quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

[NJ] Contra o governo das leis

CONTRA O GOVERNO DAS LEIS

“Esquecem-se apenas de que o direito da força é também direito e de que o direito do mais forte sobrevive, ainda que com outra forma, no seu ‘Estado de Direito’.”
– Karl Marx

A questão é antiqüíssima. Vem desde as raízes da filosofia, dos antigos gregos, e atravessa a história do pensamento ocidental. O que é preferível, o governo dos homens ou o governo das leis? O que é, afinal, o melhor governo, o governo dos bons homens ou o governo das boas leis? E o pior governo?

A posição dominante na filosofia política moderna é, a esse respeito, bastante clara. O melhor é governo das leis. O governo dos homens é repudiado porque imediatamente identificado com o governo do arbítrio de um ou de alguns sobre todos mais. A lei, pelo contrário, seria a máxima garantia da impessoalidade e da neutralidade, porquanto identificada, por sua forma mesma, como exigência do “bem comum”. Os sistemas de governo das sociedades modernas, destacadamente as democracias de tipo burguês, são então, não por acaso, estruturados pela supremacia da lei. A lei é encarada como fundadora do governo e fonte do poder. É a lei que estabelece toda a “ossatura” do poder político, todas as instituições, posições e cargos, bem como as respectivas prerrogativas, atribuições e limitações. É a lei que desenha toda a maquinaria através da qual é exercido o poder.

Pois bem. Reconheça-se: a filosofia política moderna tem alguma vantagem sobre a filosofia política pré-moderna – a formalidade da lei é, talvez, preferível ao arbítrio puro e simples. A sua realização, porém, mostra-se falha e, não raro, inconveniente. Apresento, nesse sentido, dois níveis de crítica.

O primeiro, mais freqüente e mais superficial, tem por base a óbvia constatação de que as leis são elaboradas e aplicadas por homens. De fato, nenhuma sociedade conseguiu ou conseguirá chegar ao governo puro das leis. A lei nada significa sem legisladores e juízes. Seria então necessário confiar o governo a bons homens, para que bons homens elaborem as melhores leis e apliquem-nas da melhor maneira.

Tal crítica está presente, hoje, nas propagandas institucionais da Justiça Eleitoral (que pedem ao eleitor que verifique o passado dos candidatos antes de votar), nos discursos daqueles que clamam por “moralização” da política (ONGs, setores da mídia de massa etc.) e até na ideologia de certos grupos de políticos “profissionais” (notadamente aqueles que reclamam certo vínculo com a religião). Trata-se, no entanto, de uma crítica insuficiente, que acaba levando ao personalismo, quero dizer, à visão segundo a qual importa confiar (mais do que nas leis, nas instituições, nos partidos etc.) nos bons homens – seja lá o que significa isto: os mais bem qualificados, os moralmente mais elevados, os “puros” etc. Seu efeito é, portanto, reconduzir indireta e contraditoriamente ao elitismo e ao arbitrário, o que implica dizer que sua índole é, acima de tudo, retrógrada.

Um segundo e mais profundo nível de crítica parte da constatação de que o governo das leis é ainda o governo dos homens, pois as leis tão-somente medeiam o domínio de alguns sobre muitos. Cabe transformar, portanto, a organização social e política dos homens e não apenas as leis ou aqueles poucos que as elaboram. Tal transformação deve ser profunda – deve ser pelos homens e para os homens, edificando uma sociedade nova, na qual a coletividade não necessite de uns poucos que a dirijam. O caminho a ser aqui seguido é, então, para ser claro, a ruptura formal com supremacia da lei e, mais ainda, com a própria idéia da necessidade de um governo.

Ora, entre bons homens e boas leis, que prevaleçam os bons homens – mas num sentido radical. Que os homens sejam bons porque libertados de uma formação social que os mutila, libertados de um mundo de domínio e de exploração. Bons homens que não são apenas alguns que, precisamente por serem bons, devem governar os demais. Bons homens que são todos os homens e que, portanto, prescindem de leis ou de governo.

A crítica autêntica oferece, então, à questão dos antigos gregos, uma resposta que certamente não constava entre as alternativas. Uma resposta que, por si só, dissolve a própria pergunta. Pois a sua resposta é a transformação radical do mundo, no sentido de um mundo em que aquela pergunta já não fará nenhum sentido.

[Publicado no JORNAL DIÁRIO de Dracena-SP em 08/02/2009]