sexta-feira, 30 de outubro de 2015

sem resposta – 2 – Annatar, Gorthaur, Mairon, Sauron


(Com agradecimentos aos amigos Júlio Criscimani e Thiago Pierotti,
por quem eu, como Théoden, reuniria até o último dos cavaleiros de Rohan.)

A vida tem certas constantes, como opções políticas e preferências literárias. Confrontando essas opções e essas preferências, há anos tenho me perguntado: como é possível que um marxista goste da obra literária de um Tolkien?

A pergunta talvez soe estranha para um marxista menos informado (sobre o gênero literário fantasia) ou para um leitor de Tolkien menos atento (à política e à história), mas ela se coloca com evidência incontornável quanto um olhar marxista se encontra com o texto da narrativa fantástica de Tolkien. E se coloca com um choque. Um olhar marxista, crítico, “de esquerda” não pode evitar notar que o substrato político da narrativa de Tolkien é “de direita”, conservador, talvez reacionário – e o marxista por trás desse olhar não pode evitar a surpresa (e uma certa autocrítica) por discordar dessa política em segundo plano enquanto aprecia a narrativa em primeiro.

Como, pergunto-me e pergunto a qualquer leitor de Tolkien, não torcer pelo sucesso da Companhia do Anel, desde a sua partida de Rivendell, em sua dupla missão: destruir o Anel e levar de volta o herdeiro perdido até Minas Tirith? Como não torcer por Frodo e Aragorn – e por Gandalf, que nos faz crer que toda a esperança da Terra-Média reside no sucesso desses dois personagens? Mas, ora, o que significam Frodo e Aragorn? Em que consistem as esperanças da Terra-Média personificadas em Gandalf? Consistem, deve responder o marxista (inclusive para si mesmo), na manutenção do status quo, manutenção de uma hierarquia social de tipo estamental e dos valores tradicionais da família, da religião e da nobreza. A destruição do Anel é a destruição da única força capaz de colocar em risco a perpetuação desse estado de coisas. Essa força corresponde precisamente ao Senhor dos Anéis, Sauron, que congrega (embora dependa do Anel para fazê-lo plenamente) o que há de mais baixo na hierarquia social da Terra-Média – os orcs, os homens que se afastaram da tradição e da religião dos Valar, os estrangeiros e “bárbaros” do leste (que se opõem, num eurocentrismo atroz, à “civilização” do oeste). E Tolkien identifica o mais baixo da hierarquia social imediatamente com o feio, o sujo, o ignorante – em última medida, com o “mal” que se opõe ao “bem”, ao único “bem”, que consiste na ordem estabelecida pela civilização ocidental dos elfos e do “melhor” dentre os homens.

No movimento próprio dessa narrativa, destruir o Anel não implica qualquer transformação. Implica, ao contrário, bloquear a única possibilidade real de transformação: apagar o olho flamejante que, do oriente, observa atento, enquanto se articula para o ataque, ao que se passa nas terras do oeste. Implica, noutras palavras, dar cabo à simples possibilidade da transformação, à simples possibilidade do “novo”. E, cumprida a parte de Frodo, a garantia final contra qualquer irrupção do “novo” reside em Aragorn, isto é, na restauração da casa dinástica da monarquia de Gondor, tão habilmente representada por Tolkien na dupla metáfora da reforja da espada quebrada da linhagem de Númenor (a “chama do oeste”) e dos poderes curativos do herdeiro de sangue (“the hands of the king are the hands of a healer”). Nobreza, linhagem, pureza de sangue, tudo se sintetiza em Aragorn, cuja árvore genealógica, delineada com cuidado quase obsessivo, é exemplar: todas as casas nobres de elfos e homens, desde o primórdio dos tempos, convergem numa única figura. E percebemos, então, o porquê – aristocraticamente, a sua genealogia deve estar à altura de sua tarefa: restaurar uma antiga glória, “purificar” a corrupção dos reinos numenoreanos na Terra-Média, corrupção que, não por acaso, tem início quando os herdeiros de Arnor questionam a sagrada primogenitura, fracionando o reino, e quando a linhagem de Gondor enfraquece a sagrada nobreza de seu sangue, misturando-o a outros menos nobres. Aragorn triunfa, restaura a monarquia, reunifica os reinos do norte e do sul e, assim, reafirma a sua – justa, diria Tolkien – suserania sobre toda a Terra-Média. Na leitura regressiva da história – que vê o presente e o futuro como contínua decadência frente ao passado glorioso – e na leitura reacionária da política – que defende abertamente o retorno ao passado como alternativa – que subjazem a toda obra de Tolkien, não pode haver melhor desfecho.

Como, no mais, não vibrar com Fingolfin, cavalgando sozinho para enfrentar o inimigo invencível – a personificação do “mal” anterior a Sauron e, como toda “anterioridade” em Tolkien, mais forte, mais nobre, maior – depois da Batalha das Chamas Repentinas? Mas é impossível negligenciar, numa leitura crítica, que Fingolfin personifica algo estranho ao presente e que, portanto, a sua batalha e a sua morte louvam, uma vez mais, o passado. E qual passado? Fingolfin encarna, no máximo possível, os valores da bravura e da honra, valores típicos da nobreza guerreira do mundo feudal. Diante da derrota, ele prefere a morte honrada a reinar sobre nada. Seu desfecho espelha algo profundamente estranho ao indivíduo da sociedade capitalista – tudo que lhe importa é a honra e seu sacrifício é certamente honroso, mas não produz nada, não gera qualquer resultado, qualquer proveito. A “aliança derradeira de homens e elfos” não pode, afinal, derrotar o inimigo – Morgoth é um Vala, pertence a um status superior mesmo àquele dos elfos de linhagem mais elevada e (para Tolkien) o status simplesmente não pode ser subvertido. A “solução” pode advir apenas da intervenção dos próprios Valar, isto é, da intervenção divina – e isto só ocorre, no final do Silmarillion, por meio da submissão integral de elfos e homens, diante do pedido de misericórdia, deixando de lado o orgulho e todas as ambições profanas, no melhor espírito cristão. Exatamente como no mundo feudal, toda a ordem social se fundamenta e se entende a partir da religião. A hierarquia social se define da divindade para baixo: “omnis potestas a deo” ou Valar ou Eru. Tudo aquilo que diz respeito a essa hierarquia é, portanto, sagrado.

Tolkien assim define o gênero fantasia como escapismo, como projeção para fora do presente, e, ao mesmo tempo, define tal projeção como inócua: ao olhar para trás, ela assume sua impotência, assume como única saída a regressão. Quando essa fantasia se encontra com o desajuste do leitor diante do presente, a sua expressão tende a ser conservadora. Nesse sentido, a fantasia de Tolkien é mesmo uma fantasia medieval, na medida em que é para o modelo feudal de sociedade que Tolkien volta o seu olhar. É esse modelo de sociedade que todo o universo de O senhor dos anéis e de O silmarillion reproduz – ao que me parece, com competência – e louva.

Exemplar, a esse respeito, é a relação entre Rohan e Gondor, os dois principais reinos do oeste no momento do último confronto com Sauron. Embora Rohan seja um reino independente e, portanto, não seja formalmente vassalo, a sua relação com Gondor é claramente de dependência e de submissão. Na “sagrada” ordem natural das coisas, é absolutamente necessário que assim seja: ainda que decadente, Gondor é um reino numenoreano, seu status é superior, enquanto Rohan é um reino de “middle men”, talvez o melhor possível para um reino de homens “inferiores”, mas ainda assim inferiores. (Essa diferença de status se manifesta inclusive biologicamente: os gondorianos são mais belos e tem um tempo médio de vida várias vezes superior ao dos rohirrim.) Rohan, de fato, nasceu do enfeudamento cedido pelos gondorianos e tornou-se reino independente como recompensa dos gondorianos pela ajuda recebida em batalha: sob uma condição, a promessa perpétua de ajuda futura em batalha. Ora, a promessa de ajuda em batalha constitui precisamente um dos bastiões do laço entre suserano e vassalo no mundo feudal, um dos pilares da relação de dependência pessoal entre senhores de níveis hierárquicos diversos. Trata-se, no ideário feudal, da honra pessoal do senhor que está em questão: é seu dever de honra enviar seus exércitos para lutar ao lado dos exércitos do seu suserano. A “flecha vermelha”, que a adaptação para o cinema substituiu por uma linha de faróis, é o símbolo dessa promessa.

Aqui, aliás, está situada uma das diferenças mais significativas entre os livros e os filmes de O senhor dos anéis. No texto de Tolkien, Théoden, rei de Rohan, logo depois da Batalha do Abismo de Helm, reúne o que restou de seus cavaleiros e, por conta própria, marcha para Minas Tirith, para auxiliar Gondor diante do ataque iminente. Théoden não espera pelo chamado de Gondor – ele já está em marcha quando encontra o mensageiro portador da flecha vermelha. A vitória no Abismo de Helm foi por pouco, seus exércitos mal puderam se recuperar, suas forças estão seriamente debilitadas, mas ainda assim Théoden, sem um momento qualquer de dúvida ou hesitação, deixa o seu próprio reino e marcha para Gondor. É a sua honra que prepondera, acima de qualquer outro fator. E quando Théoden é derrotado por um dos nazgul diante da muralha de Minas Tirith, Tolkien retrata a sua morte como gloriosa: porque ele morre cumprindo o seu dever de honra e porque ele morre lutando por homens de um escalão muito superior ao dele próprio. No filme, porém, encerrada a Batalha do Abismo de Helm, os rohirrim se reagrupam em Edoras e Théoden aguarda. Sua atitude inicial é negativa: “O que devemos a Gondor? Por que deveríamos ajudar Gondor se Gondor não nos ajudou?” Théoden tem que ser convencido a mudar de posição, o que só ocorre com a efetiva chegada do pedido de ajuda de Gondor e diante da figura questionadora de Aragorn (que, a essa altura, o rei de Rohan já sabe ser o legítimo herdeiro da linhagem numenoreana). Mas essa atitude distorce o movimento próprio da narrativa de Tolkien. O Théoden da adaptação para o cinema faz, como um indivíduo da sociedade moderna, um cálculo. Esse indivíduo calculador pressupõe, no entanto, a própria sociedade moderna como sua condição de possibilidade. É como se, deslocado anacronicamente, tivéssemos o homo oeconomicus burguês como rei de Rohan, decidindo prestar ou não auxílio a Gondor, pensando como homem do mundo capitalista em pleno mundo feudal. O Théoden de Tolkien não é esse homem: movido pela honra, como típica idealização do nobre feudal, esse cálculo sequer lhe ocorre.

A única notável exceção ao rigor do medievalismo de Tolkien é, talvez, o protagonismo dos hobbits em sua narrativa. Os hobbits são, afinal, as criaturas mais frágeis de todo o universo de Tolkien – e é justamente aos hobbits que cabe a mais difícil de todas as tarefas: “salvar o mundo”, entrando secretamente em Mordor e atirando o Anel nas chamas da Montanha da Perdição. Esse papel tem, é claro, as suas razões. Ele é “herdado” de O hobbit, originalmente uma história infantil, cujo protagonista é Bilbo Baggins– e é digno de nota que os hobbits estejam ausentes de O silmarillion, o texto mais “sério” e “adulto” de Tolkien. No interior da narrativa de O senhor dos anéis, a justificativa para o protagonismo dos hobbits é dada por suas qualidades peculiares: a inocência, a simplicidade, a leveza de espírito e a ausência de ambição fazem com que os efeitos do Anel sejam particularmente reduzidos neles (razão pela qual Bilbo pode ser o portador do Anel por tanto tempo e Frodo pode resistir até o momento derradeiro sem se corromper). Mas aqui podemos perceber, nas entrelinhas, que, se os hobbits representam alguma exceção, esta exceção é ainda parcial. As suas virtudes peculiares, ainda que soem destoantes, são virtudes tipicamente cristãs. E, junto com elas, uma outra virtude tipicamente cristã opera silenciosamente – e esta talvez seja mesmo a virtude principal dos hobbits, superior a qualquer outra. Dentre todas as criaturas da Terra-Média, os hobbits são aqueles que parecem mais “acomodados” ao lugar a eles determinado na ordem social. A ausência de ambição que os afasta da sedução do Anel é, na verdade, a ausência de qualquer pretensão a um poder ou a um status superiores àqueles que lhes correspondem em vista de sua posição, de seu “sangue”, de sua origem. Assim, a impotência da fantasia de Tolkien se reafirma no final, mesmo quando a sua narrativa parece “dar voz” aos mais fracos: aqueles que ganham a projeção aparentemente menos proporcional ao seu status são, ao mesmo tempo, aqueles que demonstram a maior resignação diante do próprio status. O caráter sagrado do status triunfa mesmo quando a menor das criaturas cumpre o maior de todos os feitos.

Então, eis ainda a pergunta que permanece: como é possível que um marxista goste da obra literária de um Tolkien? A minha longa digressão, claro está agora, não ofereceu qualquer resposta: ela apenas registra a agonia da falta de resposta. E já não posso alegar, a essa altura, que não sei o que estou fazendo... Mas ainda gosto da obra de Tolkien e ainda a reprovo...

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