domingo, 10 de outubro de 2010

[Crítica Social] Número e sociedade

NÚMERO E SOCIEDADE

Não existe nada mais crível do que a estatística, o dado numérico, o gráfico. Pode-se, afinal, duvidar de tudo – visões políticas, posições teóricas, pontos de vista, ideologias etc. –, mas não se pode duvidar do número. Por isso quem quer se fazer crível, quem quer provar o que quer que seja, logo se apressa em apoiar o seu argumento num número qualquer.

Mas se é certo que o número é preciso, ainda é necessário perguntar: qual é a sua verdade? O que o número nos diz sobre a realidade? Já faz muitos anos, mas ainda me lembro de um exemplo a esse respeito dado certa vez por uma professora de matemática. Se uma pessoa come 100 kg de carne por ano e outra como zero, a média anual de consumo de carne das duas é 50 kg – uma delas, no entanto, continua de estômago vazio. O cálculo é absolutamente correto, mas o seu resultado não diz nada sobre o mundo real.

Isto não impede, porém, que hoje a eficiência estatística, como uma espécie de prova numérica incontestável do funcionamento ideal de qualquer coisa, tenha invadido e dominado todos os campos. Assim, por exemplo, um Judiciário estatístico se preocupa com o número de processos, com o número de sentenças, com o tempo médio de tramitação de uma ação, mas não se preocupa com o seu papel social ou com o sentido transformador ou conservador das suas intervenções. Uma saúde estatística se preocupa com o número de atendimentos, de cirurgias, de internações etc., mas não se preocupa com a qualidade do tratamento, com a desigualdade no acesso ao tratamento nas diversas classes sociais, com as necessidades reais sobretudo da população menos favorecida. Uma educação estatística se preocupa com o número de escolas, de universidades, de estudantes, de aprovações, mas não se preocupa com o tipo de formação que realiza, com fins a que se propõe, com o seu sentido social.

Trata-se, em suma, do domínio da quantidade sobre a qualidade, do cálculo de tudo, inclusive do incalculável, e do desprezo por tudo quanto não se deixa quantificar numericamente. Isto, por sua vez, não é senão demonstração do crescente domínio da lógica de mercado sobre tudo – no fim das contas, é a extensão do cálculo econômico, índice de uma louvada eficiência de mercado, sobre todas as áreas. No Judiciário, na saúde, na educação ou em qualquer outro setor, esta lógica penetra de modo a fazer encarar tudo como a produção mercantil, quantificável por excelência.

Calculáveis, sempre, são os custos de produção, as vendas, os lucros. Mas é diferente com as questões sociais. E não se trata de deficiência da matemática: é a própria realidade social que não se deixa captar numericamente, não se deixa calcular ou prever estatisticamente. O modo de compreendê-la há de ser outro. A complexidade da estrutura social é de uma ordem diversa daquela de que podem dar conta mesmo os modelos matemáticos mais sofisticados.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 06/10/2010.]

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