domingo, 28 de março de 2010

[Crítica Social] Para além do sensacionalismo

PARA ALÉM DO SENSACIONALISMO

A (cansativa) notícia incansável da semana, presente quase em tempo integral na grande mídia, é a do julgamento do casal Nardoni, acusados da morte da menina Isabella Nardoni, então com 5 anos de idade. Causador de comoção nacional em 2008, o caso ressurge agora em função do julgamento pelo júri popular, sempre acompanhado da expectativa alimentada do modo mais sensacionalista pela imprensa de que o resulta final seja a condenação mais atroz possível.

Como jurista, sinto-me no dever de dizer que não é à mídia que cabe decidir quem é ou não culpado por qualquer crime que seja. Há uma investigação, um processo e um julgamento para tanto – e tudo isso, embora obviamente falível, não pode ser substituído pela decisão apressada e interessada dos veículos de comunicação. “Comprar” a decisão antecipada da mídia sobre a culpa dos Nardoni é, portanto, para dizer o mínimo, altamente inconseqüente e inapropriado.

Como crítico social, por outro lado, não me preocupa tanto o resultado do julgamento ou o fato da morte da criança em si, mas as conseqüências nefastas do sensacionalismo acerca do caso. Pois atrás de tanto sensacionalismo resta uma realidade de que noticiamento nenhum dá conta, uma realidade negligenciada, ignorada solenemente, porque, ao contrário do ignóbil caso da suposta morte de uma criança pelo próprio pai, não causa comoção e, portanto, não “vende”.

O que atrai a atenção da mídia é, afinal, um crime violento, violador dos ideais familiares mais tradicionais e de fundo religioso, ocorrido no seio da classe média. Mas este é, evidentemente, um caso isolado. Vivemos numa sociedade absurdamente violenta, na qual a banalidade do assassínio é cada vez mais assustadora, situação que atinge sobretudo as classes inferiores, os menos favorecidos, as áreas mais degradadas das grandes cidades – mas nada disso aparece cotidianamente na grande mídia e, nas raras ocasiões em que aparece, jamais é objeto de noticiamento tão massivo.

Ao que parece, na verdade, as classes média e alta que tanto se interessam pelo crime ocorrido entre os seus, preferem simplesmente não saber o que se passa para além dos muros de suas confortáveis casas ou condomínios fechados. A dura realidade da desigualdade social, da miséria, da exclusão, quero dizer, a dura realidade da massa da população brasileira “desagrada” quando aparece no noticiário e, por isso, prefere-se fechar os olhos para ela.

Tudo de espantoso, feio e horripilante que se passa entre nós não se resume ao assassinato de Isabella Nardoni. Este caso, embora terrível, pouco ou nada significa diante da realidade brasileira incomparavelmente mais espantosa, mais feia e mais horripilante. Homicídios ocorrem a todo instante e a violência mais lancinante se replica em terror absoluto. A desigualdade social, causa última de tanta violência, só faz crescer – e esta situação interessa àqueles que, no outro extremo, beneficiam-se da concentração de riqueza. Mas quem quer saber disso? E por quê?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 24/03/2010.]

segunda-feira, 22 de março de 2010

[Crítica Social] Nem conservador nem idealista

NEM CONSERVADOR NEM IDEALISTA

Há, de um modo geral, entre nós, hoje, uma aversão imediata a qualquer proposta teórica ou política de transformação social profunda. Todo pensamento que não aceita a realidade contemporânea como imutável, que não aceita os seus pontos-chave como “conquistas” da humanidade – a democracia, a ordem jurídica, a liberdade abstrata, a economia de mercado etc. – é imediatamente taxado de imprestável ou mesmo de nocivo. Todo pensamento aceitável precisa estar, então, restrito ao lado de “dentro” da ordem estabelecida, pois a ordem estabelecida não aceita questionamentos que ultrapassem os seus limites estruturais.

Assim, não raro a sociedade presente propagandeia que tudo que importa é o “dar-se bem”, isto é, a capacidade de tirar proveito da ordem estabelecida em favor de si próprio e em detrimento de todos mais. Na melhor das hipóteses, admitem-se incipientes e superficiais tentativas de reforma, geralmente fundadas numa incansável aposta na “boa vontade”, na solidariedade ou no bom-mocismo “politicamente correto” – tornar a democracia mais democrática, reciclar lixo, distribuir renda via bolsa-qualquer-coisa etc. A aposta, é claro, falha invariavelmente...

Dentre as atitudes potencialmente transformadoras, no entanto, há uma estranha tolerância com relação àquelas mais descabidamente utópicas, não raro assumidamente idealistas. Há aparentemente algo de “belo” ou de “admirável” em dizer-se idealista, por maior que seja a desconexão entre tais ideais e a realidade. Tanto assim que dificilmente alguém poderia hoje dizer em praça pública “eu sou revolucionário!” sem enfrentar conseqüências bastante desagradáveis, mas não faltam aqueles que, na mesma situação, diriam orgulhosos “eu sou idealista!”.

Uma tal tolerância talvez seja devida a uma sólida convicção, por parte daqueles que se beneficiam da ordem presente, de que o idealismo mais ingênuo é completamente “inofensivo” aos seus interesses. Este desejo de “mudar o mundo” que não vai além das belas idéias tem, afinal, o efeito de deixar o mundo real intacto. Não é incomum, inclusive, que esta atitude seja encarada, de modo pejorativo mesmo, como tipicamente juvenil, algo que o tempo por si só se encarregaria de dissolver, convertendo esperança em conformismo.

Como, então, nesse contexto, não ser nem conservador nem idealista? Como, neste mundo que só admite ser questionado quando os questionamentos são inofensivos, criticar o núcleo da estrutura social presente? Como ultrapassar as reformas, o “melhorar aos poucos” que não leva a nada, e insistir na busca pela transformação radical? – Em definitivo, os dias não são favoráveis, mas toda a real esperança da crítica reside nesta atitude que, presa entre o martelo e a bigorna, mantém os pés na realidade sem aceitá-la, sem sucumbir a ela, exatamente para transformá-la.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 17/03/2010.]

segunda-feira, 15 de março de 2010

[Crítica Social] Sobre o "dia da mulher"

SOBRE O “DIA DA MULHER”

Qual o sentido de dedicar um dia às mulheres? Por que esta “homenagem” limitada a um único dentre os 365 dias do ano? Melhor dizendo: por que razão isto é necessário?

Não pretendo com isso levantar qualquer objeção ao reconhecimento feminino. Pelo contrário, penso que nenhum reconhecimento pode ser tido como satisfatório senão o reconhecimento pleno, irrestrito, cabal. E o fato de circular um dia específico no calendário e dedicá-lo às mulheres indica, por si só, que não é isto que ocorre.

O dia das mulheres é, afinal, um dia apenas, um dia de exceção, pois a regra prevalente nos demais dias todos é a da inferiorização da mulher. O “mecanismo” oculto aqui é o da compensação: a grande mídia veiculará homenagens sentimentais às mulheres, os maridos comprarão flores às suas esposas e todos se lembrarão carinhosamente das mulheres em suas vidas. Mas nisto tudo reside, consciente ou inconscientemente, algo de cínico. Pois, no dia seguinte, a mesma grande mídia recorrerá como sempre à imagem erotizada e apelativa da mulher como objeto atrator de audiência, os maridos reconduzirão suas esposas a uma posição submissa na família e as mulheres enfrentarão a mesma discriminação no trabalho e no meio social.

Um dia ao inverso, mas um dia que não inverte efetivamente nada. O intuito real por detrás do dia da mulher não é extinguir ou contribuir para extinguir a dominação da mulher – na verdade, não passa de um pequeníssimo “respiro” que apenas contribui para manter tudo exatamente como está. Quero dizer, o dia da mulher acaba servindo para que a mulher tenha um dia para si, mas não mais: um dia das mulheres para que todos os outros não sejam delas.

Não há de suprimir-se a homenagem, mas também não se deve cair na ilusão de que algo está sendo levado a cabo só por isso. Há dias de homenagem para a consciência negra, para o deficiente físico, para o índio etc., mas nenhuma dessas formas de discriminação desapareceu ou está em vias de desaparecer entre nós. Nenhuma forma de discriminação se perpetua por acaso, como um mero atraso cultural, como algo que se poderia superar pelo simples esclarecimento da população – há sempre um lastro social estrutural que fundamenta a persistência da discriminação.

No caso da discriminação da mulher, há, é evidente, um atávico ranço machista que atravessa a nossa cultura, desde a tradição religiosa judaico-cristã até o masculino como gênero dominante na linguagem. O que permite a perpetuação disto, no entanto, é uma estrutura social para a qual a submissão da mulher é fundamental, na qual elas são forçadas a vender a sua força de trabalho por valor inferior, na qual a igualdade de gêneros não pode passar de promessa jurídica vã.

Acabar realmente com a discriminação da mulher exige mudanças para muito além do calendário. Exige muito mais do que um dia. Exige transformação concreta para superar a estrutura social na qual a mulher é discriminada.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 10/03/2010.]

terça-feira, 9 de março de 2010

[Crítica Social] Mundo virtual e vida de plástico

MUNDO VIRTUAL E VIDA DE PLÁSTICO

A enorme difusão das redes sociais na internet conduziu à explosão de uma inusitada espécie de narcisismo virtual. Estar à vista de um número indeterminado de pessoas na internet, construir livremente a própria imagem num outro universo, tornar-se um outro virtual – a exposição pessoal pela via digital tornou-se hoje, não raro, uma obsessão para um sem-número de jovens.

Cada um pode, afinal, apresentar-se tal como bem entende em cada uma dessas redes, em verdade apresentar-se como o que gostaria de ser e assim aparecer aos olhos dos outros. Tudo aquilo que o “mundo real”, a implacável realidade, cheia de limitações e percalços, cheia de dificuldades, nega cotidianamente a cada um nós torna-se perfeitamente possível, da maneira mais artificial e ilusória, no “mundo virtual”.

O “mundo virtual” passa a constituir, então, uma válvula de escape, uma via de compensação pelas frustrações impostas pela dura realidade. O jovem mergulhado numa existência cada vez mais destituída de sentido, numa realidade em que as relações pessoais estão cada vez mais degradadas, num contexto em que o consumismo coisifica a vida cada vez mais avassaladoramente, compensa tudo isso por uma auto-imagem entendida como gloriosa, admirável, invejável – embora forjada.

O perfil no Orkut, no Facebook, no Twitter etc. torna-se o meio para realizar a loucura do consumismo da sociedade contemporânea como consumismo de si próprio. Assim como o sabão em pó ou a rede de fast food se apresentam e constroem a própria imagem pela publicidade veiculada na grande mídia, um jovem pode apresentar a publicidade de si mesmo, oferecendo-se ao consumo virtual do outro, pelo perfil exibido vaidosamente na internet. Se o sabão em pó e a rede de fast food planejam o jingle da propaganda e o design de suas logomarcas e embalagens de modo a atrair o consumidor para uma ilusória promessa de realização pelo consumo, as redes sociais virtuais possibilitam o mesmo por fotos, vídeos, comunidades, popularidade “atestada” pelo número enorme de “amigos” ou “seguidores”, tudo milimetricamente planejado para ser exibido. Tudo para demonstrar uma vida própria que, na realidade, não existe – uma vida de plástico.

O princípio do marketing da sociedade de consumo é transposto para o marketing de si próprio. Mas o marketing de si próprio é também a redução de si próprio a mercadoria – no caso, a redução de si próprio a uma mercadoria exposta virtualmente para o consumo alheio. A válvula de escape da vida real é, portanto, ainda pior do que a alternativa: quem tenta “fugir” acaba caindo ainda mais resignadamente na lógica do domínio da mercadoria sobre o homem.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 03/03/2010. DIÁRIO (Dracena-SP), 06/03/2010.]

terça-feira, 2 de março de 2010

[Crítica Social] "Imparcialidade"?

“IMPARCIALIDADE”?

Quando assistimos aos noticiários das grandes emissoras de TV, somos freqüentemente confrontados com notícias que, a despeito da suposta “imparcialidade” da imprensa, têm caráter escancaradamente censurador acerca de temas como movimentos sociais, direitos humanos, posições políticas etc. Quando, por exemplo, trata-se da atuação do MST, quase sempre a notícia vem em tom de crítica aberta e rasteira, sem nenhuma consideração pelas razões do movimento. Quando se noticia a situação política de Cuba, da Venezuela de Hugo Chávez ou da Bolívia de Evo Morales, em geral apresentam-se todas como formas de “ditadura”, sem qualquer respeito pelas conquistas democráticas constatáveis em cada um desses países. Ou, para dar exemplos mais claros ainda: o episódio envolvendo a campanha eleitoral para presidente em 1990 e o caso da “ditabranda” no início de 2009.

Quais as razões para isto? – Eis a pergunta que o expectador deveria fazer-se diante de cada notícia que, dia após dia, recebe da grande mídia. Pois a grande mídia não se apresenta, na sociedade presente, senão sob uma forma empresarial – e, como qualquer empresa, o objetivo dos veículos de comunicação (TV, rádio, jornais, revistas, provedores de internet etc.) não é outro senão o lucro. Há, portanto, interesses econômicos por detrás de cada notícia, interesses que ligam a grande mídia a outros setores detentores do capital, que influem nesta ou naquela direção no que diz respeito à cumplicidade com a ordem e os poderes estabelecidos. Noutras palavras, isto que se chama comumente de “imparcialidade” não passa de um mito: cada notícia é noticiada do modo como convém a certos interesses e não a todos indistintamente.

Pois bem. Que existam interesses econômicos por trás do noticiamento, isto é inevitável. Mas que tais interesses sejam acolhidos acriticamente por quem não os compartilha, mesmo por quem está na situação oposta, isto é lastimável. Assim, por exemplo, é certo que o governo Lula merece diversas críticas, especialmente da esquerda, mas é compreensível que estas venham, sobretudo, das elites e dos grupos econômicos dominantes. Mas é lastimável que indivíduos das classes dominadas, que compartilham a origem social com o próprio Lula, critiquem o presidente precisamente pela origem na classe trabalhadora ou pela falta de formação escolar. Esta é uma triste demonstração de como a grande mídia pode fazer mesmo os menos favorecidos aderirem ao discurso pronto das classes dominantes, verdadeiramente “comprando o discurso do inimigo”.

Isto não quer dizer, que fique absolutamente claro, que a imprensa deve ser abandonada e que cada um de nós deve recusar toda e qualquer informação sob a desconfiança de sua possível manipulação. O que cada um de nós deve fazer é avaliar criticamente as notícias a que tem acesso, pensá-las sempre a partir do que há por trás delas, isto é, digeri-las sempre com cautela ao invés de engoli-las automaticamente.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 24/02/2010.]