quinta-feira, 19 de abril de 2012

[Crítica Social] Anencefalia e razão


ANENCEFALIA E RAZÃO

O Supremo Tribunal Federal decidiu, na última semana, pela licitude da interrupção da gestação de embriões anencéfalos. A decisão põe fim – ao menos no âmbito judiciário – a um debate que se arrasta desde 2004, cujos argumentos não raro chegaram ao limiar do absurdo.

Do ponto de vista propriamente jurídico, a questão passa, é bem verdade, por uma série de complicações. É preciso definir, antes de tudo, se o embrião anencéfalo possui vida e se a interrupção da gestação pode ser neste caso enquadrada no crime de aborto. Mas qualquer discussão, mesmo a mais desprovida de sentido, pode gerar um turbilhão de complicações jurídicas e uma discussão técnica, em linguagem árida, interminável apesar de, no fundo, sem propósito.

Um mínimo de razoabilidade poderia aqui bastar, sem exigir todo um debate estéril de anos e anos. É simplesmente absurdo obrigar uma mulher a manter durante nove meses a gestação de um embrião sem qualquer expectativa de sobrevida fora do útero. É, para usar a palavra mais direta e clara, cruel obrigar uma mulher a passar por todas as fases da gravidez, o que em geral significaria desenvolver toda uma série de esperanças com relação à criança vindoura, quando é, na verdade, impossível que a grávida se torne, neste caso, mãe.

Só o que pode – e efetivamente pôde, ao longo dos últimos anos – ofuscar este mínimo de dignidade que só muito sadicamente se poderia negar à gestante é a persistência incontornável de uma certa consciência religiosa cega, fechada a qualquer possibilidade de reflexão. É esta consciência religiosa, fanaticamente apegada à crença de que o embrião anencéfalo, a despeito de tudo que a ciência afirma a respeito, possui “vida”, uma “dádiva divina”, e, portanto, a interrupção da gestação constituiria um “pecado”.

No entanto, é necessário reconhecer com toda a clareza que todos nós temos o direito de pecar. É necessário que o tenhamos, porque a proibição do pecado não guarda qualquer relação com as proibições jurídicas. Se, portanto, uma mulher grávida, cujo embrião é diagnosticado anencéfalo, deseja, por conta de sua religião, manter a gravidez até o fim, isto há de ser um direito dela. Mas se, por outro lado, esta mulher não tem as mesmas convicções religiosas, é absurdo obrigá-la a manter a gravidez porque, aos olhos de outros, a interrupção constituiria um pecado. A interrupção da gravidez há de ser, do mesmo modo, também um direito dela.

Por sorte, o STF soube, neste caso, evitar um retrocesso (e não me parece que isto seja “regra”). Os efeitos da persistência das soluções religiosas, embora muito longe do campo estrito da religião, devem ser observados com cuidado. O caminho jurídico já não é, em definitivo, o caminho mais adequado para a solução autêntica das grandes questões sociais. A interferência anacrônica da religião, no entanto, tende a levar a soluções ainda piores.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 18/04/2012.]

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