quinta-feira, 30 de agosto de 2012

[Crítica Social] “Corações Sujos” e a moralização da história


“CORAÇÕES SUJOS” E A MORALIZAÇÃO DA HISTÓRIA

Estreou nos cinemas há pouco mais de uma semana “Corações Sujos”, filme dirigido por Vicente Amorim e baseado no livro homônimo de Fernando Morais de 2000. Como enredo, o momento da história dos imigrantes japoneses no Brasil: ao fim da Segunda Guerra Mundial, segregada, discriminada e privada de acesso à informação, parte substancial dos imigrantes japoneses recusou-se a aceitar a derrota do Japão para os Aliados. Inspirada, em parte, por ideais ultranacionalistas, a ala mais radical destes “vitoristas” agrupou-se em torno da organização “Shindo Renmei” e entrou em conflito aberto com a outra parte da colônia japonesa, taxada de “derrotista”. O palco principal deste conflito foi o interior de São Paulo, sobretudo a região de Bastos, e o seu resultado foi trágico: ao menos 23 assassinatos e centenas de feridos.

No filme, porém, este evento histórico aparece apenas marginalmente, como “pano de fundo”. Não se trata, é bem verdade, de um documentário, portanto não se pode esperar que a fidelidade quanto à história seja plena, nem que a história real ocupe o lugar central. Mas há, de todo modo, exagero: a história da “Shindo Renmei” é diminuída até o ínfimo do drama pessoal de poucos personagens, relegada a uma dimensão meramente moralizante e descontextualizada.

Não há, por exemplo, qualquer preocupação mais séria em mostrar a situação de vida dos imigrantes japoneses em meados da década de 1940. Não há qualquer pista das condições nas quais os japoneses deixaram o país de origem, dos motivos pelos quais o fizeram, das expectativas e frustrações que carregavam consigo, sobretudo da situação econômica que determinou este movimento. O surgimento da “Shindo Renmei” aparece, de início, creditado unicamente a um ufanismo gratuito e o desenvolvimento posterior da narrativa apenas piora este quadro: a escalada da violência acaba reduzida à má consciência de um único personagem, que, por mau-caratismo e/ou loucura que simplesmente permanecem sem explicação, manipula os compatriotas em favor de seus próprios interesses. Encarnação de todo o mal, a morte deste único personagem – deste único homem – é identificada imediata e precariamente com a extinção de toda a “Shindo Renmei” – que congregou milhares de japoneses – e de toda a violência – que perdurou por anos.

É, sem dúvida, interessante que este “trauma”, este fantasma que assombra há quase 70 anos a colônia japonesa no Brasil, seja dado ao conhecimento do grande público. Mas é, por outro lado, um problema permitir que um acontecimento histórico desta magnitude seja apresentado de forma parcial. Não foram os “corações sujos” de homens “maus” que causaram este acontecimento e a dissolução de relações amorosas não foi o seu impacto mais relevante. A história – da “Shindo Renmei”, da imigração japonesa ou do que quer que seja – não é feita pela boa ou má vontade, pela consciência pura e simples ou por escolhas meramente individuais. O “equívoco” do filme – se é que há algum – é, nesse sentido, o equívoco mais do que corrente de moralizar a história.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 29/08/2012.]

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

[Crítica Social] Por que temer as cotas em universidades públicas?


POR QUE TEMER AS COTAS EM UNIVERSIDADES PÚBLICAS?

Há alguns dias foi aprovado no Congresso um projeto de lei que institui a reserva de 50% das vagas nas universidades federais para estudantes provenientes de escolas públicas. Censuras de todos os tipos e baseadas em todos os argumentos possíveis – especialmente nos mais absurdos e preconceituosos – surgiram desde então, mas a medida deve ainda ser encarada como uma vitória.

A universidade pública precisa ser entendida como algo mais do que uma instituição para a pura e simples distribuição de diplomas. Seu papel perante a sociedade na qual se insere e que a sustenta deve ser muito diverso do papel desempenhado por qualquer instituição privada ou por qualquer outro tipo de instituição de ensino. Os seus critérios de seleção devem, exatamente por isso, atender a requisitos muito maiores e mais complexos do que o desempenho num exame vestibular ou a meritocracia.

Nada mais razoável do que ter assegurada, na universidade pública, pelo menos a metade das vagas para estudantes provenientes do ensino público. A metade das vagas é, na verdade, o mínimo: a reserva – ou a “cota”, como se prefere chamar – poderia muito bem ser mais ampla. Trata-se de um meio de garantir o acesso ao ensino superior para a parcela mais abrangente da população e, portanto, de aproximar a universidade pública daquele que deve ser o seu autêntico “público-alvo”. Trata-se, mais ainda, impedir um círculo vicioso pelo qual a parte da população que tem acesso ao ensino superior continua a ser precisamente a pequena minoria mais abastada, como um “privilégio” que continuamente alimenta a si próprio. E, assim, pode-se pretender a participação da universidade pública num importante – ainda que muito superficial, é bem verdade – processo de transformação social.

O sistema de “cotas” não é, claro, o melhor meio para tanto. Um sistema de educação pública universal e de excelência em todos os níveis seria o ideal. Mas este ideal está ainda muito distante: na verdade não pode ser plenamente atingido dentro da estrutura social presente. Assim sendo, exigir o completo imobilismo enquanto um tal sistema de educação pública não se realiza, ou seja, aguardar que este incremento simplesmente “caia do céu” é uma hipocrisia: é uma forma velada de defender que tudo permaneça exatamente como está, que os “beneficiados” continuem a ser os mesmos de sempre, que a educação continue a bloquear ao invés de propiciar alterações na estrutura da sociedade brasileira.

A instituição de um sistema de “cotas” para estudantes provenientes de escolas públicas é apenas o primeiro passo. Por que os opositores das “cotas” se empenham tanto em censurá-las? Por que temem as “cotas”? Ora, os opositores deste pequeno avanço parecem, na verdade, temer a grande massa de despossuídos, explorados e excluídos cujos interesses esta medida indiretamente atende.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 15/08/2012.]

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

[Crítica Social] Solução e problema


SOLUÇÃO E PROBLEMA

O julgamento do caso do “mensalão”, atualmente em curso, traz para o centro das atenções o tribunal e o direito. Assim acontece, na verdade, com todos os processos que envolvem algum apelo midiático, com os escândalos convertidos em exemplos moralizantes, com os crimes cuidadosamente explorados para que se transformem em grandes momentos de comoção nacional. De repente, tudo que importa é “fazer justiça” – isto é, a punição, o mal devolvido na exata medida do que é “merecido”, o castigo que faz com que o culpado “pague” pelo que fez.

O direito aparece como a “solução”, como o instrumento pelo qual se restabelece a ordem. A justiça aparece neste restabelecimento da ordem – no “dar a cada um o que é seu”, como já dizia o provérbio romano ainda tão repetido, tão irrefletidamente repetido pelos juristas. Mas qual é esta ordem a ser restabelecida? O que o “seu” de “cada um”, o “seu” a ser sempre garantido, fixado, devolvido?

Se o justo é o retorno ao estado anterior, então não se pode esperar do tribunal ou direito mais do que a reafirmação da ordem já estabelecida. Mas a reafirmação da ordem estabelecida é a permanente reafirmação da sociedade presente. Garantir a cada um o que é “seu” é garantir uma distribuição profundamente desigual da riqueza, retornar a riqueza desigualmente distribuída para os seus detentores originais. Trata-se do retorno incansável do mesmo, da reafirmação incansável da oposição entre classes sociais e de uma estrutura social na qual uma minoria se beneficia da exploração do trabalho da maioria.

Como mostraram Marx e, da maneira mais contundente, o jurista marxista Pachukanis, o direito está intimamente vinculado à estrutura da sociedade capitalista. A forma jurídica tem suas raízes na circulação de mercadorias e se manifesta como a forma pela qual o próprio homem se converte em mercadoria. A igualdade e a liberdade do direito são o espelho da equivalência das mercadorias e de um modo de produção movido pela valorização do valor. A realização do direito não é, não pode ser senão a realização disto: da exploração do trabalho, das relações de produção capitalistas, do processo de multiplicação do capital.

A “solução” oferecida pelo direito não é, portanto, senão a “solução” já dada pela ordem capitalista. O direito não pode, por isto mesmo, oferecer nenhuma autêntica “solução” – trata-se, na verdade, de parte do problema.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 08/08/2012.]

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

[Crítica Social] O espetáculo olímpico


O ESPETÁCULO OLÍMPICO

Repetidos a cada 4 anos, intensamente televisionados e noticiados, os Jogos Olímpicos constituem um verdadeiro espetáculo. A produção hollywoodiana da cerimônia de abertura, a transmissão contínua, o sensacionalismo dos recordes, todos os elementos parecem meticulosamente arranjados para tanto. Quem pode correr mais rápido, quem pode saltar mais longe, quem pode vencer – em disputa, a superioridade, a glória, os limites físicos e biológicos do homem. Mas apenas isto?

Na sua suposta origem, as olimpíadas integravam uma celebração religiosa. Os gregos corriam, saltavam e lutavam em honra aos deuses. Nas olimpíadas modernas, a despeito de sua alegada ascendência, este aspecto religioso já não existe – mas os atletas de hoje certamente não empenham o máximo de suas aptidões e esforços apenas em honra ao esporte, pelo puro prazer da competição ou pela simples glória de ter o nome gravado na história como vencedor. As olimpíadas modernas são, no seu íntimo, consagradas a um único ídolo – o dinheiro.

No que diz respeito aos atletas, mais do que prêmios e medalhas, estão em disputa patrocínios e recursos que lhes permitem ganhar a vida através do esporte – ou seja, que lhes permite viver como atletas profissionais. Nenhum atleta, claro, tem “culpa” por isto – e as conseqüências disto são, ao menos diante das câmeras de TV, positivas: disputas mais acirradas, em nível cada vez mais alto, com resultados extraordinários que desafiam os limites do humanamente possível. Mas, para além das câmeras de TV, esses resultados extraordinários custam, não raro, sacrifícios e danos corporais permanentes, cujos sinais aparecem apenas depois da curta “carreira” de um profissional do esporte. São, afinal, os desdobramentos óbvios de um corpo que é adestrado, exigido e manipulado (inclusive quimicamente) para, na verdade, além do que pode suportar.

No que diz respeito aos patrocinadores, os atletas não são mais do que outdoors que se movem. E, no mundo do capital, nenhum patrocínio é ingênuo: só se investe dinheiro no esporte e no espetáculo olímpico porque isto significa, de algum modo, ganhar mais dinheiro. Não se investe, de um modo geral, uma soma exorbitante na organização e realização dos Jogos Olímpicos – dinheiro público, inclusive – por acaso. Do ponto de vista da sede, há uma evidente movimentação de recursos com o turismo e benefícios para a infra-estrutura da cidade sede que são permanentes, mas os ganhos com o turismo ficam sobretudo com a iniciativa privada e as melhorias na infra-estrutura poderiam (ou deveriam) ser feitas independentemente das olimpíadas ou de qualquer evento do tipo. O que move, no fim das contas, todo o espetáculo é o interesse privado de alguns poucos.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 01/08/2012.]