quinta-feira, 8 de novembro de 2007

[NJ] Polícia e/ou bandido

POLÍCIA E/OU BANDIDO

Tanto quanto Cidade de Deus em 2002, Tropa de Elite, filme de José Padilha atualmente em cartaz nos cinemas, tem ensejado grandes discussões a respeito da condição das periferias das grandes cidades brasileiras, do tráfico de drogas e do combate ao tráfico de drogas. Por tratarem praticamente do mesmo tema, mas por “ângulos” diferentes, muitos consideram Tropa de Elite o oposto de Cidade de Deus, isto é, o lado da polícia contra o do crime. E é fato que cada um expõe uma certa visão, mas não creio que seja exatamente o caso opô-las.

O mérito de Cidade de Deus foi expor para a sociedade brasileira – ou melhor, para as classes médias e altas da sociedade brasileira – uma realidade que ela não desejava ver: a realidade da margem, dos enjeitados, dos barrados pelos muros invisíveis da sociedade. Sua visão é a da pobreza, a autêntica geradora da violência e da criminalidade. Nesta condição, isto é, na carência extrema, frente ao descaso do poder público, frente à segregação social, fica completamente desmistificada a idéia da “pobreza digna”. A dignidade da sociedade moderna não funciona entre os excluídos da modernidade e do progresso, de modo que a indignidade do crime pode ser a única dignidade possível.

Tropa de Elite exibe o ponto de vista da repressão. O filme revela muito dos métodos e da organização (e da falta dela) das forças policiais – uma outra realidade inconveniente, que rompe a imagem dos “bons moços” e dos “defensores da lei”. Também revela parte do ideário de parte dos policiais – e é claro que para os próprios repressores a repressão tende a ser plenamente justificada e sumamente necessária. O argumento da “guerra civil” no Rio de Janeiro, várias vezes repetido pelos personagens, mostra como os abusos no combate ao crime são justificados por seus próprios agentes: na guerra vale tudo.

No entanto, assim como Cidade de Deus não é uma justificativa para o crime, mas uma busca por suas raízes, isto é, uma espécie de crítica social, Tropa de Elite não é uma justificativa para os abusos policiais. Nenhum dos filmes ratifica o ponto de vista que expõe, ou seja, nenhum faz apologia ao seu “lado”. O simples expor já cumpre seu papel: a agressividade de Zé Pequeno e a crueldade do Capitão Nascimento se tornam explicáveis a partir da compreensão de seus contextos. Tropa de Elite pode ser um deleite para os adeptos da porretada como solução, mas constitui, na verdade, uma crítica às precárias condições da polícia (sem recursos, sem preparo adequado, refém da burocracia etc.), à corrupção e, em especial, ao combate aos efeitos de um problema social ao invés de uma incursão até as causas.

Em comum, os dois filmes têm a preocupação de apontar o fracasso completo da idéia de “Estado de Direito” na margem da sociedade. Lei, no sentido em que conhecemos, é sinônimo de capitalismo: onde o capitalismo falha, o que vige é a arbitrariedade da “lei do tráfico” ou os excessos ilegais dos agentes da lei. Onde o capitalismo não está “completo” e impera a miséria – ou, mais precisamente, entre os expurgos do capitalismo – não há e não pode haver Estado nem Direito.

No mais, é também comum a ambos a denúncia certeira de que o poder do tráfico de drogas não advém da “periferia”. Não são os moradores de favelas e de comunidades carentes que alimentam o tráfico com os pesados recursos para armas e subornos. Este poder que domina a “periferia” e ameaça o “centro”, a ponto de hoje o crime organizado ser capaz de paralisar o Brasil (como já demonstrou de fato por mais de uma vez em São Paulo e no Rio de Janeiro), é alimentado pelos consumidores de drogas que possuem recursos, ou seja, pelos setores da sociedade que dispõem dos excedentes econômicos.

Trata-se de ótima ilustração da dialética perversa pela qual o “centro” gera a “periferia” e, ao mesmo tempo, sente o perigo de ser destruído pela “periferia” – o “centro” existe a partir da exclusão, mas a exclusão ameaça devorá-lo. Basta lembrar que a Cidade de Deus nasceu na década de 60 como lixo varrido para debaixo do tapete pelo próprio Poder Público e já na década de 80 se tornou uma bomba-relógio. E é precisamente para impedir a explosão de bombas-relógios como esta que surgiram as tropas de elite, equipadas e treinadas para manter os miseráveis em silêncio diante desse mundo que deseja ardentemente ignorá-los.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 03/11/2007]