domingo, 24 de outubro de 2010

[Crítica Social] Teologia e eleições

TEOLOGIA E ELEIÇÕES

Um lastimável episódio é o mínimo que se pode dizer sobre a discussão acerca do aborto que, nas últimas semanas, tomou conta da pauta do confronto eleitoral entre PT e PSDB. Lastimável nem tanto pelo seu alegado efeito – ter impedido a vitória da candidata do PT ainda no primeiro turno –, mas sobretudo pelo desvio que promove e pelo retrocesso ideológico que representa.

Trata-se de um enorme desvio porque reduz, do modo mais arbitrário e infeliz – embora isto tenha sido “devidamente” aproveitado em termos eleitorais –, o debate propriamente político a um debate personalista e despolitizado. Ora, é bem verdade que PT e PSDB já não apresentam diferenças de posição política tão significativas como outrora, mas ainda assim a disputa eleitoral não faz sentido senão como debate entre tais posições. A discussão sobre o aborto, nos termos em que tem sido apresentada, trata apenas dos pontos de vista pessoais dos candidatos, de suas posições subjetivas, de seus compromissos individuais com a “fé cristã” etc. O debate foi então atirado para o domínio das intenções pessoais – como se não se tratasse mais da escolha de um ocupante de cargo público, mas da decisão acerca de quem pode alcançar a “salvação da alma”...

Mais ainda, a discussão representa um retrocesso ideológico porque atinge a idéia mesma de um Estado laico e a garantia de liberdade de religião. Pois a estrutura política estatal não pode ter por base qualquer crença determinada, o poder político não pode ser exercido em prol de religião alguma. Mas o argumento religioso presente no debate atual é o de que o Estado brasileiro deve proibir o aborto e até mesmo punir criminalmente quem o praticar porque uma certa fé o vê como ato condenável. Em outras palavras, este argumento defende que o aborto deve ser crime porque é pecado. Num Estado laico, porém, crime e pecado só podem ser coisas muito diferentes.

É certo que o Brasil é um país de maioria cristã – e sabe-se que as religiões cristãs em geral condenam o aborto. Ainda assim, são situações muito distintas que uma mulher, diante de uma gravidez indesejada, deixe de realizar um aborto porque a sua religião proíbe, e que uma mulher, na mesma condição, deixe de realizá-lo porque poderia ser punida (inclusive com prisão) pelo poder público. Para uma mulher que não professe religião alguma, por exemplo, o temor da punição divina pelo aborto não faz qualquer sentido, mas a punição terrena e muito concreta imposta pelo Estado faz. Não é razoável, em nenhuma hipótese, que esta mulher seja forçada a agir de uma ou outra maneira em função de convicções religiosas que não são suas. A sua liberdade de religião – que inclui a liberdade de não ter religião alguma – então, é preciso reconhecer, já não existe. E se uma qualquer religião precisa, para garantir que um preceito seu seja cumprido, da força do Estado, então é preciso reconhecer, no mínimo, que o seu poder de renovar a “fé” dos seus “seguidores” está falhando. Para uma religião qualquer, admitir que o Estado é necessário para fazer cumprir “lei de deus” é o mesmo que admitir a sua própria falha como religião.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 20/10/2010.]

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