domingo, 3 de maio de 2009

[NJ] Sobre a discriminação social

SOBRE A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

Poucas coisas são, para mim, mais incômodas do que a discriminação de classe, a discriminação contra a pobreza e a exclusão, enfim, aquela comumente identificada como discriminação social. Não que outras modalidades de discriminação não me incomodem – pelo contrário, incomodam-me todas. Há, afinal, no Brasil, quadros graves de discriminação contra negros, contras mulheres, contra homossexuais, contra praticamente toda e qualquer “minoria”, de modo que não é possível fechar os olhos à situação. A discriminação social não é necessariamente pior que as outras – mas parece, a mim, mais digna de repulsa, pois reflete sincronicamente a estrutura exploratória e excludente de uma sociedade profundamente desigual e injusta.

Nossa sociedade não é homogênea. Não é uma sociedade de partes iguais – os indivíduos – que se agregam apenas por mera somatória. Não é uma sociedade funcional ou equilibrada. É uma sociedade “quebrada”, cindida em classes que se opõem. Não há, por isso, uma visão homogênea, quero dizer, uniforme, dos indivíduos sobre a própria sociedade. A possibilidade de compreender a organização social presente é limitada – embora não de modo inescapável – pela posição objetivamente ocupada pelo observador na estrutura desta mesma sociedade. As classes dominantes, do ângulo pelo qual observam, não “vêem” a mesma sociedade que, do ângulo oposto, as classes dominadas “vêem” – embora convivam ambas no mesmo meio.

Do ângulo pelo qual observam, marcado por seus próprios interesses – notadamente o interesse na manutenção da estrutura social desigual que as beneficia –, as classes dominantes “vêem” uma sociedade sem exploração, na qual a desigualdade é ou acidental ou culpa dos próprios inferiorizados. Ora, do ponto de vista do dominador, a própria dominação não existe. Daí advém as raízes da discriminação social. Há, a esse respeito, dois pontos, pelo menos, que penso serem dignos de nota.

Em primeiro lugar, a discriminação social tem como uma de suas principais bases um entendimento “moral” da pobreza. Um entendimento por si só equivocado e preconceituoso. Para dizer da maneira mais simples possível: as classes dominantes crêem, em geral, que o pobre é moralmente responsável pela própria pobreza. O pobre seria pobre, então, por não se “esforçar”, “empenhar” ou “dedicar” o bastante – porque seria “desleixado”, “incompetente”, “preguiçoso”. Mas a questão não é moral, é social – é estruturalmente social.

Ninguém é pobre por escolha ou conivência. A sociedade capitalista é estruturada pela exploração de uma classe sobre a outra, portanto não pode senão cindir-se entre “ricos” e “pobres”. Só há “ricos” porque há “pobres” – as classes dominantes, assim, ao encararem o pobre como culpado pela própria pobreza estão, na verdade, atribuindo ao outro uma responsabilidade própria. Só há pobres porque a sociedade se erige sobre a exploração – e aqueles que se beneficiam da exploração, precisamente por esta condição de beneficiários, têm os olhos tapados ao mecanismo profundamente injusto da desigualdade social. Vêem, por isso, só a superfície, sem conseguir penetrar as profundezas, as causas da pobreza. Convenientemente atribuem, assim, a culpa à vítima.

Em segundo lugar, pesa, sobre a questão da discriminação social, uma atitude bastante freqüente entre as classes dominantes brasileiras, a atitude que se chama comumente de “esnobismo” ou “elitismo”. Em suma, a atitude de desejar estar socialmente acima, em posição de privilégio ou de mando, em relação aos menos favorecidos. Se a moralização da questão conduz à atribuição da culpa pela pobreza ao pobre, o “elitismo” é o seu complemento perverso: é a auto-atribuição das glórias e dos méritos ao vencedor. É a ridicularização do pobre – por seu linguajar, por seus hábitos, por suas vestimentas, por tudo que for possível – com vistas ao auto-enaltecimento do explorador – que seria, então, “melhor” porque é rico, fala bonito, é refinado, veste-se bem etc.

O ponto de vista das classes dominadas, no entanto, não está limitado pelo interesse na manutenção da ordem estabelecida. O dominado, ao observar a sua sociedade, tem franqueada a possibilidade compreender a estrutura desigualadora e brutal à qual está submetido. O interesse da classe dominada é, por isso, a transformação radical desta estrutura social – para uma sociedade sem desigualdade e, portanto, sem o absurdo da discriminação contra a pobreza.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 02/05/2009.]

Um comentário:

maria disse...

Caro Sr. Celso

Achei de importância ímpar suas considerações sobre a discriminação social. Penso exatamente como o senhor e, infelizmente, vivo e sofro ainda com essa realidade.
A razão é que venho de uma classe social que poderia ser chamada de escória da escória. Morei em uma favela paulista uma parte considerável da minha vida. Hoje faço parte da classe média (que as vezes tenho vontade de chamar de medíocre), mas não sou aceita por ela. Tenho uma boa formação educacional pois sou doutora em matemática pela USP, sou advogada e estou terminando o curso de economia na UFRJ. Contudo, não sou consumista, tenho poucas roupas e me visto como qualquer mulher do povo. E para piorar a situação (ou melhorar) me chamo Maria. Dentro da Universidade sou invisível como são todos os que prestam serviços considerados menores como os de limpeza e outros. No prédio onde vivo, moram desembargadores, procuradores, psicologos e médicos. Por tres vezes, dois moradores me mandaram, muito gentilmente, usar o elevador de serviço que era o reservado às empregadas dométicas.Apenas para os meus alunos de engenharia eu tenho algum valor pois conseguem ver em mim algo mais que minha aparência. O pior de tudo isso é que além de não ser aceita pela classe média, não sou mais reconhecida pelo povo de minha origem e sofro também com a magoa que eles me dispensam.
Bem é isso. Só estou dizendo essas coisas porque é bom saber que não estamos sozinhos na nossa forma de pensar e entender o mundo.
Um grande abraço.
Maria