domingo, 4 de julho de 2010

[Crítica Social] Pescarias e peixes

PESCARIAS E PEIXES

Há ditados da sabedoria popular que, em muitas situações, expressam grandes verdades. Por outro lado, pretender explicar ou buscar compreender tudo a partir de ditados populares é algo que de nenhum modo pode ser satisfatório. A realidade é, afinal, sempre mais complexa, mais tortuosa e mais opaca do que aquilo que se pode condensar num chavão.

Assim ocorre com o ditado popular segundo o qual “é melhor ensinar a pescar do que dar o peixe”. Não há quem nunca tenha ouvido esta frase. O seu significado, para além da metáfora, é o seguinte: melhor ensinar a fazer e gerar autonomia do que prestar o socorro mais imediato e deste modo correr o risco de gerar dependência. Em geral, isto é mesmo verdade – mas nem sempre...

Há casos em que o socorro imediato – o “dar o peixe” – não é dispensável. Freqüentemente se pergunta, por exemplo, sobre programas assistenciais do governo federal, como o “Fome Zero” e o “Bolsa Família”. É evidente que não são as opções ideais, mas, diante de um cenário que está muito distante mesmo do ideal, mostram-se como alternativas que não podem ser inteiramente desprezadas. Melhor seria, sem nenhuma dúvida, uma transformação econômica radical, profunda o bastante para extirpar a simples possibilidade da miséria. Mas a condição famélica mais atroz não pode esperar tanto. Se a escolha deve ser dada entre o “dar o peixe” ou a completa omissão, quero dizer, entre prestar simples assistência ou permitir que se morra de fome, então só se pode escolher a primeira. Isto, claro, não elimina as distorções a que estão sujeitos os referidos programas governamentais, bem como não os eleva necessariamente acima de um repugnante assistencialismo eleitoreiro – impõe, porém, reflexões que não “cabem” dentro da metáfora da pescaria e do peixe.

Outro exemplo bastante discutido é o das cotas raciais ou sócio-econômicas nos exames vestibulares das universidades públicas brasileiras. Também neste caso não há dúvida de que, em absoluto, não se trata da melhor opção. Melhor mesmo seria, é evidente, que a população negra e a população advinda das classes sociais menos favorecidas tivessem condições plenas de disputar as vagas nas universidades de igual para igual com a elite branca brasileira. Isto, no entanto, exige um longo e custoso processo de aperfeiçoamento do ensino público básico, algo pelo que não é razoável esperar de braços cruzados. As cotas aparecem, então, no curto prazo, como uma alternativa bastante eficaz de “remediar” a situação.

Negar terminantemente o “dar o peixe” não pode ser, portanto, regra absoluta. O que não se pode admitir é que esta seja a única providência. Não se pode admitir que o assistencialismo prossiga sem que as transformações necessárias sejam implementadas ou que as cotas, uma vez estabelecidas, sejam manipuladas para omitir as ações mais profundas que poderiam tornar a próprias cotas desnecessárias no futuro. Contudo, aqui e agora, enquanto nem todos têm acesso ao rio, enquanto nem todos têm a mesma oportunidade de aprender a pescar, algo precisa ser feito...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 30/06/2010.]

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