terça-feira, 26 de janeiro de 2010

[Crítica Social] PNDH e realidade brasileira II – mídia e direitos humanos

PNDH E REALIDADE BRASILEIRA II – MÍDIA E DIREITOS HUMANOS

Na última semana, tratei do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e de sua recepção pela grande mídia brasileira, destacadamente da questão da reforma agrária, de sua necessidade na realidade do Brasil e de sua plena compatibilidade com os direitos humanos. Há, no entanto, outros pontos polêmicos a respeito do PNDH – dentre os quais sobressai a proposta de fiscalização do respeito aos direitos humanos pelos meios de comunicação.

Por tudo quanto se debateu até agora nos maiores veículos de comunicação do país, vê-se claramente que a grande mídia pretende mostrar a proposta do PNDH como uma nova e disfarçada forma de censura. As grandes emissoras de TV e de rádio, os grandes jornais e as grandes revistas do país reafirmam incansavelmente a liberdade de imprensa e pretendem que qualquer modalidade de monitoramento seja tratada como cerceamento desta.

Ora, é bem verdade que a liberdade de imprensa está entre os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição Federal de 1988, no seu art. 5º, IX. Mas é também verdade que a liberdade de imprensa é um dentre os vários direitos humanos reconhecidos – evidente, portanto, que a sua garantia não pode implicar em autorização para violação de todos os demais.

Por que, afinal, estaríamos todos sujeitos a cometer violações aos direitos humanos e, face a sua liberdade assegurada contra a censura, a imprensa não estaria? A liberdade de imprensa seria, então, uma espécie de “carta branca” para a grande mídia? Ou esta é apenas a interpretação da liberdade de imprensa que a grande mídia deseja, em correspondência com seus próprios interesses?

Na verdade, a despeito da sempre presente falácia da imparcialidade, a imprensa evidentemente pode cometer violações aos direitos mais elementares. Com freqüência os noticiários expõem ilicitamente a intimidade privada, violam sigilos telefônicos e de correspondência, “condenam” antecipadamente aqueles que ainda não foram julgados – isto quando não manipulam deliberadamente a opinião pública em favor de certo interesse econômico ou político.

É para impedir violações como estas aos direitos humanos que o monitoramento dos meios de comunicação de massa se mostra necessário. O que o PNDH propõe não se configura e não se pode interpretar como censura. Não há imposição de uma autorização prévia para divulgação do que quer que seja pela mídia, mas apenas observação do que é veiculado – observação cujos resultados podem influir, por exemplo, na renovação de autorização para radiodifusão ou na suspensão das verbas, naquele veículo de comunicação, para publicidade governamental.
O discurso da grande mídia em favor da liberdade não passa, neste momento, de um discurso em favor de perpetuação do abuso. O PNDH apenas procura – e de maneira ainda tímida – estabelecer critérios de responsabilidade da imprensa compatíveis com a liberdade que esta recebe, por uma imprensa mais transparente e efetivamente – não só formalmente – democrática.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 20/01/2010. DIÁRIO (Dracena-SP), 24/01/2010.]

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

[Crítica Social] PNDH e realidade brasileira I – reforma agrária

PNDH E REALIDADE BRASILEIRA I – REFORMA AGRÁRIA

Promulgado pelo governo federal no final de dezembro de 2009, o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) tornou-se, em poucos dias, a questão mais polêmica nos noticiários de todo o Brasil. A grande mídia, numa espantosa convergência de opiniões, aderiu quase em uníssono às elites tradicionais e aos segmentos políticos mais conservadores na crítica feroz a pontos-chave do PNDH tais como o avanço nos mecanismos de distribuição de renda, o incentivo à reforma agrária e a promoção do respeito aos direitos humanos pelos meios de comunicação.

Entre os argumentos levantados contra o PNDH são recorrentes aqueles que apelam a um suposto atentado contra o direito de propriedade, contra a liberdade de imprensa ou mesmo os que alegam um estranhíssimo “preconceito” contra o agronegócio. Argumentos, é evidente, que muito vem a calhar para aqueles cujos interesses econômicos e políticos vêem-se ameaçados – mas que interesses são estes e quais as verdadeiras medidas propostas pelo PNDH?

No que diz respeito à reforma agrária, é imprescindível considerar a real situação de distribuição de terras no Brasil. Estipula-se que pouco mais de 1% dos proprietários rurais detenham mais da metade das terras agriculturáveis do país, enquanto os cerca de 99% restantes dividem a outra metade. Segundo dados de 2006 do IBGE, quase 2,5 milhões de propriedades menores do que 10 hectares ocupam 2,7% do total de terras, enquanto menos de 50 mil propriedades maiores do que 1.000 hectares ocupam 43%. Trata-se de uma estrutura fundiária absolutamente desigual, uma das piores do mundo, que traz conseqüências terríveis: desigualdade social, desemprego, problemas na produção de alimentos (já que os latifúndios procuram produzir os gêneros mais lucrativos e não os mais necessários à alimentação dos brasileiros), êxodo rural e favelização nas grandes cidades, violência no meio rural e no meio urbano etc.

Face a isto, o PNDH propõe incentivo à reforma agrária como meio de promover uma melhor distribuição de renda, uma agricultura menos danosa ao meio ambiente, geração de empregos e segurança alimentar. Em verdade, o programa nada procura senão realizar o princípio da função social da propriedade rural, já estabelecido no direito brasileiro desde a Constituição Federal de 1988 (arts. 5º, XXIII e 186), mas quase inefetivo desde então.

O PNDH sequer menciona qualquer medida de expropriação imediata dos proprietários de terras improdutivas ou algo do gênero. É de se perguntar: por que então tanto barulho dos latifundiários e da mídia a respeito? Ora, porque o interesse dos grandes proprietários é exatamente pela da manutenção da distribuição desigual de terras e de todas as suas conseqüências negativas, portanto o exato contrário da realização plena dos direitos humanos para a maioria dos brasileiros. Mas o que deve prevalecer: o interesse econômico de uns poucos ou a dignidade de todos?

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 13/01/2010. DIÁRIO (Dracena-SP), 17/01/2010.]

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

[Crítica Social] Trabalho vivo

TRABALHO VIVO

Muito se diz atualmente que o trabalho teria acabado ou estaria em vias de acabar. Pelo menos no seu sentido tradicional – se é que assim se pode dizer –, o trabalho estaria em processo de extinção: o trabalho pesado, no chão da fábrica, dado pela submissão formal do trabalhador ao empregador (leia-se: “carteira assinada”), que gera uma polarização clara entre capital de um lado e trabalho de outro (com as suas conseqüências, como consciência de classe, movimento sindical etc.) já seria, dizem, quase uma peça de museu.

Dizem que o trabalho estaria se tornando dinâmico, fluido, leve; a economia estaria deixando de ser centrada na produção, na fábrica, e estaria se tornando uma economia de serviços; a polarização explorador-explorado estaria se esfumaçando em decorrência da descentralização produtiva e das novas técnicas de gestão empresarial. Há mesmo quem se orgulhe em dizer que os antigos bairros fabris das grandes cidades estão hoje quase esvaziados e que o outrora poderoso movimento operário anda sumido. Mas isto quer dizer, então, que já não há operários ou que estes já não tem mais o que exigir?

Talvez seja fácil afirmar, para quem está, por exemplo, na América do Norte ou na Europa Ocidental, que as fábricas estão desaparecendo, mas bastou assistir aos últimos Jogos Olímpicos para constatar que elas, na verdade, só podem sair de um lugar ao migrar para outro. Pequim estava caoticamente poluída pela fumaça das chaminés de suas incontáveis fábricas, chaminés que lá se concentraram em busca de mão-de-obra farta e miseravelmente remunerada.

O simples fato de ninguém ver, especialmente nos países desenvolvidos, onde exatamente as mercadorias são produzidas não pode levar à absurda conclusão de que elas não são produzidas em lugar nenhum. Nada pode se materializar do nada nas prateleiras das lojas e dos supermercados – tudo teve que ser fabricado em algum lugar (ou em vários lugares, etapa por etapa).

Uma economia inteiramente baseada em serviços é tão possível quanto uma limonada que surge sem espremer limões, uma omelete que se frita sozinha e sem quebrar ovos. Mesmo no capitalismo financeiro mais avançado, em que o circuito dos bancos, dos empréstimos e dos juros aparece como mais lucrativo do que a fábrica, a produção continua a ser o fundamento último e inquestionável de todo o ciclo do capital.

O trabalho, o bom e velho trabalho vivo continuamente explorado pelo capital, continua vivo como sempre, sustentado com o mísero salário de sempre. E os trabalhadores de hoje, como sempre, continuam tendo muito pelo que lutar.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 06/01/2010. DIÁRIO (Dracena-SP), 10/01/2010.]

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

[Crítica Social] Après moi le déluge

APRÈS MOI LE DÉLUGE

A recente conferência da ONU sobre mudança climática, a COP-15, realizada em Copenhague, terminou em fracasso. Na impossibilidade de consenso entre preservação do meio ambiente e desenvolvimento econômico, o acordo final, além de abaixo das expectativas, não foi dotado de exigibilidade nos termos do direito internacional.

Um tal fracasso parece, para dizer o mínimo, o resultado de uma absoluta falta de consciência da urgência das questões ambientais por parte dos líderes mundiais. Diante da ameaça ambiental que se apresenta com cada vez mais clara para todos – através, por exemplo, de desastres climáticos, aquecimento global, elevação do nível dos mares etc. –, a pergunta que imediatamente decorre do fiasco na tentativa de um grande empenho mundial a respeito é: por que alguém deixaria de evitar um colapso ambiental potencialmente destruidor da vida humana na Terra?

A resposta está na própria estrutura econômica mundial. A produção de bens de consumo obviamente não pode realizar-se sem a exploração de recursos ambientais (matérias-primas, energia etc.). Quando, mais ainda, a produção não visa a satisfação de necessidades humanas, ou seja, não visa em primeiro plano dar origem a coisas úteis, mas, como ocorre no capitalismo, visa captar valor e, pela exploração do trabalhador, mais-valor (o que, em última instância, reverte-se em lucro), a relação do homem com o meio ambiente assume contornos bastante específicos.

Se a utilização de recursos ambientais não atende à satisfação de necessidades humanas, isto significa que, na estrutura econômica presente, os homens não retiram recursos da natureza para assegurar a sobrevivência e o conforto dos próprios homens, mas tão-somente para fomentar a multiplicação do capital, o lucro de alguns poucos. E como o capital, núcleo do processo produtivo, não tem outro objetivo senão multiplicar a si mesmo, o consumo do meio ambiente não terá fim, será tão mais voraz quanto possível, pois assim fomentará mais e mais lucro.

Quanto do meio ambiente não se destrói, hoje, para produzir as quinquilharias que inundam as prateleiras dos mercados e das quais simplesmente não precisamos? Quanto não se destrói para produzir a parafernália eletrônica do momento que, daqui a poucos dias, estará obsoleta e irá para o lixo? Isto tudo continuará enquanto essas coisas desnecessárias, a despeito do esgotamento ambiental que ajudam a gerar, continuarem a ser vendidas e a render lucro para alguém. Esta é a “racionalidade” do mercado e é ela que, amparada pela força dos grandes interesses econômicos, leva ao insucesso não só a COP-15, mas todas as tentativas de, sem romper com o capitalismo, evitar o esgotamento completo do meio ambiente.

Não foi à toa que Marx, ainda no séc. XIX, concluiu que a divisa fundamental do capitalista é “après moi le déluge” (depois de mim, o dilúvio) – para o capitalista, não importa que o mundo acabe, desde que ele continue lucrando...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 30/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 21/02/2010.]