terça-feira, 29 de dezembro de 2009

[Crítica Social] Sobre o poder

SOBRE O PODER

Quem dispõe de algum poder nas mãos, mesmo que mínimo, não raro se deixa enfeitiçar e corromper. Mesmo um homem digno, com uma vida pregressa sem manchas, pode, deslumbrado e obcecado pelo poder, tornar-se um crápula – muito pior, é claro, o caso daquele nunca foi tão digno assim. Aquele que passou anos e anos servindo a outrem, cabisbaixo e em silêncio, pode, uma vez no poder, tornar-se um tirano e desejar ver-se servido e idolatrado mais do que qualquer outro.

Por outro lado, aqueles que não dispõem de poder não raro aceitam assumir uma postura subserviente como forma de obter favores dos poderosos. São aqueles que, mesmo traindo seus semelhantes e seus ideais, rapidamente se colocam ao lado do mais forte, como seguidores dóceis e bajuladores. Demonstrar adulação parece-lhes a melhor forma de usufruir do poder que não têm – o que não sabem é que assim não escapam à submissão, mas, ao contrário, submetem-se duas vezes.

Mas o que é, afinal, o poder? Se o poder é força, de onde esta força provém?

Ora, a força para angariar obediência, para conformar a vontade alheia, pode parecer originar-se das instituições, das normas, das tradições, dos costumes ou mesmo das armas. Esta força pode provir da ameaça ou do emprego real das sanções legais ou de violência psicológica ou física aberta. Mas é esta realmente a fonte do poder?

Na verdade, o poder só tem uma fonte: a própria coletividade sobre a qual, em geral, ele se aplica. Se a força das instituições ou a força armada confundem-se com poder, é apenas porque a coletividade consente, implícita ou explicitamente, em submeter-se a elas. Força por força, nenhuma instituição, nenhuma ordem jurídica, nem mesmo o mais bem equipado exército do mundo é mais forte do que o conjunto de todos os homens, a coletividade, as massas.

Por isso mesmo, todo poder que, por qualquer motivo, separa-se dos seus destinatários, já não é poder, mas opressão. O poder reside apenas na coletividade, de modo que tudo aquilo que pretende impor-se “de fora”, pela força, à coletividade, não é poder, mas usurpação de poder. Não pode haver, portanto, um governo que se distingue e aparta da população que supostamente é governada. Não pode haver autoridade separada daqueles a que se destina e a eles sobreposta.

Enganam-se, portanto, o político (do presidente ao vereador), a autoridade administrativa, o agente da força armada (polícia, exército etc.), o beneficiário das pequenas autoridades instituídas (o pequeno líder, o pequeno diretor, o minúsculo coordenador etc.) que se imaginam detentores ou mesmo proprietários autênticos do poder. Sem o consentimento da coletividade, nenhuma dessas figuras tem o mínimo de significado. Todo poder pertence única e exclusivamente às massas – e as massas podem reclamá-lo de volta a qualquer momento.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 23/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 31/12/2009.]

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

[Crítica Social] Ainda para pensar o ensino jurídico

AINDA PARA PENSAR O ENSINO JURÍDICO

O direito crítico há de desconfiar do próprio direito como instrumento de pacificação. O jurista crítico há de ser inquieto, inconformado com as injustiças e comprometido com a luta pela transformação social e pela justiça no mundo. Assim, um ensino jurídico que não aguce no aluno a sensibilidade para perceber a exploração social, a subumanidade latente na maioria dos povos do mundo, não estará cumprindo seu papel verdadeiramente humanista. E o jurista crítico é um humanista, no sentido estrutural da palavra – ele deseja uma humanidade justa, feliz, liberta e igual.
Desenvolver a sensibilidade para estar ao lado dos injustiçados e não dos injustiçadores, ainda hoje é um papel crucial das faculdades de direito. Desenvolver no estudante de direito o compromisso eterno com a luta por um mundo justo é nosso ideal mais nobre e profundo.


Um curso de Direito crítico e progressista, entre os mais bem qualificados do país, no interior de São Paulo. Este foi o sonho de Alysson Leandro Mascaro, fundador de um saudoso curso de Direito que, no seu manifesto de fundação, foi marcado pelas palavras acima (“Que ensino jurídico para qual direito?” In: Revista Direito e Sociedade, vol. 1, n. 1, 2006, pp. 11-12).

Ora, o que significa formar juristas inquietos e críticos? O que significa aguçar no estudante a sensibilidade para perceber a exploração? O que significa formar para o inconformismo perante a injustiça? O que significa estar ao lado do injustiçado? Tudo isto se resume, em certo sentido, na derradeira diretiva: formar juristas comprometidos com a luta.

O que se tem aqui é uma contundente negação do modelo tradicional, replicador e mercantil de ensino superior. O jurista formado como mero repetidor da ordem estabelecida, como mero repetidor da lei, é um jurista insensível: sua função é a de guardião cego do status quo, da situação presente. Como vigia diplomado da injustiça estabelecida, o jurista se reduz então a técnico da máquina burocrática de coerção que só contribui para manter tudo exatamente como está.

A lei e ordem, meramente repetidas, meramente reafirmadas sobre uma realidade social cheia de miséria e exploração, só fazem perpetuar o domínio do “mais forte”. A lei e a ordem, esvaziadas de um olhar crítico sobre a sociedade presente, são, portanto, as palavras-chaves da injustiça social mais atroz. Que ordem é esta? Para que e a quem serve esta lei? – Se a formação do jurista não o leva a questionar-se a esse respeito, então ela não cumpre a sua missão.

Por isso tudo, a formação do jurista deve ser uma formação para a luta. O inconformismo diante da ordem da desigualdade e da lei do mais forte só pode resultar na luta pela transformação social. Luta por uma outra realidade, na qual não existam nem o mais forte nem o mais fraco.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 16/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 20/12/2009.]

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

[Crítica Social] Para pensar o ensino jurídico

PARA PENSAR O ENSINO JURÍDICO

O conhecimento instrutivo e técnico, preparatório para exames simplistas e operatórios (OAB, concursos públicos, provas semestrais monodisciplinares...), é alienante, se desacompanhado de uma ampliação crescente da capacidade de leitura da realidade histórico-social.
Nenhum desses raciocínios técnico-operativos consente a formação de habilidades libertadoras, mas, muito pelo contrário, fornecem instrumentos para operar dentro do contexto de uma sociedade exacerbadamente competitiva, consumista, individualista e capitalista selvagem.
Nada impede que um operador do direito hoje, formado em uma boa e bem conceituada IES brasileira, seja autor de atitudes serenamente guiadas pelos mesmos princípios que levaram Hermann Goering, Rudolf Hoess, Joseph Goebbles, Wilhelm Keitel, Himmler e Eichmann a cometerem as mesmas atrocidades que cometeram à frente da máquina nazista. A visão de gabinete, a compreensão de mundo autocentrada, a idéia de responsabilidade restrita à dinâmica da responsabilidade do código de ética da categoria, a noção de mundo fixada pela orientação da ordem legal, a ação no cumprimento ‘estrito’ do dever legal... são rumos e nortes do agir do profissional bacharelado pelas Escolas de Direito que conhecemos.
Mas, a autonomia, conhecida e importante autonomia, esta é uma estranha desconhecida das Faculdades de Direito do Brasil. Não só não é cultivada, como quando dá mostras de sua aparição, é rápida e severamente repreendida.

A longa citação de Eduardo C. B. Bittar (O direito na pós-modernidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, pp. 390-391.) vale por cada uma de suas precisas e desmistificadoras palavras.

Que caminhos o nosso ensino jurídico tem seguido no sentido de impedir que Auschwitz se repita? Ora, no geral, nenhum... O ensino técnico e reificante, devassador da subjetividade, deformador do intelecto e da experiência, apenas submete o educando à completa heteronomia do mercado, portanto à completa mercadorização da vida humana. A redução alienante da realidade do direito à realidade do código, a limitação de uma educação meramente repetitiva da letra da lei, o formalismo que aniquila qualquer criatividade – tudo isto contribui sobremaneira para o desconhecimento do direito e do mundo, mas nunca para o conhecimento autenticamente formativo.

As deformações da consciência que marcaram os nazistas não estão, portanto, sendo superadas por este ensino jurídico, mas repetidas por ele. Pois o nazista, como se sabe, não se sentia sequer minimamente culpado pelas atrocidades que cometia: julgava estar apenas cumprindo a letra da lei, obedecendo estritamente às ordens da autoridade constituída, portanto rigorosamente atrelado ao seu dever, enquanto 6 milhões de judeus eram exterminados pelos atos de maior desumanidade já presenciados sob a face da Terra. Uma tal postura cega e incapaz de questionamento diante do suposto “dever” é exatamente o que se tem reproduzido em massa no ensino jurídico: o direito, assim, ao invés de discurso da liberdade, parece preferir funcionar como fábrica de autoritarismo.

Não é por acaso, então, que vemos por aí, nos corredores das faculdades de direito, o exato oposto do que ali se deveria encontrar: Himmlers, Goerings, Eichmanns e até, para o nosso máximo azar, Hitlers em miniatura.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 09/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 13/12/2009.]

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

[Crítica Social] O beija-flor e o incêndio

O BEIJA-FLOR E O INCÊNDIO

Qualquer um que se proponha a tentar – esta que parece ser uma tentativa sem fim – compreender o mundo por uma perspectiva crítica, autenticamente crítica, é obrigado a enfrentar, de tempos em tempos, propostas de “melhorar aos poucos”, especialmente aquelas que começam por “se cada um fizer a sua parte...” etc. Obviedades e clichês que só poderiam bastar a quem nunca se propôs a pensar seriamente as grandes mazelas do tempo presente – como, por exemplo, a velha fábula do beija-flor que, diante do incêndio na floresta, persiste sozinho na tentativa de apagá-lo – retornam invariavelmente e mesmo daqueles mais “bem intencionados”.

O que podem ser essas pequenas “melhoras”, essas reformas marginais, numa sociedade que estruturalmente, até a mais profunda de suas raízes, está condenada? O que pode ser a “melhora” da parte numa sociedade que, na sua totalidade, não pode gerar senão exploração, exclusão, miséria? Qual é a pequena parte que cada um poderia fazer para mudar este quadro? Que boa vontade, solidariedade ou boas ações poderiam ter algum efeito significativo?

Toda caridade não faz senão aliviar as necessidades mais urgentes de uns enquanto, perversamente, a estrutura social continua a produzir a miséria de tantos outros. Toda boa vontade, toda solidariedade, todo “amor ao próximo” se perde numa totalidade que se impõe e se perpetua independentemente da vontade ou das intenções daqueles que a ela se submetem. Tudo se dilui como menos do que uma gota no oceano: e este oceano infelizmente não será preenchido nem esvaziado “de gota em gota”.

Que ninguém me interprete mal. Não estou recomendando aqui o completo conformismo, a resignação irrestrita à realidade social tal como dada. Esta é a última postura que, em pleno uso de suas faculdades mentais, um crítico social recomendaria. Qualquer ação que siga na contramão da realidade dada, que contribua para mudanças, mesmo que superficiais, ou que simplesmente recuse contribuir para a perpetuação do mesmo é plenamente preferível à inação. Mas o que estou tentando dizer é que o inconformismo moderado e pouco exigente pode não ser o contrário do conformismo.

O contrário do conformismo só pode ser um inconformismo profundo, exigente, que não se dê por satisfeito com menos do que a transformação radical do mundo. Uma transformação que não se limita à parte, mas que atinge e transborda a totalidade da sociedade presente, que instaura uma sociedade autenticamente nova.

Afinal, quando a fábula do beija-flor é contada e recontada, ninguém se pergunta quais foram as causas do incêndio. Ninguém se pergunta o que leva os animais a pensar apenas em si próprios. Ninguém cogita por que tudo está desabando, mas todos se apressam em culpar aqueles que preferem fugir para salvar as próprias vidas. E ninguém conta, o que é muito suspeito, o verdadeiro final da história: o beija-flor, a despeito do seu esforço, morreu queimado...

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 02/12/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 05/12/2009.]

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

[Crítica Social] Vida e consumo

VIDA E CONSUMO

Uma proposta ousada de diagnóstico do tempo presente. Isto é o mínimo que se poderia dizer sobre “Vidas à venda”, livro original e interessante recentemente lançado pela editora Terceira Margem. Organizado pelo professor da Faculdade de Direito da USP Eduardo C. B. Bittar e pelo poeta e professor universitário Tarso de Melo, o livro é resultado do esforço coletivo de membros do grupo de pesquisa “Democracia, Justiça e Direitos Humanos: estudos de teoria crítica” do Núcleo de Estudos da Violência da USP que buscaram, pela arte (isto é, crônicas, poesias, imagens etc.), dar vazão à necessária crítica da degradação da vida na realidade contemporânea.

Num momento em que, notadamente, o consumismo exacerbado suplanta tudo mais e torna-se o único sentido da existência humana, o livro parece mais do que oportuno. A ninguém é dado, é certo, viver sem consumir, portanto é necessário consumir para viver. Mas quando passamos a viver para consumir, como tem ocorrido hoje, algo profundamente diferente se instalou: esta inversão do meio pelo fim atesta o domínio completo da mercadoria sobre a vida.

Ora, é bem verdade que vivemos num mundo em que se coloca à nossa disposição uma enorme variedade de coisas fantásticas e admiráveis. Coisas que cada vez mais facilitam, embelezam, complementam nossas vidas. E, por isso, é, sem dúvida, muito mais confortável viver hoje do que há 50 anos. Temos comunicação instantânea, transportes velozes, tecnologia de ponta e uma variedade de cores, tipos e formas de produtos à venda numa dimensão antes sequer imaginável.

Mas este mundo de coisas tão fantásticas não é um mundo de liberdade. É um mundo de opressão na medida em que cada um de nós é constrangido a orientar a própria vida à aquisição, posse ou mesmo ostentação dessas coisas. Tudo se rende progressivamente ao consumismo: a educação que cada vez mais se reduz ao consumo da “mercadoria” ensino, a religião que cada vez mais se reduz ao comércio da “salvação” ou mesmo as relações de amizade que cada vez mais se constroem em conformidade com interesses utilitários e profissionais. E o acesso ao consumo se torna, então, o critério derradeiro de “inclusão” social: quem não tem acesso a esta ou aquela mercadoria simplesmente fica de fora, não faz parte, não é contado neste ou naquele grupo social.

Enquanto isso, enquanto as quinquilharias obstruem a nossa percepção da realidade, grassa a desmobilização política, a destruição do meio ambiente e uma absoluta resignação diante da massa crescente daqueles que, na miséria, não têm acesso ao consumo de nada. O consumismo se torna fator promotor das mais diversas modalidades de violência e, ainda assim, nós continuamos rendidos ao fanatismo pelas coisas. Isto porque, no fim, as nossas vidas se reduziram a estas coisas. E, sem que tenhamos clara consciência disso, nossas vidas estão mesmo à venda.

[Publicações: O REGIONAL (Catanduva-SP), 25/11/2009. DIÁRIO (Dracena-SP), 01/12/2009.]