quinta-feira, 22 de novembro de 2012

[Crítica Social] Redenção pelo adjetivo


REDENÇÃO PELO ADJETIVO

Carência de radicalidade, recusa em avançar até as últimas consequências, temor da ruptura ou, em última instância, um compromisso não inteiramente superado com a sociedade presente conduzem, não raro, o pensamento crítico – em qualquer nível – à estranhíssima tentativa de redenção pelo adjetivo. Incapaz de atingir o cerne do objeto, o substantivo propriamente, a crítica procura “salvá-lo” através de um adjetivo qualquer: “concreto”, “material”, “real”, “social” etc.

Assim ocorre com frequência, por exemplo, na crítica das formas políticas e jurídicas do mundo burguês, peças-chave da própria ideologia burguesa: democracia, igualdade, liberdade, humanismo. Não há, em nenhum desses casos, nada a “salvar” – a crítica social radical, portanto, não deve propor novas modalidades de democracia, igualdade, liberdade ou humanismo, mas a sua superação, isto é, a sua extinção. Mas há quem suponha que este “salvamento” é lícito e possível pela simples anexação de um adjetivo – bastaria falar, então, em “democracia real”, “igualdade material”, “liberdade concreta”, “humanismo social” etc. (As combinações entre substantivos e adjetivos podem aqui, na verdade, variar quase aleatoriamente.)

Uma “democracia real”, no entanto, em nada difere essencialmente da democracia tal como se conhece hoje – que poderia artificiosamente ser dita, em oposição a “real”, democracia formal. Fundada na forma sujeito, a democracia reproduz no nível político o movimento típico da circulação de mercadorias e da produção capitalista. Não há, na democracia, nenhuma “realidade” além disto, não há adjetivo que possa redimi-la da condição de forma política típica do capitalismo.

Uma “igualdade material” e uma “liberdade concreta”, do mesmo modo, estão tão fundadas na universalização da condição de sujeito de direito – que é, por sua vez, efeito do movimento mais íntimo da produção capitalista – quanto uma igualdade e uma liberdade formais ou abstratas. A defesa dos atributos jurídicos do homem, quaisquer que sejam os seus adjetivos, não pode ser senão a defesa, mais ou menos velada por palavras vazias, da produção capitalista.

O mesmo se aplica a um suposto “humanismo social” (ou “real” ou “concreto”, tanto faz). O eterno retorno a uma “essência” humana, com os seus atributos inalienáveis e supremos, é uma das bases do pensamento burguês. É, no fim das contas, indiferente encontrar esta “essência” numa razão e numa liberdade transcendentes ou na vida em sociedade ou na atividade do homem “concreto” que trabalha e produz. O substantivo mantém os seus compromissos de classe ainda quando o adjetivo procura, ingênua ou cinicamente, afirmar o contrário.

A consequência última da redenção pelo adjetivo é, em qualquer situação, esta mesma: o reformismo, a bandeira das mudanças parciais e progressivas – que, na verdade, mantém o essencial intocado. Mas a proposta da crítica social deve ser outra: não se trata de dar novas roupagens para velhas formas, mas de romper com o velho (isto é, o atual) para instituir algo inteiramente novo.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 21/11/2012.]

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

[Crítica Social] Mais do que indignação


MAIS DO QUE INDIGNAÇÃO

Parece haver, na estratégia de operação da grande mídia, um lugar permanente para a matéria causadora de indignação da vez. A cada momento um assunto diferente ocupa este espaço, mas tudo que se espera é a mesma reação, o mesmo “isto é um absurdo!” do leitor ou do espectador diante da notícia com a qual se depara e com seus desdobramentos.

Hoje, este lugar parece ser ocupado pela onda de violência que atinge a cidade de São Paulo, com um número crescente e alarmante de homicídios sendo cometidos todos os dias. Mais ou menos ao mesmo tempo, apareceu como grande causadora de indignação a notícia de uma carta redigida por uma comunidade Guarani-Caiová do Mato Grosso do Sul contra uma decisão da Justiça Federal que ordena a sua retirada à força da área que ocupam. Poucas semanas atrás, ocupou o posto de notícia indignante o leilão virtual da “virgindade” de uma jovem de Santa Catarina.

Este último caso é insignificante: a indignação do público deveria ser voltada para a desfaçatez da grande mídia em apelar a um moralismo tão tosco para vender uma notícia descartável. Os outros dois casos, por outro lado, são autenticamente causadores de indignação: a violência urbana e o massacre dos povos indígenas brasileiros são assuntos graves e urgentes, preocupações reais que deveriam ocupar a atenção do público permanentemente e não apenas quando expostos no noticiário. Para a grande mídia, no entanto, a dimensão real do problema é secundária: só importa que o assunto sirva para o mesmo tratamento sensacionalista de sempre.

Que o público seja ainda capaz de indignar-se é bom sinal. Esta indignação é, contudo, desviada pelo sensacionalismo midiático na direção errada. A indignação instantânea com a notícia do momento é também efêmera e isolada – é indignação com “A” que acabou de ser denunciado pelo jornal, mas logo depois com “B” que apareceu na TV e dias depois com “C”, “D” etc. O público é assim impedido de tomar ciência de que a causa dos acontecimentos indignantes que lhe são expostos é a mesma – e que, portanto, não faz sentido voltar-se para os efeitos, um por vez, como se estivessem desconexos. É contra a própria causa que deve voltar-se a indignação.

Para ficar nos três exemplos levantados: a causa última de todos é a própria estrutura econômica da sociedade em que vivemos. É a desigualdade essencial à produção capitalista que alimenta a violência urbana, exclusão social que explode em violência sobretudo nas periferias das grandes cidades. É a economia capitalista que inviabiliza a preservação das comunidades indígenas – porque o indígena não é vendedor de força de trabalho para a exploração do capital e não é consumidor, portanto não tem lugar no mundo capitalista, isto é, não tem lugar no mundo. E é a redução de tudo à forma de mercadoria, inclusive aquilo que não é produto do trabalho humano, que explica algo como um leilão de sexo – como também a prostituição impulsionada pela miséria, o que é muitíssimo mais preocupante do que a pequena aventura de uma jovem de classe média.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 07/11/2012.]