terça-feira, 15 de dezembro de 2009

[Crítica Social] Para pensar o ensino jurídico

PARA PENSAR O ENSINO JURÍDICO

O conhecimento instrutivo e técnico, preparatório para exames simplistas e operatórios (OAB, concursos públicos, provas semestrais monodisciplinares...), é alienante, se desacompanhado de uma ampliação crescente da capacidade de leitura da realidade histórico-social.
Nenhum desses raciocínios técnico-operativos consente a formação de habilidades libertadoras, mas, muito pelo contrário, fornecem instrumentos para operar dentro do contexto de uma sociedade exacerbadamente competitiva, consumista, individualista e capitalista selvagem.
Nada impede que um operador do direito hoje, formado em uma boa e bem conceituada IES brasileira, seja autor de atitudes serenamente guiadas pelos mesmos princípios que levaram Hermann Goering, Rudolf Hoess, Joseph Goebbles, Wilhelm Keitel, Himmler e Eichmann a cometerem as mesmas atrocidades que cometeram à frente da máquina nazista. A visão de gabinete, a compreensão de mundo autocentrada, a idéia de responsabilidade restrita à dinâmica da responsabilidade do código de ética da categoria, a noção de mundo fixada pela orientação da ordem legal, a ação no cumprimento ‘estrito’ do dever legal... são rumos e nortes do agir do profissional bacharelado pelas Escolas de Direito que conhecemos.
Mas, a autonomia, conhecida e importante autonomia, esta é uma estranha desconhecida das Faculdades de Direito do Brasil. Não só não é cultivada, como quando dá mostras de sua aparição, é rápida e severamente repreendida.

A longa citação de Eduardo C. B. Bittar (O direito na pós-modernidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, pp. 390-391.) vale por cada uma de suas precisas e desmistificadoras palavras.

Que caminhos o nosso ensino jurídico tem seguido no sentido de impedir que Auschwitz se repita? Ora, no geral, nenhum... O ensino técnico e reificante, devassador da subjetividade, deformador do intelecto e da experiência, apenas submete o educando à completa heteronomia do mercado, portanto à completa mercadorização da vida humana. A redução alienante da realidade do direito à realidade do código, a limitação de uma educação meramente repetitiva da letra da lei, o formalismo que aniquila qualquer criatividade – tudo isto contribui sobremaneira para o desconhecimento do direito e do mundo, mas nunca para o conhecimento autenticamente formativo.

As deformações da consciência que marcaram os nazistas não estão, portanto, sendo superadas por este ensino jurídico, mas repetidas por ele. Pois o nazista, como se sabe, não se sentia sequer minimamente culpado pelas atrocidades que cometia: julgava estar apenas cumprindo a letra da lei, obedecendo estritamente às ordens da autoridade constituída, portanto rigorosamente atrelado ao seu dever, enquanto 6 milhões de judeus eram exterminados pelos atos de maior desumanidade já presenciados sob a face da Terra. Uma tal postura cega e incapaz de questionamento diante do suposto “dever” é exatamente o que se tem reproduzido em massa no ensino jurídico: o direito, assim, ao invés de discurso da liberdade, parece preferir funcionar como fábrica de autoritarismo.

Não é por acaso, então, que vemos por aí, nos corredores das faculdades de direito, o exato oposto do que ali se deveria encontrar: Himmlers, Goerings, Eichmanns e até, para o nosso máximo azar, Hitlers em miniatura.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 13/12/2009.]

Um comentário:

Lucas Vieira disse...

Celso,

Em várias ocasiões utilizei-me dessa citação, pela clareza da idéia e pela percepção fácil através da comparação com o Holocausto.

Quantos de nós já ouvimos (e muitos reproduzimos) de nossos professores, que essa é a "lei", o resto não é discutível?

A própria idéia deste ensino do direito restrito a (futuros) juristas já é em si, alienante. Inadmissível pensar que a Constituição só é conhecida ou pela elite dominante ou pelos operadores do direito (segmentos que, via de regra, se confudem) retira o próprio núcleo essencial da Constituição como instrumento máximo de uma sociedade.

Horrível é a sensação de ter como professores e companheiros de salas, muitas vezes, Himmlers, Goerings, Eichmanns e até, para o nosso máximo azar, Hitlers em miniatura.

Apenas um desabafo. E lembrando do "ensaio sobre a cegueira", de Saramago, remeto-nos a "responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam". Pois a maioria desses técnicos, se formam asssim, sem saber, do que legitima e a interesse de quem.

Aproveito o comentário, para dizer que conheci agora o blog e gostei bastante dos posts. Simples, diretos, objetivos, sem deixar de lado a crítica. Essa palavra, que na prática do dia-a-dia, é que faz com que não fiquemos cegos às atrocidades do mundo...

Abraços.

Lucas Vieira
Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil - coraje