domingo, 29 de agosto de 2010

[Crítica Social] Sobre a “boa vontade” e o “voto consciente”

SOBRE A “BOA VONTADE” E O “VOTO CONSCIENTE”

Ao deparar com os vários fracassos da democracia formal brasileira, o senso comum, cuidadosamente alimentado pelas interpretações tendenciosas e meias-verdades da grande mídia, não consegue supor outra causa para o problema que não a “qualidade” dos políticos profissionais eleitos. Os escândalos de corrupção, a venalidade dos políticos, as cobranças que recaem sobre o parlamento por “respostas” às questões sociais brasileiras, tudo isso transparece abusivamente reduzido a uma suposta incapacidade do eleitorado para a escolha “correta” dos seus representantes.

Ora, a solução para este problema, dizem-nos as campanhas de conscientização veiculadas na TV ou a publicidade institucional da Justiça Eleitoral, é simples: o eleitor deve aprender a votar. É o reiterado discurso do “voto consciente”, segundo o qual o eleitor deve analisar cuidadosamente seus candidatos, procurar informar-se sobre o passado e as propostas de cada um deles etc. Esta “filtragem” mais rigorosa garantiria a erradicação de todos os males: políticos “melhores”, afinal, não seriam corruptos e dariam mais atenção às reivindicações da sociedade que representam.

Uma tal “solução” não vai, porém, além do nível mais superficial. O seu fundamento é uma aposta teimosa e reducionista na “boa vontade” como salvação. Bastaria, nesse sentido, escolher políticos verdadeiramente dispostos, honestos, sérios e cheios de boas intenções, ao invés dos corruptos e interesseiros, para que tudo funcione de maneira ideal.

Há, neste argumento, para dizer o mínimo, dois grandes defeitos. Em primeiro lugar, a responsabilidade pelas deficiências da representação política é inteiramente reputada aos eleitores. É evidente que é melhor não eleger os oportunistas e velhacos de sempre, mas o apelo cego ao “voto consciente” ignora por completo as razões pelas quais os eleitores votam em quem votam. Desconsidera-se, pura e simplesmente, o poder de convencimento do marketing eleitoral, a influência dos grandes interesses econômicos privados que financiam campanhas e tudo mais que, muito além da consciência individual, acaba por formar a opinião política do eleitor.

Em segundo lugar, o argumento do “voto consciente” e da “boa vontade”, ao supor que o problema exclusivo do sistema político instituído são as pessoas que o ocupam, deixa inteiramente de lado o sistema mesmo. A democracia formal, independentemente dos homens que a perfazem, tem problemas. O sistema representativo é falho. Tais falhas não são acidentais: são impostas, no que é mais grave, pela condição inescapável do Estado como aparelho de poder separado e oposto às massas populares. Isto, na essência, não pode ser resolvido pelos representantes eleitos, por mais “boa vontade” que tenham. É preciso transformar o próprio sistema político, o que em última análise significa que é preciso transformar a estrutura social presente. Mas o argumento voluntarista não pode ir tão longe – e não por acaso: ele não só não mostra, mas, na verdade, ajuda a esconder aquilo que, nas profundezas da realidade política, não pode sequer ser visto.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 25/08/2010.]

domingo, 22 de agosto de 2010

[Crítica Social] Supermercado eleitoral

SUPERMERCADO ELEITORAL

A publicidade partidária na TV aberta, com vistas às eleições de outubro próximo, acaba de começar. Isto quer dizer, noutras palavras, que o período mais acirrado da disputa eleitoral acaba de se abrir. A propaganda eleitoral, afinal, cuidará de sacramentar, em definitivo, as frações de votos de cada candidato: o que tiver que ser alterado, se é que será, até outubro, há de se realizar através dos programas de TV.

No entanto, a “linguagem” da publicidade partidária, se é que assim se pode dizer, não é a da política, não é, em primeiro plano, a da cidadania ou a da democracia. A sua “linguagem” é a linguagem própria da publicidade mercantil, da propaganda ordinária que se tornou onipresente na sociedade capitalista hodierna, da propaganda para a venda de produtos e serviços quaisquer. No fim das contas, os candidatos não são apresentados por suas ideologias políticas, por suas propostas de atuação, por suas posições diante das tantas lutas do nosso tempo – são apresentados como mercadorias à venda.

Assim como sabão em pó, carros, aparelhos eletrônicos etc., os candidatos são colocados, pela propaganda partidária, como que “à venda” – à disposição não de eleitores, não de cidadãos, mas de consumidores. Tanto quanto se cuida da “embalagem” da mercadoria, tanto quanto se constrói a “imagem” do produto, tanto quanto se promete “satisfação garantida” ao consumidor, assim também se dá a publicidade dos candidatos. Tudo se resume, então, a um grande supermercado eleitoral: os candidatos, como que dispostos em prateleiras, são escolhidos pelos eleitores em função da publicidade que previamente os convenceu, assim como as mercadorias são escolhidas, no momento da compra, pelo consumidor previamente seduzido pela publicidade.

Não se trata, porém, de uma compra. Na política há muito mais em jogo. Trata-se, afinal, do campo em que as lutas sociais devem encontrar a sua máxima expressão, através do qual o domínio de grupos sociais sobre outros se realiza, no qual tal domínio pode vir a ser revertido. Se a política se rende ao marketing mercantil, então tudo está perdido desde o princípio. Se a política se rende à circulação mercantil e ao poder da grande mídia, então a própria política, em verdade, está perdida.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 18/08/2010.]

domingo, 15 de agosto de 2010

[Crítica Social] O verde e o vermelho

O VERDE E O VERMELHO

O fato de uma das principais campanhas na eleição presidencial deste ano ter como base um discurso ambiental indica que o tema tem atraído atenção e preocupação crescentes entre os brasileiros. Trata-se de um bom sinal, visto que demonstra uma conscientização acerca da gravidade do esgotamento iminente do meio ambiente – conscientização sem a qual, não há dúvida, tal esgotamento não poderá ser impedido.

Por outro lado, o discurso ambiental, por si só, não é suficiente. Não basta constatar a destruição do meio ambiente, não basta apontar as conseqüências desta destruição. Árvores não se derrubam sozinhas, solo não se contamina por si, ar e água não se poluem por conta própria. É preciso conhecer sobretudo as causas da destruição do meio ambiente – e estas residem na estrutura econômica sobre a qual se erige a sociedade presente. É, afinal, a formação econômica fundada no valor de troca, no lucro, na acumulação infinita e, de um outro ponto de vista, num consumismo cada vez mais insanamente sem medida que leva a um “consumo” do meio ambiente igualmente insano e sem medida.

Assim, um discurso ambiental, embora absolutamente necessário, é inócuo se desacompanhado de um discurso social crítico. Quero dizer, não pode haver uma verdadeira defesa do meio ambiente desconectada de uma ação mais abrangente, mais profunda, crítica radical da formação econômica capitalista. Qualquer proposta política que se pretenda “verde”, ou seja, que se pretenda engajada na proteção do meio ambiente, não estará verdadeiramente perseguindo os seus objetivos declarados se não tiver sustento numa proposta radical de transformação social. Sem isso, o discurso ambiental não é mais do que uma “maquiagem verde” do mesmo, do já estabelecido: sem combate às causas, sem uma mudança profunda da estrutura geradora da desmedida na exploração dos recursos ambientais, não pode haver nenhuma autêntica preservação do meio ambiente.

O discurso supostamente “verde” e, ao mesmo tempo, a favor do grande capital não pode ser, portanto, um discurso ambiental autêntico. Se o grande capital é um grande devorador da natureza, então é preciso enfrentá-lo para defender o meio ambiente. É preciso, mais ainda, superar a organização social determinada pelo grande capital: pois só é possível transformar o modo pelo qual os homens se relacionam com a natureza ao transformar o modo como os homens constituem a sua sociedade.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 11/08/2010.]

domingo, 8 de agosto de 2010

[Crítica Social] Sobre a proibição do aborto no Brasil

SOBRE A PROIBIÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

Segundo pesquisa recentemente divulgada pela Universidade de Brasília, estima-se que 1 em cada 5 mulheres brasileiras de até 40 anos de idade já realizou pelo menos um aborto. Noutras palavras, 15% das brasileiras, ou seja, mais de 5 milhões de mulheres já teriam, em algum momento da vida, interrompido pelo menos uma gravidez.

Tais interrupções, é claro, ocorreram ilegalmente, uma vez que o direito brasileiro considera o aborto como crime – exceto nos casos excepcionais em que a gravidez resulta de violência sexual ou em que representa risco de vida para a mãe. Isto implica que, a despeito de realizados na ordem dos milhões, os procedimentos abortivos são invariavelmente levados a cabo de maneira clandestina, em geral através de medicamentos proibidos, perigosamente ministrados sem acompanhamento médico, ou em “clínicas” precárias, sem as condições higiênicas e sem os recursos necessários para um atendimento médico adequado. Milhares de brasileiras têm, assim, a sua saúde afetada anualmente, muitas das quais acabam morrendo em função das conseqüências desses procedimentos médicos inadequados – não é por acaso que a cirurgia mais realizada pelo SUS entre 1995 e 2007, com um total de 3,1 milhões de ocorrências, foi a curetagem após o aborto, em geral realizada emergencialmente após as complicações do procedimento clandestino.

Isto prova que é preciso, no mínimo, repensar a própria proibição do aborto. Afinal, se a proibição, por si, não é capaz de impedir a realização de procedimentos abortivos, nem mesmo de minimizar a sua ocorrência, então a sua única conseqüência tem sido “empurrar” a prática do aborto para as condições precárias e degradantes da clandestinidade. Ora, se, no fim das contas, o fundamento para a proibição do aborto é a proteção da vida, é necessário reconhecer que se está caminhando no sentido contrário: a vida do feto não está sendo protegida e, o que é mais grave, a vida de milhões de mulheres está sendo absurdamente colocada em perigo.

Se, no entanto, o fundamento para a proibição do aborto estiver lastreado em convicções religiosas, a situação é ainda mais absurda. Pois é muito diferente que uma mulher seja impedida de realizar aborto em função de suas crenças religiosas e que seja impedida por determinação legal imposta por um Estado laico. Cada religião pode, sem dúvida, estabelecer os padrões de conduta que espera de cada um de seus seguidores, mas os mandamentos de uma religião, seja qual for, não podem ser estabelecidos universalmente, através do poder público, inclusive para quem é adepto de outras religiões ou de religião nenhuma.

Em suma, há que se considerar, em primeiro lugar, a questão de saúde pública. Uma eventual legalização do aborto não fará mais do que reconhecer a realidade estabelecida e, uma vez que venha a permitir a realização da interrupção da gravidez em condições adequadas, poderá salvar muito mais vida do que a proibição tem conseguido.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 04/08/2010.]

domingo, 1 de agosto de 2010

[Crítica Social] Desenvolvimento e desigualdade

DESENVOLVIMENTO E DESIGUALDADE

Na última sexta-feira, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou relatório sobre o desenvolvimento humano da América Latina, região que apresenta os maiores índices de desigualdade do mundo. Sua maior novidade é uma nova metodologia de cálculo do IDH (índice de desenvolvimento humano, que varia de 0 a 1), o IDH-D, que procura computar, por meio de estatísticas ligadas a renda, educação e saúde, as conseqüências da desigualdade social. Resultado: IDH-D dos países latino-americanos foi em média 19% inferior ao IDH tradicional.

O IDH do Brasil, por exemplo, segundo dados de 2007, é de 0,777. O IDH-D, no entanto, é de 0,629. O que esta queda procura demonstrar é o quanto a desigualdade social “corrói” qualquer perspectiva de desenvolvimento. Afinal, as médias de renda per capita, de acesso à educação formal ou à saúde podem apontar um país cujos índices estão cada vez mais distantes da indigência, mas também um país que simplesmente não existe na realidade. No Brasil, como bem se sabe, a disparidade entre as camadas mais pobres e mais ricas da população brasileira em qualquer desses quesitos é enorme.

Ora, quantos IDH diferentes poderiam ser calculados aqui? Qual o tamanho da disparidade social brasileira? O IDH do Brasil mais rico seria, sem dúvida, muito próximo daquele dos países mais desenvolvidos, mas muitíssimo diferente do IDH do Brasil mais pobre. Isto porque é possível vivenciar no Brasil, quase lado a lado, a mais desmedida opulência e a mais constrangedora miséria. Numa mesma cidade, não raro, bairros caríssimos, repletos de mansões milionárias, são vizinhos de comunidades irregulares, paupérrimas, de habitações precaríssimas, carentes de água, esgoto, luz elétrica, transporte etc. Um pequeno séquito de milionários ou bilionários, cujas exigências de consumo só são satisfeitas pelo mercado de itens de luxo, convivem num mesmo país com tantos que não têm acesso sequer ao indispensável: alimento, água, moradia etc. E isto num país em que a idéia de “hierarquia social”, herdeira de tempos nobiliárquicos e senhoriais, jamais foi resolvida, em que a discriminação em função da classe social é enorme, em que questões raciais gravíssimas estão distantes de qualquer solução, em que a disparidade regional (sul-sudeste vs. norte-nordeste) é enorme...

Nenhum número, no fundo, pode dar conta da desigualdade brasileira. De todo modo, os números divulgados pela ONU sinalizam algo que, em verdade, está dado a olhos vistos na sociedade brasileira: o “desenvolvimento humano”, se aqui existe, é de alguns, não de todos.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 28/07/2010.]