quarta-feira, 19 de setembro de 2007

[NJ] Preconceito e inteligência

PRECONCEITO E INTELIGÊNCIA

Tão importante quanto tolerar diferenças é tolerar preconceitos. Isto, é claro, não faz parte dos discursos da cidadania, da boa vontade, enfim, dos discursos atuais de “salvação do mundo” através do “bom-mocismo”, muito mais preocupados em associar preconceito a pecado. Mas é evidente, talvez evidente a tal ponto que ninguém se dê ao trabalho de dizê-lo: tolerar diferenças inclui tolerar diferenças de pensamento, sendo o preconceito contra o preconceito alheio uma espécie de intolerância como todas as demais.

Antes que alguém proponha me atirar na fogueira, explico: não estou defendendo, nem jamais o farei, qualquer tipo de discriminação. O que estou dizendo é que se alguém tem preconceitos – contra negros, judeus, homossexuais, índios etc. ou, quem sabe, contra dracenenses, descendentes de japoneses, estudantes de direito e marxistas – que os tenha, desde que os guarde para si, isto é, desde que não os coloque “em prática”.

Uma coisa é ter para si um conceito prévio e depreciativo de uma parcela qualquer da humanidade, isto é, ter um preconceito no “pensamento”. Não se pode impedir quem quer que seja – às vezes não podemos impedir nós mesmos – de ter as próprias idéias, mesmo que idéias idiotas. É verdade que as ondas sucessivas de neuroses contemporâneas manifestam, sim, e com freqüência, o desejo de controlar pensamentos, de estabelecer idéias uniformes e “limpas” sobre a igualdade dos homens, mas é absurdo pretender utilizar a lei para obrigar qualquer um a pensar desta ou daquela maneira. Ora, ninguém pode ser obrigado a gostar de ninguém – isto também é evidente. A consciência é uma eterna rebelde que não atende aos comandos de autoridades externas.

Outra coisa, no entanto, é, em função de um preconceito, negar um direito, tratar com desrespeito ou impedir alguém de usar o elevador, de entrar num restaurante, de participar do que quer que seja. Na medida em que o preconceito deixa o pensamento e passa para o “mundo exterior”, deixa de ser apenas uma idéia idiota e se torna uma idiotice mais grave. Isto sim é que não se pode aceitar socialmente. E é aqui que se pode pretender usar a lei: seu papel é obrigar todos a adotar este ou aquele comportamento, punindo quem tomar a via contrária.

Quando, no entanto, o direito é usado para consagrar um preconceito, algo definitivamente parece fora do lugar. Este é bem o caso da controversa sentença que recentemente rejeitou a queixa-crime de um jogador de futebol supostamente homossexual contra um dirigente de futebol que supostamente o ofendeu.

Não vem ao caso discutir o problema da admissibilidade ou não da queixa-crime. E não vem ao caso porque não é o que importa aqui e também porque até o pior dos juristas sabe que a tal decisão tem a mesma juridicidade de uma receita de bolo de abacaxi: seus fundamentos são absurdos, sua construção é arbitrária e sua conclusão é patentemente inconstitucional. O que me importa é o teor de homofobia nela manifesto.

Não creio que o juiz mereça censura pelo preconceito que, ao que tudo indica, tem contra os homossexuais. E insisto nisso mesmo diante da homofobia relativamente grave da sociedade brasileira como um todo e da homofobia ainda mais grave do “mundo do futebol”. Enquanto restar apenas na cabeça do juiz, a homofobia não é problema para ninguém (exceto talvez para o próprio juiz, mas não interessa). O que é censurável – e muito – é ter posto para fora seu preconceito logo numa decisão judicial.

Longe de mim defender o “império da lei” como o que existe de melhor, mas um juiz supostamente deveria decidir com a lei e claramente se percebe que em “É assim que penso... e porque penso assim, na condição de Magistrado, digo!” a lei passou muito, muito longe. Se considerado o caráter necessariamente universal do direito (do contrário, não é direito, é um privilégio), o que esta decisão representa é uma forma de discriminação pretensamente generalizável oriunda de idéias um tanto suspeitas de um único homem.

Defendo que o juiz fique em paz com seus preconceitos, desde que os contenha em limites razoáveis. No entanto, ao colocá-los “em prática” e, mais ainda, colocá-los em prática com o “carimbo” do direito, todos os limites razoáveis foram ultrapassados. Mais do que exposição ao ridículo com a manifestação de um pensamento sumamente retrógrado, mais do que um deslize em sua condição de magistrado, mais do que um absurdo jurídico, o que posso dizer do ato do juiz é que foi algo de pouquíssima inteligência.

[Publicado no NOVO JORNAL de Dracena-SP em 08/09/2007]