domingo, 19 de setembro de 2010

[Crítica Social] Boa vontade e coragem

BOA VONTADE E CORAGEM

Boa vontade. Amor ao próximo. Compaixão. Bondade. Esperança. Parece haver muitas razões para crer no homem e em sua capacidade de moldar o seu próprio mundo. Talvez por isso, para quem entoa o coro dos inconformados, para todos aqueles que se põe contra o já estabelecido, para todos que se alinham politicamente à transformação, não à conservação do mesmo, a crença num insuprimível potencial da “natureza humana” para “o bem” acaba sendo uma saída sempre muito fácil e muito conveniente.

O homem que, segundo dizem, é, no fundo, sempre “bom”, acaba corrompido por viver sob as pressões e contingências de uma realidade que, no seu conjunto, não oferece saídas. Seria, portanto, possível “libertar” o homem desta realidade, porque dentro de cada homem residiria o próprio germe de uma realidade diferente, de uma sociedade diferente. Mas por que, então, mesmo ante a potência intrínseca para o “bem” em cada homem, o mundo dos homens é monstruoso? Por que, diante de um estoque tão imenso de boa vontade latente, não se supera a monstruosidade de uma sociedade na qual os homens são forçados a comercializar a si próprios como mercadorias, na qual a miséria de tantos é condição necessária para a opulência de uns poucos, na qual o capital é o núcleo de tudo?

Uma esperança, mesmo a mais arbitrária e irreal, tende a ser mantida tanto mais obstinada e cegamente quanto mais a realidade mesma negue as suas possibilidades. Ora, a sociedade não é simples produto ou somatória de vontades individuais, não é a boa ou má vontade de quem quer que seja que determina a sua permanência ou superação. A boa vontade de cada indivíduo pode, por exemplo na religião, levar à “salvação da alma”, porque cada um cuida de salvar apenas a própria alma. Mas a religião não pode ser, pelo menos não para além das portas do templo, uma visão de mundo consistente e socialmente conseqüente. Há de se constituir uma tal visão de mundo politicamente – e a lição da política é radicalmente diferente: a transformação social se faz apenas coletivamente, com luta.

Assim, não é preciso confiar a transformação da realidade humana à boa vontade. Não é preciso crer no homem, na sua natureza, nos seus intentos elevados. Basta saber – e sabe-se desde já quais os limites da sociedade presente, quais as suas mazelas, quais os caminhos para a sua superação. Nesse sentido, dentre todas as virtudes humanas, não são, então, a esperança ou o amor ao próximo as mais admiráveis. Mais admirável de todas é a coragem. Pois é a coragem para a luta, para o enfrentamento das enormes resistências, para o sacrifício pessoal que a luta demanda, enfim, a coragem para ousar e agir politicamente pela transformação da sociedade presente que pode contribuir, acima da pura vontade de qualquer indivíduo, para construir um outro mundo possível.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 15/09/2010.]

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