade para o capital, não para as pessoas. Eventualmente, no entanto, as questões sociais retornam, escapam do controle, para serem esfregadas na cara de quem não quer vê-las.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 19/05/2010.]

Um comentário:

Felipe Spack disse...

Texto muito interessante, cara. Em Curitiba, temos sofrido um processo semelhante de gentrificação do centro. Eles pegam uma área meio boêmia, meio abandonada e transformam em algo pós-pop-top-hype-indie-cult. Abriram trocentas lojas que cobram 300 reais em uma saia. Uma rua da gastronomia. Espetáculos a céu aberto.
E mataram os fumantes de crack. Legal vc fazer a crítica.

Parabéns pelo blog