quinta-feira, 5 de abril de 2012

[Crítica Social] Res publica, potentia

RES PUBLICA, POTENTIA

“Este estado dos indivíduos num povo, em relação uns com os outros, chama-se estado civil (status civilis) e o seu todo, em relação aos seus próprios membros, chama-se Estado (civitas), o qual, em virtude da sua forma, ou seja, na medida em que está unido pelo interesse comum de todos em estar no estado jurídico, recebe o nome de coisa pública (res publica latius sic dicta); mas em relação com outros povos chama-se potência (potentia), pura e simplesmente (daí o termo potentado) [...]”
– Immanuel Kant, A metafísica dos costumes, § 43

O Estado, aponta o texto de Kant de 1797, aparece “para dentro” como poder público, representante supremo do interesse público e, simultaneamente, “para fora” como força, como pura potência. E assim Kant aponta para algo essencial acerca da política na sociedade contemporânea: o Estado, como a forma política típica desta sociedade, apresenta-se ao mesmo tempo como um poder neutro, pairando sobre todas as particularidades, identificado com o universal, e como um aparelho de coerção, força bruta concentrada, violência organizada.

Kant, no entanto, não pode apontar mais profundamente o que determina esta “dupla face” do Estado. O que há de específico na forma política Estado é, com efeito, o seu caráter de poder público, poder que não se manifesta diretamente como poder de um grupo ou de uma classe social. Este caráter público é, por sua vez, determinado pela forma específica de sociedade na qual o aparelho de Estado encontra o seu pleno desenvolvimento.

A universalização da circulação mercantil implica a universalização da personalidade jurídica, isto é, a universal extensão (a todos os homens) da condição formal de sujeito de direito. A circulação mercantil, por sua vez, é determinada em última instância pela produção capitalista. Assim, na sociedade capitalista, nenhum poder político pode manifestar-se sob a forma direta de um poder exercido por um sujeito de direito sobre outro um sujeito de direito igual. Todo poder político precisa ser expurgado do interior das relações de troca de mercadorias, agora universais. O político constitui-se como esfera autônoma, diversa do econômico – e o político autonomizado na forma de um aparelho de poder que se opõe às relações econômicas, isto é, que se opõe ao campo do interesse privado, só poder constituir-se como um poder público.

O poder público surge, portanto, como típico do capitalismo. Mas a sociedade capitalista é ainda o palco da exploração do trabalhador, da desigualdade econômica crescente. A identificação do aparelho de Estado com o universal, supostamente acima das classes sociais, assegura a perpetuação – pela força, se for preciso – de uma ordem social na qual não pode haver senão a supremacia de uma específica classe social.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 04/04/2012.]

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