quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

[Crítica Social] O contrato e o capital

O CONTRATO E O CAPITAL

O calhamaço de papel, as letras miúdas, o advogado espertalhão que manipula as cláusulas, o momento tenso da assinatura. O ingênuo que perde tudo porque assinou um contrato. O chantagista que, por uma manobra, força alguém a assinar um contrato. Ou mesmo o demônio que, ao trocar um favor qualquer pela alma de um desesperado, formaliza o acordo num contrato. No cinema, na literatura, no imaginário popular, as representações do contrato são sempre as mesmas.

Isto, claro, não é por acaso. O contrato é uma das figuras jurídicas centrais do mundo contemporâneo, está intimamente relacionado à dinâmica da sociedade capitalista e, por isso, aparece como uma forma quase onipresente. É exatamente por esta razão que o contrato assume, entre nós, um caráter quase sagrado, inquestionável e inviolável – mas qual é, no fim das contas, a autoridade do papel sobre os homens que o assinam?

O fundamento último do contrato é, sem dúvida, a relação de compra e venda. Este é, na verdade, o modelo a partir do qual todo o universo jurídico é estruturado. E já aqui um dos efeitos imediatos do contrato aparece com toda a clareza: comprador e vendedor, não importa quem sejam e nem qual bem negociem, aparecem como juridicamente iguais – isto é, ambos têm os mesmos direitos e as mesmas obrigações. Não importa que sejam dois magnatas negociando imóveis para especulação ou que uma das partes seja alguém que, tendo caído na miséria, vende o único imóvel da família como última medida desesperada – vendedor e comprador são, aos olhos do direito, rigorosamente iguais.

Gradualmente, contudo, outras relações sociais, mesmo muito distantes da compra e venda, assumem a forma contratual. Exemplo bastante claro a esse respeito é o casamento: ainda que disfarçada ou negada eventualmente, a natureza jurídica d o casamento é, na essência, o contrato. Isto explica as formalidades todas, as promessas solenes, as testemunhas etc. – do ponto de vista do direito, os noivos são, em suma, duas mercadorias que negociam a si próprias e que se vendem uma à outra.

Mais importante para o mundo capitalista é o que se passa com outra relação, a assim chamada relação de trabalho. O contrato permite aqui uma operação essencial para o funcionamento do capitalismo: a troca de força de trabalho por salário. Na exata medida em que esta relação aparece como um contrato, o trabalhador e o seu empregador figuram como juridicamente iguais. Eles não realizam aqui senão um contrato de compra e venda. E assim, por meio do direito, em plena igualdade jurídica, o capital explora o trabalho.

A autoridade do contrato não é, portanto, a autoridade do papel: é a autoridade do capital. E enquanto o domínio do capital competentemente cuida de assimilar tudo à forma da circulação de mercadorias, cuida simultaneamente a assimilar tudo à forma do contrato.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 05/01/2011.]

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