terça-feira, 8 de dezembro de 2009

[Crítica Social] O beija-flor e o incêndio

O BEIJA-FLOR E O INCÊNDIO

Qualquer um que se proponha a tentar – esta que parece ser uma tentativa sem fim – compreender o mundo por uma perspectiva crítica, autenticamente crítica, é obrigado a enfrentar, de tempos em tempos, propostas de “melhorar aos poucos”, especialmente aquelas que começam por “se cada um fizer a sua parte...” etc. Obviedades e clichês que só poderiam bastar a quem nunca se propôs a pensar seriamente as grandes mazelas do tempo presente – como, por exemplo, a velha fábula do beija-flor que, diante do incêndio na floresta, persiste sozinho na tentativa de apagá-lo – retornam invariavelmente e mesmo daqueles mais “bem intencionados”.

O que podem ser essas pequenas “melhoras”, essas reformas marginais, numa sociedade que estruturalmente, até a mais profunda de suas raízes, está condenada? O que pode ser a “melhora” da parte numa sociedade que, na sua totalidade, não pode gerar senão exploração, exclusão, miséria? Qual é a pequena parte que cada um poderia fazer para mudar este quadro? Que boa vontade, solidariedade ou boas ações poderiam ter algum efeito significativo?

Toda caridade não faz senão aliviar as necessidades mais urgentes de uns enquanto, perversamente, a estrutura social continua a produzir a miséria de tantos outros. Toda boa vontade, toda solidariedade, todo “amor ao próximo” se perde numa totalidade que se impõe e se perpetua independentemente da vontade ou das intenções daqueles que a ela se submetem. Tudo se dilui como menos do que uma gota no oceano: e este oceano infelizmente não será preenchido nem esvaziado “de gota em gota”.

Que ninguém me interprete mal. Não estou recomendando aqui o completo conformismo, a resignação irrestrita à realidade social tal como dada. Esta é a última postura que, em pleno uso de suas faculdades mentais, um crítico social recomendaria. Qualquer ação que siga na contramão da realidade dada, que contribua para mudanças, mesmo que superficiais, ou que simplesmente recuse contribuir para a perpetuação do mesmo é plenamente preferível à inação. Mas o que estou tentando dizer é que o inconformismo moderado e pouco exigente pode não ser o contrário do conformismo.

O contrário do conformismo só pode ser um inconformismo profundo, exigente, que não se dê por satisfeito com menos do que a transformação radical do mundo. Uma transformação que não se limita à parte, mas que atinge e transborda a totalidade da sociedade presente, que instaura uma sociedade autenticamente nova.

Afinal, quando a fábula do beija-flor é contada e recontada, ninguém se pergunta quais foram as causas do incêndio. Ninguém se pergunta o que leva os animais a pensar apenas em si próprios. Ninguém cogita por que tudo está desabando, mas todos se apressam em culpar aqueles que preferem fugir para salvar as próprias vidas. E ninguém conta, o que é muito suspeito, o verdadeiro final da história: o beija-flor, a despeito do seu esforço, morreu queimado...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 02/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 05/12/2009.]

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