quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

[Crítica Social] Fantasia e crítica social


FANTASIA E CRÍTICA SOCIAL

Faltam apenas alguns dias para a estreia da primeira parte da adaptação para o cinema de “O Hobbit”, de J.R.R. Tolkien. O filme, sem dúvida, aproveita o estrondoso sucesso anterior da série “O Senhor dos Anéis” (lançada entre 2001 e 2003) e muito provavelmente atrairá milhões para as salas de cinema mundo afora. Assim, de repente, hobbits, anões e elfos da Terra-Média voltam a ocupar o imaginário do público e a fantasia, como gênero narrativo, ocupa o centro das atenções.

Tolkien é, de fato, um autor sem o qual não se pode compreender este gênero. O universo de lugares, raças e lendas, com características e história próprias e tão detalhadas, desenvolvido ao longo de “O Hobbit”, “O Senhor dos Anéis” e, sobretudo, “O Silmarillion” é o modelo de toda a fantasia produzida desde então. E este modelo revela, com uma clareza que talvez não possa ser encontrada em qualquer outra obra do gênero, o “apelo” de toda fantasia junto ao seu público.

O que há de “fantástico” aqui é precisamente a completa irrealidade de toda a narrativa, construída num universo impossível, com personagens impossíveis. Mas ainda “o sonho mais fantástico repousa sobre a realidade”.* O aspecto “positivo”, por assim dizer, deste “fantástico” é o permanente apontar para trás, a apologia do ontem. Em termos políticos, isto surge como apologia do regresso. Daí o caráter acentuadamente medievalista da fantasia: a glorificação das “virtudes” da nobreza (coragem, honra etc.), que também implica a glorificação de uma sociedade reconhecidamente desigual, na qual o domínio direto e a guerra desempenham papéis fundamentais.

Na obra de Tolkien, esta apologia do ontem, muito além do óbvio medievalismo, “organiza” todo o desenvolvimento histórico: o presente aparece sempre como degeneração do passado. O ontem é sempre melhor do que o hoje – e isto permanece, não importa o quanto se recue na linha do tempo. A ruína dos homens da Terra-Média é determinada pelo distanciamento quanto às tradições e glórias do passado. A solução (precária) que conclui a narrativa de “O Senhor dos Anéis” só pode ser, por isso mesmo, o retorno do rei (isto é, a restauração da monarquia pelo herdeiro de sangue) ao trono de Gondor (o último dos grandes reinos do passado da Terra-Média).

Há, por outro lado, um aspecto “negativo” da fantasia. Em sua maior parte inconsciente, esta negatividade se dirige contra a sociedade presente. É o sentimento de não-conformidade, de não-pertencimento ou de não-aceitação do presente. Neste aspecto somente, um conservador como Tolkien se aproxima, por exemplo, do comunismo. Esta negatividade é comum à fantasia e à crítica social mais radical, embora “apontem” para direções opostas – enquanto uma propõe a “solução” para o presente no retorno ao passado, a outra se projeta para a superação do presente no futuro.

A fantasia apresenta, assim, uma paradoxal relação com a crítica social. É o seu oposto, porque fornece, ao mesmo tempo, o “conforto” do escapismo e uma proposta política regressista. Mas é também o seu par, porque se “alimenta” da mesma matéria-prima e porque reitera o mesmo clamor: impossível não é o delírio do “ontem” ou a alternatividade do “amanhã” – impossível mesmo é o hoje.

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* A expressão, embora construída com outro sentido, é de Evgeni Pachukanis. Ver: A teoria geral do direito e o marxismo, Rio de Janeiro, Renovar, 1989, p. 124. Ou: www.marxists.org/portugues/pashukanis/1924/teoria/cap05.htm.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 05/12/2012.]

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