sexta-feira, 12 de setembro de 2008

[NJ] "Espíritos livres"

“ESPÍRITOS LIVRES”

“A solidão o cerca e o abraça, sempre mais ameaçadora, asfixiante, opressiva, terrível deusa e mater saeva cupidinum – mas quem sabe hoje o que é solidão?...”
– Friedrich Nietzsche

A respeito dos “espíritos livres”, o solitário Nietzsche diz que, quando deles precisou, foi forçado, não os tendo encontrado ao redor, a uma solução extrema: inventou-os. Nem todos, porém, podem ser um Nietzsche ou dispor assim de tanta imaginação. Nos tempos de hoje, muito menos – e, paradoxalmente – muito mais solitários, pergunto-me: há entre nós “espíritos livres” ou seria ainda necessário inventá-los?

Pode, de fato, soar ridículo falar em “espírito” e em “liberdade” no mundo contemporâneo – ainda mais para um crítico social radical que não acredita nem numa coisa nem noutra. É, no entanto, precisamente no contexto contemporâneo da total destruição da liberdade e precisamente para a crítica desta realidade que os procuro. Há ainda “espíritos” irresignados o bastante para buscar subverter as raízes deste mundo que faz resignar com brutalidade antes inimaginável? Há ainda homens e mulheres livres das determinações deste mundo, livres o bastante para se colocarem em ação para mudá-lo?

Cruel verdade parece ser que a desgraça da sociedade capitalista avançada não causa incômodo aos próprios desgraçados. A sociedade capitalista avançada cuida, afinal, de arrefecer os ânimos por todos os meios: compra a voz daqueles que ainda podem falar, ensurdece os ouvidos daqueles que ainda podem ouvir e emudece os mais miseravelmente subjugados – os que nada tem a perder. Quem ousa abrir a boca para criticar, para protestar, para clamar por mudança parece falar sempre sozinho – e espera, a seguir, os inevitáveis ovos e tomates daqueles que perderam não só a liberdade, mas o próprio espírito para o mundo cooptador e coisificador do capital.

O capital é, afinal, um dominador total. Submete os homens não apenas “por fora” – isto, aliás, não seria sequer uma “novidade histórica” –, mas também “por dentro”. O mundo do capital invade mesmo as profundezas do “eu”, padroniza os indivíduos como padroniza aquilo que sai das linhas produção, uniformiza a subjetividade como uniformiza as mercadorias face à loucura do consumo desenfreado. Que liberdade então? Que espírito? A derrota parece definitiva quando uma determinada organização social parece engendrar adequação por meio do esmagamento dos homens e parece reproduzir-se cada vez mais automaticamente. É como o moto-perpétuo: o fim do ciclo é sempre um recomeço e sempre um recomeço fortalecido.

Esta é, não por acaso, uma sociedade que se apresenta como sem saída. As portas parecem todas fechadas – só por isso, todos concluem que simplesmente não há alternativa. Porque as portas estão fechadas todos concluem, por um raciocínio absurdo qualquer, que não há nada por detrás delas. E se convencem de tal maneira que ninguém se dispõe a questionar a respeito. Eis o grande problema: dada a eficiência dissuasiva espantosa da sociedade do capital, parece que, ainda que as portas se escancarem, ninguém estará disposto a atravessá-las.

Mas há alternativa. Este mundo não será o mesmo para sempre – assim como não foi o mesmo desde sempre. A alternativa, no entanto, não se realizará sozinha. É preciso que existam homens dispostos a encampá-la, levá-la adiante, colocá-la em prática. É preciso que existam homens preparados para conduzir sua própria história adiante, com as próprias mãos. E é preciso que não sejam poucos. A vitória da alternativa será então, enfim, a plenificação dos “espíritos livres”, pois a nova sociedade já não será constrangedora de nossa liberdade. Antes, contudo, não devemos permitir-nos demover pelos obstáculos. Não importa que as portas da transformação social estejam fechadas – é possível ainda arrombá-las.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 06/09/2008]

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