quinta-feira, 28 de julho de 2011

[Crítica Social] Harry Potter e a decadência da fantasia

HARRY POTTER E A DECADÊNCIA DA FANTASIA

Como gêneros literários, a fantasia e a ficção científica têm, a despeito das diversas conotações políticas que encerram, um significa preciso na crítica da sociedade presente. Na medida em que apresentam um “outro mundo”, em que transpõem a narrativa para uma realidade paralela, recolocam aquilo que a realidade presente tende a negar peremptoriamente: a própria possibilidade da alternativa. Recolocam, para melhor ou para pior, o questionamento do presente: Por que a realidade é esta se pode ser outra? Por que aceitar a realidade presente se ela pode ser mudada?
 
Claro que, como alternativa, a fantasia necessariamente fracassa – e duplamente. Primeiro, porque não pode propor outra realidade a partir da pura imaginação, mas apenas como negativo, como espelho distorcido do presente. Segundo, porque, na exata medida em que apresenta uma outra realidade como fantástica, no fundo confirma o caráter inescapável da realidade dada: a única “fuga” possível seria o sonho ou o delírio. De todo modo, a fantasia ao menos semeia a dúvida – ainda que só para negá-la em seguida e para recolher-se docilmente à impotência.
 
É por isso que uma literatura tão abertamente conservadora como a de Tolkien ou um blockbuster tão descaradamente comercial como os filmes de “Star Wars” continuam interessantes. As narrativas passadas na Terra-Média ou “há muito tempo, numa galáxia muito distante” trazem consigo ao menos uma semente débil de dúvida. E, através da dúvida, o que não é senão pura mentira aponta, ao menos por um instante, para uma suprema verdade: o real pode não sê-lo.
 
O caso parece ser, no entanto, um pouco diferente com a longa série de histórias de Harry Potter. A narrativa abdica mesmo de tirar o leitor-espectador do lugar, de levá-lo para além da capitulação ante o real: Hogwarts não é – não pretende e não pode ser – um outro mundo, é apenas um recorte precário dentro do mundo presente. É apenas uma escola – e, numa história infantil, é natural que a escola apareça como centro do universo. Mas quando o sucesso estrondoso obriga a “franquia” Harry Potter a ser alçada a fantasia adolescente e, depois, adulta, a escola é ainda centro. Assim, quando o “vilão” (encarnação de um “mal” gratuito e absolutamente sem objetivo, tipicamente infantil), que o Harry Potter adulto é obrigado a enfrentar, deseja “conquistar o mundo”, conquistar a escola é estranhamente o primeiro passo aparentemente necessário.
 
Harry Potter aparece, então, como história de uma recusa obsessiva a abandonar o universo escolar, exaltação da infantilização que paradoxalmente não encoraja senão o medo. Isto não seria problema se tivesse permanecido mais uma história infantil, uma narrativa ruim entre tantas, ao invés de promovida, aos olhos de seu público, a “grande fantasia contemporânea”. Se este é o ápice da fantasia deste tempo, é sinal de que mesmo a potência impotente da imaginação decai. É sinal de que mesmo à imaginação a sociedade presente impõe limites estreitos. E se esta sociedade esmaga até mesmo a capacidade de fantasiar o diverso, que esperança ainda pode haver para o futuro?
[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 27/07/2011.]

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