quinta-feira, 31 de maio de 2012

[Crítica Social] Direito de greve?


DIREITO DE GREVE?

A greve é um instrumento legítimo de luta da classe trabalhadora. O direito de greve, por outro lado, não pode ser encarado como o bastião fundamental desta luta – como não pode, de um modo geral, ser a luta dos trabalhadores reduzida a uma simples luta “por direitos”. A juridificação da greve – isto é, a sua redução a direito de greve e, assim, a instituição da distinção entre “greve lícita” e “greve ilícita” – é, na verdade, a sua “domesticação”: a greve passa a ser admitida como direito apenas na medida em que se limita a reivindicações pontuais, estritamente relacionadas a questões profissionais, afastado qualquer conteúdo político. Mas a despolitização da greve implica o sacrifício de sua maior força.

O advento, a constitucionalização e a garantia de um direito de greve não significam, portanto, um avanço substancial no que diz respeito a uma transformação social radical. Pelo contrário, são um meio de simultaneamente dar voz aos trabalhadores e de silenciá-la no que é essencial e urgente. Trata-se, ainda que indiretamente, de promover a reprodução da estrutura social presente, permitindo a paralisação dos trabalhadores e impedindo que as suas reivindicações ultrapassem os limites “seguros”.

Pois bem. Na última semana, os metroviários de São Paulo realizaram uma greve. O evento foi amplamente noticiado pela grande mídia, com especial destaque para os “transtornos” causados no transporte da cidade. Pouca atenção foi dada, como sempre, às reivindicações dos grevistas, mais do que razoáveis. E pouca importância foi dada a outro dado: a Justiça do Trabalho decidiu, antes da paralisação, que, sob pena de multa de R$ 100 mil ao dia, os grevistas deveriam manter 100% de funcionamento do metrô nos horários de pico e 85% em todos os demais horários.

Ora, qual greve pode desenvolver-se com, no máximo, 15% de paralisação? Qual greve pode servir, nestas condições, como instrumento de luta para os trabalhadores? Ou, em termos propriamente jurídicos, há, diante de uma tal limitação, um direito de greve ainda assegurado?

Se o direito de greve já não é sinal concreto de qualquer avanço substancial, o que dizer de uma situação em que mesmo este mínimo não pode tornar-se realidade? O que dizer diante de um contexto tal em que, mesmo com todas as restrições referentes às reivindicações “juridicamente admissíveis”, a greve não possa ser aceita?

Trata-se, sem dúvida, de uma situação francamente desfavorável aos trabalhadores, de um contexto de franca e desmedida resistência à luta contra o domínio do capital. Isto, no entanto, não deve redundar em conformismo ou desmobilização: o que se exige é mais luta, mais mobilização, mais força para vencer o invencível, para superar os poderes que bloqueiam o advento de uma nova e cada vez mais necessária forma de sociedade.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 30/05/2012.]

quinta-feira, 24 de maio de 2012

[Crítica Social] Internet, compartilhamento, propriedade


INTERNET, COMPARTILHAMENTO, PROPRIEDADE

O site livrosdehumanas.org, conhecido por compartilhar gratuitamente versões digitalizadas de inúmeros livros, muitos dos quais raros e difícil acesso, foi bloqueado na última semana por conta uma ordem judicial emitida a pedido da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR). O episódio deve servir, no mínimo, para propor alguns importantes questionamentos.

Em primeiro lugar, para que servem os progressos tecnológicos e informáticos? Afinal, o desenvolvimento (e, recentemente, o barateamento) dos computadores e a ampliação do acesso à internet tornaram perfeitamente possível a distribuição em muito maior escala e de maneira muito mais aberta – até mesmo inteiramente gratuita – de uma série de bens culturais, como músicas, vídeos e textos. Tornou-se possível assegurar o acesso a tais bens a toda uma parcela da população que, do contrário, sequer tomaria conhecimento da sua existência ou não poderia dispor dos meios necessários para tanto. Só não se pode fazê-lo porque a estrutura mesma desta distribuição ainda constitui um obstáculo.

Que obstáculo é este? Ora, a distribuição de músicas, vídeos e textos é, até o presente, controlada por gravadoras, produtoras e editoras que atuam, como não poderia deixar de ser, em regime de mercado e que, portanto, fazem da distribuição uma atividade orientada para o lucro. Toda a distribuição é, portanto, realizada em regime de concorrência e determinada pelo movimento próprio do capital: a sua finalidade não é, em primeiro plano, a efetiva difusão da cultura, o acesso da maior parte possível da população ou os avanços culturais e intelectuais possibilitados pelo acesso ampliado e aberto.

Qual, então, o (suposto) ilícito cometido através do livrosdehumanas.org? O compartilhamento gratuito de livros digitalizados certamente atente ao interesse de muitas pessoas, sobretudo estudantes, pesquisadores e professores. Fere, por outro lado, o interesse de algumas poucas pessoas, mais precisamente daquelas que lucram com o monopólio da distribuição (isto é, com a venda) dos mesmos textos. Este interesse não é essencialmente dos autores, que, via de regra, recebem muito pouco pela publicação, mas das grandes editoras, livrarias etc. A questão dos direitos autorais é, no fundo, apenas instrumental: o “problema” central é que o compartilhamento digital gratuito “desvia” parte da distribuição em regime de mercado e, assim, implica menores lucros para quem tem como atividade a comercialização de livros. Não se trata, portanto, de proteger e garantir juridicamente o interesse da coletividade – que só pode ser pelo maior acesso – e sim um interesse proprietário muito mais restrito.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 23/05/2012.]

quinta-feira, 17 de maio de 2012

[Crítica Social] Perspectiva crítica do direito


PERSPECTIVA CRÍTICA DO DIREITO

O pensamento acerca do direito pode ter diferentes perspectivas. Pode ter – o que é mais comum – uma orientação direta à prática, à aplicação, à concretização do direito. E pode ter, por outro lado – e bem menos freqüentemente –, um caráter desvinculado da prática, de modo a constituir uma cogitação mais densa, mais profunda, sobre as questões fundamentais do direito.

A primeira perspectiva é a da técnica – o que os juristas mesmos denominam usualmente “doutrina” ou “dogmática”. O pensamento jurídico dogmático tem uma evidente limitação relativa à aplicabilidade do direito, à decidibilidade etc. É a perspectiva que se encontra nos manuais, nos códigos comentados, na obra dos “grandes doutrinadores” de cada área etc.

A segunda perspectiva, desvinculada das necessidades práticas, é aquela que podemos denominar de “Filosofia do Direito”. Esta pensa o que é impensável para a dogmática jurídica: o sentido, a origem, os fins, a realidade profunda das disposições jurídicas e do próprio direito. E pode, por sua vez, ter diferentes conotações: conservadoras ou transformadoras, resignadas ou indignadas, justificadoras ou críticas.

Justificadora é a filosofia do direito que aceita a conformação dada da sociedade e que aceita a legitimidade e/ou a necessidade do direito para uma tal sociedade. O direito é tido como necessário e isto não se questiona, o que importa é “abrir”, pelo pensamento filosófico, as condições prévias ao pensamento científico ou dogmático sobre o direito ou “fechar” filosoficamente as questões complexas, causadoras de inconvenientes, que o pensamento jurídico estrito, por sua própria estreiteza, não dá conta de superar.

Crítica, pelo contrário, é a Filosofia do Direito que não se resigna ao dado, que não se presta ao serviço de meramente justificar o direito tal como está, que vislumbra, em maior ou menor medida, a possibilidade da transformação. Uma tal crítica pode ser dada no conteúdo ou na forma.

A crítica dada no conteúdo é aquela dirigida aos termos específicos de uma determinada disposição jurídica, ao tratamento jurídico de uma determinada questão, ao texto de uma determinada lei etc. Já a crítica dada na forma é aquela que se dirige não a conteúdos específicos, mas ao direito como um todo. É a crítica que não se questiona se o direito pode ser melhor ou pior, se pode avançar aqui ou ali – é a crítica que se questiona sobre o próprio direito, qual o seu lugar, qual a sua raiz na estrutura social, para que serve, a quem serve. É a modalidade mais radical de crítica, a face mais radical da Filosofia do Direito.

Esta última é a crítica mais profunda e, ao mesmo tempo, a mais necessária. Se alinhada à crítica na perspectiva marxista, torna-se, no limite, a crítica de uma forma histórica de sociedade como um todo – a crítica da sociedade capitalista.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 16/05/2012.]
[Texto adaptado a partir daquele já publicado neste blog em junho de 2009.]

quinta-feira, 10 de maio de 2012

[Crítica Social] Sobre a greve dos trabalhadores de Belo Monte


SOBRE A GREVE DOS TRABALHADORES DE BELO MONTE

Qual é o preço do “progresso”? Até que limite estamos dispostos a pagar pelo “desenvolvimento”? E o que é, no fim das contas, “progresso”? O que é “desenvolvimento”?

A usina hidrelétrica de Belo Monte, em construção no rio Xingu, no interior do Pará, suscita estas questões em diversos aspectos. Trata-se de uma obra bilionária, que envolve milhares de trabalhadores, considerada de vital importância para a infra-estrutura do país, vital para manter, num futuro próximo, o ritmo do nosso crescimento econômico. Ao mesmo tempo, trata-se de uma obra com impacto ambiental avassalador, cujos efeitos destruidores afetarão uma área gigantesca e mais ainda, de uma obra que forçará o deslocamento ou a alteração das condições essenciais de vida de inúmeras de comunidades tradicionais.

Mas, em especial, as questões aqui levantadas devem ser postas em vista da greve dos trabalhadores que atuam na construção da usina, deflagrada no final de abril e prontamente “combatida” por via judicial.

As exigências dos trabalhadores: elevação do vale-alimentação de R$ 95 para R$ 300 mensais e redução do intervalo de “baixada” (visita à família, para trabalhadores que se deslocam de outros estados) de 6 para 3 meses. Exigências, note-se bem, elementares, absolutamente mínimas: de pouco mais de R$ 3 para R$ 10 por dia em alimentação e a possibilidade de visitar a família (e o tempo de dispensa para tanto é de apenas 9 dias) a cada 3 meses. Exigências que indicam, portanto, com muita clareza, que nem mesmo o absolutamente mínimo está sendo assegurado à massa de trabalhadores empenhada em erguer as condições entendidas como vitais para o desenvolvimento econômico do país.

Em que medida, afinal, estes trabalhadores participam ou participarão do “progresso” ou do “desenvolvimento” que ajudam a tornar possível? Em que medida o “progresso” ou o “desenvolvimento” implicam uma distribuição mais adequada da riqueza ou um abrandamento de desigualdades sociais? O preço a ser pago aqui, além da grande destruição ambiental e do completo desrespeito a comunidades tradicionais, é a acentuada exploração de milhares de trabalhadores, condição ainda mais penosa do que o “usual”: qual o “progresso” nisso? O que esperar, então, para o futuro, de um “progresso” ou de um “desenvolvimento” construído a partir de tais sacrifícios?

Ora, o “progresso” ou o “desenvolvimento” que se pode falar aqui não é destinado ao meio ambiente, ao índio, ao trabalhador ou a qualquer grupo social subalterno. No interior dos estreitos limites da sociedade capitalista, não se poderia mesmo esperar algo diferente. Os interesses econômicos envolvidos com a construção da usina de Belo Monte não são, em definitivo, aqueles da classe trabalhadora.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/05/2012.]