quarta-feira, 7 de maio de 2008

[NJ] Sociedade atômica e tecnologia do isolamento

SOCIEDADE ATÔMICA E TECNOLOGIA DO ISOLAMENTO

Children of tomorrow live in the tears that fall today.
Will the sunrise of tomorrow bring them peace in any way?
Black Sabbath em Children of the Grave

Indivíduos isolados, “soltos e solteiros”, independentes uns dos outros – esta é a estrutura social correspondente à estrutura econômica plenamente desenvolvida do modo capitalista de produção. Uma sociedade, por assim dizer, “atômica” é a única na qual o capital pode imperar como força incontrastável e, portanto, é aquela que o império do capital demanda. Não por acaso, o início histórico do capitalismo deu-se em concomitância com a destruição de toda espécie de agrupamento “molecular”: os estamentos, as relações pessoais feudais, as corporações de ofício e, em grande medida, a família.

Para que o indivíduo pudesse se apresentar como “átomo” no mercado, foi preciso que o papel de mediadora social da família fosse destruído. Se entre os antigos alguém só se integrava à sociedade como membro de uma família ou de um clã, entre nós cada um é antes membro da sociedade e se relaciona com os familiares de modo apenas um pouco menos acidental do que com qualquer outro indivíduo. Talvez a família só não tenha sido tragada por completo pelo turbilhão dos novos tempos porque é um meio ainda não dispensável de transmissão da propriedade.

É óbvio que tal desqualificação da família não ocorreu de modo imediato e indolor. O isolamento do indivíduo passa, por um lado, pela “libertação” do domínio familiar. E, nesse sentido, foi demorada e penosa a imposição aos pais do dever de criar os filhos não para si próprios, mas para a sociedade. Por outro lado, o isolamento individual também faz surgir um certo desamparo pelo estar “sozinho no mundo”, o que exige que o indivíduo seja preparado ou “educado” para tanto. Este duplo aspecto já basta para fazer imaginar o quão longo e complexo foi processo de dissolução dos laços familiares tradicionais, que culminou na redução da pertença a uma família à mera posse de um sobrenome.

Este processo foi, não há dúvida, grandemente acelerado pela introdução do rádio e, em seguida, da televisão nas residências familiares. Por paradoxal que pareça, nada isola com eficiência comparável à da autroproclamada tecnologia da aproximação, isto é, a tecnologia dos meios de comunicação. Os membros da família, sentados todos juntos no sofá da sala, assistindo ao telejornal ou à novela, estão, na verdade, todos isolados. Não há diálogo, não há interação, a única relação imaginável é aquela entre cada indivíduo e a transmissão da televisão. Deste modo, todas as gerações subseqüentes à introdução da transmissão radiofônica foram “educadas” de modo muito mais sutil e eficiente para o isolamento.

O que dizer, então, das gerações mais recentes, que conheceram o espetáculo do desenvolvimento da tecnologia da comunicação? Se o rádio e a televisão contribuem para o isolamento, o que dizer dos telefones celulares, do computador, da internet? Hoje é possível manter contato com quem quer que seja, em qualquer parte do mundo, de modo instantâneo, mas é também possível não encontrar ninguém de carne e osso. A tecnologia que pretende aproximar permite, na verdade, que os indivíduos se mantenham distantes. As crianças já não se reúnem para brincar, pois dispõem de meios mais “interessantes” e seguros de diversão, fechadas em casa, sozinhas com o videogame. Os adolescentes encontram na internet e no celular os meios de estabelecer relações que já nascem fundadas na impessoalidade. E mesmo os contatos profissionais dos adultos, resolvidos todos por e-mail, permitem a despersonalização do trabalho que, antes, ao menos exigia interação.

O passo seguinte na lógica atômica da sociedade capitalista tende a ser a destruição de todo e qualquer vínculo que não seja meramente passageiro e ocasional – e aqui o modelo supremo, diga-se, é o vínculo da relação de troca de mercadorias. É para este futuro pouco animador que as gerações de hoje parecem estar sendo preparadas.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP 04/05/2008]