terça-feira, 24 de novembro de 2009

[Crítica Social] Reflexões às escuras

REFLEXÕES ÀS ESCURAS

O blecaute que atingiu grande parte do país no dia 10 último é, neste momento, a mais veiculada e discutida notícia da mídia brasileira. Debate-se, em especial, qual teria sido o motivo para a interrupção da transmissão elétrica – já que, de fato, parece não ser aquele divulgado oficialmente pelo governo federal. Este, no entanto, não é o problema que pretendo discutir aqui.

Independentemente do seu motivo, o blecaute dá ensejo a reflexões que, em geral, sob a luz constante da lâmpada elétrica, não se colocam. Pois, às escuras, diante da falha, ainda que por apenas algumas horas, revela-se a fragilidade do mundo contemporâneo que aparece, dia após dia, para cada um de nós, como sólido e infalível.

Dia após dia, cada um de nós circula num mundo repleto de coisas – coisas cada vez mais maravilhosamente tecnológicas e facilitadoras de nossas vidas. E cada um de nós se habitua a estas coisas, ao seu funcionamento regular, até que a realidade social e humana, toda ela, acaba por se confundir, aos nossos olhos, com as coisas ao redor.

Um aparelho eletrônico qualquer, por exemplo, aparece cotidianamente em nossas vidas até o ponto em que a sua própria existência aparece como “natural”. Apertar um botão, ligá-lo, servir-se de seu funcionamento etc., tudo isso se torna igualmente “natural”. E assim tudo que resta para além desta naturalidade da coisa desaparece: como aquilo foi construído? como foi projetado? como chegou até onde está? como funciona? o que é preciso para que funcione?

A interrupção do funcionamento, porém, põe a descoberto, de um só golpe, toda a artificialidade daquilo que parecia tão “natural”. A interrupção denuncia que o aparelho está ligado à tomada, que está conectada à instalação elétrica do edifício, que recebe energia da rede de transmissão, que recebe energia das usinas elétricas etc. Cada um desses elementos tem a sua própria história, cada um foi construído por homens determinados – e a falha em qualquer um deles causará o não-funcionamento do aparelho. Aquilo que até então parecia simples e óbvio, o ato de apertar o botão, passa a figurar transparentemente em sua alta complexidade.

A lâmpada, a TV, o rádio, o computador ou mesmo a geladeira que não funcionam diante da falta de eletricidade aparecem, então, como o que de fato são: produtos do trabalho humano. Coisas feitas pelos homens e, portanto, falíveis. Coisas feitas pelos homens e, portanto, imersas num contexto social e histórico determinado. O aparelho como coisa materializa apenas no extremo final um longo processo constituído não por coisas, mas essencialmente por relações sociais. São essas relações sociais que importam e determinam mesmo quando a questão do funcionamento ou não-funcionamento parece dizer respeito apenas às coisas.

Hacker ou raio? – não é esta, portanto, a questão fundamental acerca do blecaute. A questão fundamental é ainda: que sociedade é esta em que vivemos?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 18/11/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 22/11/2009.]

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