domingo, 8 de agosto de 2010

[Crítica Social] Sobre a proibição do aborto no Brasil

SOBRE A PROIBIÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

Segundo pesquisa recentemente divulgada pela Universidade de Brasília, estima-se que 1 em cada 5 mulheres brasileiras de até 40 anos de idade já realizou pelo menos um aborto. Noutras palavras, 15% das brasileiras, ou seja, mais de 5 milhões de mulheres já teriam, em algum momento da vida, interrompido pelo menos uma gravidez.

Tais interrupções, é claro, ocorreram ilegalmente, uma vez que o direito brasileiro considera o aborto como crime – exceto nos casos excepcionais em que a gravidez resulta de violência sexual ou em que representa risco de vida para a mãe. Isto implica que, a despeito de realizados na ordem dos milhões, os procedimentos abortivos são invariavelmente levados a cabo de maneira clandestina, em geral através de medicamentos proibidos, perigosamente ministrados sem acompanhamento médico, ou em “clínicas” precárias, sem as condições higiênicas e sem os recursos necessários para um atendimento médico adequado. Milhares de brasileiras têm, assim, a sua saúde afetada anualmente, muitas das quais acabam morrendo em função das conseqüências desses procedimentos médicos inadequados – não é por acaso que a cirurgia mais realizada pelo SUS entre 1995 e 2007, com um total de 3,1 milhões de ocorrências, foi a curetagem após o aborto, em geral realizada emergencialmente após as complicações do procedimento clandestino.

Isto prova que é preciso, no mínimo, repensar a própria proibição do aborto. Afinal, se a proibição, por si, não é capaz de impedir a realização de procedimentos abortivos, nem mesmo de minimizar a sua ocorrência, então a sua única conseqüência tem sido “empurrar” a prática do aborto para as condições precárias e degradantes da clandestinidade. Ora, se, no fim das contas, o fundamento para a proibição do aborto é a proteção da vida, é necessário reconhecer que se está caminhando no sentido contrário: a vida do feto não está sendo protegida e, o que é mais grave, a vida de milhões de mulheres está sendo absurdamente colocada em perigo.

Se, no entanto, o fundamento para a proibição do aborto estiver lastreado em convicções religiosas, a situação é ainda mais absurda. Pois é muito diferente que uma mulher seja impedida de realizar aborto em função de suas crenças religiosas e que seja impedida por determinação legal imposta por um Estado laico. Cada religião pode, sem dúvida, estabelecer os padrões de conduta que espera de cada um de seus seguidores, mas os mandamentos de uma religião, seja qual for, não podem ser estabelecidos universalmente, através do poder público, inclusive para quem é adepto de outras religiões ou de religião nenhuma.

Em suma, há que se considerar, em primeiro lugar, a questão de saúde pública. Uma eventual legalização do aborto não fará mais do que reconhecer a realidade estabelecida e, uma vez que venha a permitir a realização da interrupção da gravidez em condições adequadas, poderá salvar muito mais vida do que a proibição tem conseguido.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 04/08/2010.]

2 comentários:

Anônimo disse...

Suponho que o aborto é proibido, assim como matar é proibido. Os princípios são equivalentes. Trata-se de uma lei, presumo eu, natural da humanidade. Preservação da espécie. Não necessariamente algo religioso. Legalizar as drogas para combater o tráfico, legalizar o aborto para proteger a vida das mulheres? Não é o velho e popular "tapar o sol com a peneira"? Outro ponto: como se legaliza o aborto no Brasil, um país onde para se conseguir uma consulta levam cerca de 4 meses? Voce poderia ficar na fila torcendo para que o seu aborto aconteça antes do nascimento do seu filho? Acho que políticas voltadas a educação e saúde, incluindo as de controle de natalidade, seriam melhores saídas. Aí eu me pergunto: como, se tentamos fazer isso há mais de 500 anos e não conseguimos?

CNKJ disse...

Prezado “Anônimo”,

Que o aborto constitui crime é algo claro. Qualquer “anônimo” pode ler o dispositivo correspondente do Código Penal e constatá-lo com clareza. Que, portanto, quem pratica aborto está se sujeitando às conseqüências da lei penal é algo acerca de que mesmo o mais “anônimo” dos “operadores do direito” não teria a menor sombra de dúvida.

Isto não obstrui, no entanto, que se discuta o significado por detrás da proibição, bem como se a proibição ainda faz sentido diante da realidade contemporânea. Uma vez que estamos aqui navegando nos mares da opinião, muito longe das terras seguras do consenso, é bastante compreensível que haja fortes discordâncias acerca do meu ponto de vista. A discordância chega a ser óbvia mesmo tendo em vista argumentos tais como a “naturalidade” da vedação do aborto, a equiparação entre aborto e homicídio -- enfim, argumentos típicos da direita mais conservadora (embora, claro, eu não saiba exatamente se este é o seu caso, prezado “Anônimo”) e, portanto, exatamente o oposto, no espectro político, dos argumentos que fundamentam as minhas opiniões.

Quanto à analogia entre a liberação do aborto e “tapar o sol com a peneira”, parece relativamente claro que a realidade fala por si. A quantidade de vidas humanas que têm servido de preço à insistência em argumentos como este seu é a demonstração cabal da completa falta de sentido desse discurso que se mantém teimosamente preso a abstrações vazias (a “defesa da vida” etc.) e que teimosamente insiste no direito como solução universal de problemas que, na realidade, radicam fundo, nas entranhas mais obscuras da estrutura social presente.