sexta-feira, 29 de outubro de 2010

[Crítica Social] Com ou sem esclarecimento

COM OU SEM ESCLARECIMENTO

Na disputa eleitoral do próximo domingo, não está em jogo nenhuma grande alternativa. Estão em disputa duas posturas políticas favoráveis ao grande capital, que concorrem mais propriamente por uma divergência de “modo” do que de alinhamento. As duas posições representam, no fim das contas, posições divergentes dentro das classes mais favorecidas.

De um lado, o que resta de velhas aristocracias decadentes, de elites tradicionais e tradicionalistas, de uma parcela retrógrada da classe média cuja aspiração maior continua a ser tornar-se elite (mas ainda representada como a “velha elite”). Em comum, tais grupos carregam velhos preconceitos, uma certa aversão ao “povo” (representado como a mera massa da população menos favorecida) e a quaisquer formas de poder popular, uma profunda rejeição a quaisquer medidas de distribuição de renda (mesmo as mais superficiais). Em suma, tais grupos são profundamente contrários a qualquer alteração, mesmo que pequena e conjuntural, da estrutura de classe profundamente desigual de marca a sociedade brasileira. Sentem-se ressentidos pelos últimos 8 anos, nos quais o país foi governado por um ex-operário, o que lhes parece inadmissível. Apelam, agora, ao discurso da “limpeza”, da “ética”, da “verdade”, enfim, a um discurso “moralizador” – e isto porque consideram qualquer movimento do poder público para além do pequeno “clube” dos poderosos algo “imoral”.

Do outro lado, elites mais dinâmicas e uma nova classe média, grupos dominantes igualmente ligados ao capital porém despidos de uma anacrônica nostalgia de tempos senhoriais. São os grupos dominantes, por assim dizer, “esclarecidos”, capazes de compreender que mudanças sociais não são necessariamente contrárias ao domínio do capital e dos capitalistas. Por isso mesmo, tais grupos são favoráveis a medidas de distribuição de renda e mesmo a alterações superficiais na estrutura de classes, porque são capazes de compreender que distribuir renda não é simplesmente “dar dinheiro para pobre” – é, na verdade, uma forma de favorecer o consumo e, portanto, de favorecer a realização do capital, ou seja, uma maneira de acelerar a economia e de ampliar os lucros do capitalista. Não lhes importa, então, que o miserável deixe a condição de miséria – desde que se torne consumidor. Não lhes importa a origem social do governante, porque sabem que isto não fará a menor diferença. Não precisam, por tudo isso, apelar a qualquer discurso moralizante ou distorcido, basta-lhes apresentar a realidade de crescimento econômico do Brasil ao longo dos últimos anos.

Não há, então, opção propriamente popular. Não está dada a opção por uma política de resistência ao capital. A escolha há de ser entre uma política pró-capital não esclarecida ou uma política pró-capital esclarecida. Para o capitalista minimamente consciente, a decisão é óbvia. Para quem não é capitalista, a imensa maioria da população, a decisão só pode ser estratégica.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 27/10/2010.]

domingo, 24 de outubro de 2010

[Crítica Social] Teologia e eleições

TEOLOGIA E ELEIÇÕES

Um lastimável episódio é o mínimo que se pode dizer sobre a discussão acerca do aborto que, nas últimas semanas, tomou conta da pauta do confronto eleitoral entre PT e PSDB. Lastimável nem tanto pelo seu alegado efeito – ter impedido a vitória da candidata do PT ainda no primeiro turno –, mas sobretudo pelo desvio que promove e pelo retrocesso ideológico que representa.

Trata-se de um enorme desvio porque reduz, do modo mais arbitrário e infeliz – embora isto tenha sido “devidamente” aproveitado em termos eleitorais –, o debate propriamente político a um debate personalista e despolitizado. Ora, é bem verdade que PT e PSDB já não apresentam diferenças de posição política tão significativas como outrora, mas ainda assim a disputa eleitoral não faz sentido senão como debate entre tais posições. A discussão sobre o aborto, nos termos em que tem sido apresentada, trata apenas dos pontos de vista pessoais dos candidatos, de suas posições subjetivas, de seus compromissos individuais com a “fé cristã” etc. O debate foi então atirado para o domínio das intenções pessoais – como se não se tratasse mais da escolha de um ocupante de cargo público, mas da decisão acerca de quem pode alcançar a “salvação da alma”...

Mais ainda, a discussão representa um retrocesso ideológico porque atinge a idéia mesma de um Estado laico e a garantia de liberdade de religião. Pois a estrutura política estatal não pode ter por base qualquer crença determinada, o poder político não pode ser exercido em prol de religião alguma. Mas o argumento religioso presente no debate atual é o de que o Estado brasileiro deve proibir o aborto e até mesmo punir criminalmente quem o praticar porque uma certa fé o vê como ato condenável. Em outras palavras, este argumento defende que o aborto deve ser crime porque é pecado. Num Estado laico, porém, crime e pecado só podem ser coisas muito diferentes.

É certo que o Brasil é um país de maioria cristã – e sabe-se que as religiões cristãs em geral condenam o aborto. Ainda assim, são situações muito distintas que uma mulher, diante de uma gravidez indesejada, deixe de realizar um aborto porque a sua religião proíbe, e que uma mulher, na mesma condição, deixe de realizá-lo porque poderia ser punida (inclusive com prisão) pelo poder público. Para uma mulher que não professe religião alguma, por exemplo, o temor da punição divina pelo aborto não faz qualquer sentido, mas a punição terrena e muito concreta imposta pelo Estado faz. Não é razoável, em nenhuma hipótese, que esta mulher seja forçada a agir de uma ou outra maneira em função de convicções religiosas que não são suas. A sua liberdade de religião – que inclui a liberdade de não ter religião alguma – então, é preciso reconhecer, já não existe. E se uma qualquer religião precisa, para garantir que um preceito seu seja cumprido, da força do Estado, então é preciso reconhecer, no mínimo, que o seu poder de renovar a “fé” dos seus “seguidores” está falhando. Para uma religião qualquer, admitir que o Estado é necessário para fazer cumprir “lei de deus” é o mesmo que admitir a sua própria falha como religião.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 20/10/2010.]

domingo, 10 de outubro de 2010

[Crítica Social] Número e sociedade

NÚMERO E SOCIEDADE

Não existe nada mais crível do que a estatística, o dado numérico, o gráfico. Pode-se, afinal, duvidar de tudo – visões políticas, posições teóricas, pontos de vista, ideologias etc. –, mas não se pode duvidar do número. Por isso quem quer se fazer crível, quem quer provar o que quer que seja, logo se apressa em apoiar o seu argumento num número qualquer.

Mas se é certo que o número é preciso, ainda é necessário perguntar: qual é a sua verdade? O que o número nos diz sobre a realidade? Já faz muitos anos, mas ainda me lembro de um exemplo a esse respeito dado certa vez por uma professora de matemática. Se uma pessoa come 100 kg de carne por ano e outra como zero, a média anual de consumo de carne das duas é 50 kg – uma delas, no entanto, continua de estômago vazio. O cálculo é absolutamente correto, mas o seu resultado não diz nada sobre o mundo real.

Isto não impede, porém, que hoje a eficiência estatística, como uma espécie de prova numérica incontestável do funcionamento ideal de qualquer coisa, tenha invadido e dominado todos os campos. Assim, por exemplo, um Judiciário estatístico se preocupa com o número de processos, com o número de sentenças, com o tempo médio de tramitação de uma ação, mas não se preocupa com o seu papel social ou com o sentido transformador ou conservador das suas intervenções. Uma saúde estatística se preocupa com o número de atendimentos, de cirurgias, de internações etc., mas não se preocupa com a qualidade do tratamento, com a desigualdade no acesso ao tratamento nas diversas classes sociais, com as necessidades reais sobretudo da população menos favorecida. Uma educação estatística se preocupa com o número de escolas, de universidades, de estudantes, de aprovações, mas não se preocupa com o tipo de formação que realiza, com fins a que se propõe, com o seu sentido social.

Trata-se, em suma, do domínio da quantidade sobre a qualidade, do cálculo de tudo, inclusive do incalculável, e do desprezo por tudo quanto não se deixa quantificar numericamente. Isto, por sua vez, não é senão demonstração do crescente domínio da lógica de mercado sobre tudo – no fim das contas, é a extensão do cálculo econômico, índice de uma louvada eficiência de mercado, sobre todas as áreas. No Judiciário, na saúde, na educação ou em qualquer outro setor, esta lógica penetra de modo a fazer encarar tudo como a produção mercantil, quantificável por excelência.

Calculáveis, sempre, são os custos de produção, as vendas, os lucros. Mas é diferente com as questões sociais. E não se trata de deficiência da matemática: é a própria realidade social que não se deixa captar numericamente, não se deixa calcular ou prever estatisticamente. O modo de compreendê-la há de ser outro. A complexidade da estrutura social é de uma ordem diversa daquela de que podem dar conta mesmo os modelos matemáticos mais sofisticados.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 06/10/2010.]