quarta-feira, 13 de agosto de 2008

[NJ] Política e consumismo

POLÍTICA E CONSUMISMO

“Por quê?” – eis uma pergunta que ninguém se faz. Quando se assiste ao telejornal e se ouve censurar a corrupção, o “lobby”, o tráfico de influência ou qualquer outro tipo de interferência de interesses privados no exercício do poder público, a tendência é interpretar a barreira entre privado e público como algo “natural”. Por que o privado não pode interferir no público? Por que o privado se distingue do público? Ora, de “natural” a distinção não tem nada. Fosse “natural”, a sociedade moderna – a nossa sociedade, a sociedade capitalista – não seria a única formação social e histórica a conceber a distinção entre particular e geral, entre individual e coletivo, nos termos da dicotomia privado vs. público. Nenhuma sociedade historicamente anterior chegou a tanto.

Já aqui alguém poderá objetar que vem dos antigos romanos a idéia de res publica, coisa pública, que acabou dando nome a uma forma de governo. E é verdade. Mas isto apenas indica que os antigos romanos chegaram a diferenciar, a seu modo, coisa pública de coisa privada. Na sociedade moderna, privado e público não apenas se diferenciam – opõem-se. Nem os antigos, nem os medievais chegaram tão longe. Apenas a nossa sociedade se erige sobre a oposição, como que em “corpos” diversos, isolados um do outro, entre o puramente privado e o puramente público – estes “corpos” são, respectivamente, a sociedade civil e o Estado.

A questão é que, a despeito da oposição, deve haver “passagem” da sociedade civil ao Estado (e vice-versa), “passagem” que é dada sobretudo através do peculiar mecanismo das eleições. As eleições, como se sabe, funcionam como um recenseamento de vontades individuais, de modo a formar a vontade coletiva, a “vontade” do Estado. Sua peculiaridade é que, ao votar, os indivíduos da sociedade civil não se comportam como tais, mas como cidadãos. A sociedade civil é o lugar do interesse privado, mas os indivíduos, nas eleições, não manifestam – ou não deveriam manifestar – suas vontades egoístas, escolhendo o que é melhor para cada um isoladamente. Como cidadãos, os indivíduos se tornam não mais seres isolados e egoístas, mas partícipes do Estado e altruístas – nesta qualidade, devem manifestar sua vontade voltada ao público, escolhendo o que é melhor para o coletivo.

A fictícia, por assim dizer, “divisão” de um só e mesmo homem em ora indivíduo egoísta, ora cidadão altruísta, é evidente, não funciona tão bem quanto planejado. A transmutação do indivíduo em cidadão não é suficiente para apagar a sua existência como um membro da sociedade civil. Mais ainda, o procedimento (público) das eleições se fundamenta, em última instância, no mesmo voluntarismo e no mesmo individualismo que fundamentam a infinita rede de relações econômicas (privadas) da sociedade civil: as eleições se estruturam sobre uma circulação de vontades individuais, tanto quanto a circulação de mercadorias. No fim das contas, o modelo do mercado, que é sumamente privado, é lastro para a formação da vontade coletiva, que é sumamente pública.

Privado e público têm, portanto, uma relação dialética: quanto mais radicalmente separados, mais profundamente ligados. Um não pode ser senão pelo outro. Tanto é que os mesmos “exageros” contemporâneos verificados no mercado, a esfera do privado, acabam por se manifestar de algum modo também na política, a esfera do público. Se, no mercado, vivemos a era do consumismo obsessivo, alimentado pelo crescente poder social da publicidade; na política, de modo semelhante, vivemos uma espécie de “consumismo eleitoral”, igualmente alimentado pela publicidade. E mais, as estratégias de publicidade que fomentam o “consumismo eleitoral” são muito semelhantes às que fomentam o consumo desenfreado de mercadorias.

Um candidato já não é hoje propriamente votado, é “consumido”. O consumo é igualmente efêmero em ambos os casos: a mercadoria consumida proporciona uma satisfação instantânea e falsa, o voto impensado mal chega a satisfazer qualquer coisa – e até o nome do candidato será esquecido dias depois. Como aquilo que ontem foi inútil e hoje se torna necessidade premente, o candidato que até ontem não preenchia as expectativas políticas dos eleitores acaba, hoje, pela propaganda eleitoral, transformado no único que atende às expectativas – não necessariamente políticas – de toda uma fatia do eleitorado. A propaganda faz vender praticamente qualquer coisa. No mercado de homens em que se converteram as eleições, um bom “investimento” em propaganda faz eleger praticamente qualquer um.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 10/08/2008]

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